Pacto de guerra?
25/09/2001
- Opinión
"No grau de cultura em que ainda se acha o gênero humano, a guerra é
uma meio inevitável para estender a civilização.."
Immanuel Kant, Começo Verossímel da História Humana, 1796
A primeira Cruzada dos cristãos, partiu da Europa para castigar os
mulçumanos e çonquistar a Ásia Menor, em 1096. Em 1099 já haviam
conquistado Jerusalém, mas só alcançaram seu objetivo estratégico,
depois da tomada de Trípoli, em 1109. Foi, portanto, uma vitória
demorada, mas o que é pior, é que foi apenas o início de uma guerra
secular. Depois, sucederam-se muitas derrotas e vitórias, até o fim
da sétima Cruzada, em 1270, quando foi assinada a Paz de Tunis que
obrigou a lenta retirada dos europeus, e o abandono da Terra Santa,
entregue aos muçulmanos, em 1291.
Deste ponto de vista, as Cruzadas foram um completo fracasso. Mas
também é verdade, que foi durante este mesmo período que se
consolidou o poder imperial do Papa, sobre a cristandade, e o poder
econômico das cidades italianas ( Amalfi, Veneza, Gênova, Florença e
Milão ), sobre o comércio de longa distancia, com a Ásia.
Foram quase dois séculos de império, guerras e derrotas, mas não se
pode esquecer que foi neste tempo que se plantaram as primeiras
sementes do "milagre capitalista', que ocorreria mais tarde,
exatamente na terra dos cruzados, e não na dos ricos e comerciantes
asiáticos.
No fim de setembro de 2001, ocorrerá um novo ataque militar à Ásia
Menor, liderado pelos EUA e com o apoio dos europeus. Foi anunciado
como início de uma "guerra prolongada", do "bem" contra o "mal", mas
neste caso, não está muito claro, nem mesmo para os "ocidentais", o
que seja o "bem", apesar de que todos estejam de acordo sobre quem
seja portador do "mal". As declarações oficiais apontam para uma
grande ofensiva da maior potência militar do mundo, contra as ruínas
de um país e de um povo cuja história milenar já teve seus momentos
de glória e sofisticação cultural, mas que esteve, quase sempre,
submetido à dominação externa, mesmo quando se transformou - no
século XIX - na tumba de vários generais ingleses.
Hoje, é uma sociedade tribal miserável, controlada por um grupo
religioso fanático, que é, na verdade, o último sub-produto asiático
da Guerra Fria. Por isso, nenhum analista internacional acredite que
esta ação militar se restrinja ao Afeganistão, sobretudo depois que o
subsecretário de Defesa norte-americano, Paul Wolfowitz, declarou que
"não se trata apenas de capturar essa gente e fazer com que paguem
pelo que fizeram.
Se trata de eliminar os santuários, os sistemas de apoio, acabar com
todos os Estados que patrocinam o terrorismo". Esta é sua opinião,
mas a verdade é que não existe consenso entre os "aliados", sobre os
objetivos estratégicos ou de médio prazo desta operação vingativa.
Até onde levar a ofensiva militar ? qual seu objetivo final ? O
"ocidente" estará disposto a retomar o seu controle colonial sobre a
Ásia Menor ? ou pretende apenas "concluir" a Guerra do Golfo, por um
caminho transverso?
Este impasse não é novo. Era menos visível, mas já existia entre os
27 países da coalizão que derrotou e destruiu o Iraque, em 1991. E
manteve-se presente, durante toda a década de 1990, por trás da
prolongada indecisão dos norte-americanos e dos europeus no caso das
"intervenções humanitárias" na Somália, na Bosnia e no Kosovo.; no
caso da decisão sobre as novas fronteiras e funções da OTAN; no caso
do bombardeio do Sudam; no tratamento dos "estados párias", etc.
Na Guerra do Golfo, havia a questão do petróleo, como interesse
comum, e a soberania do Kuwait havia sido violada. Apesar disto, e
dos 150.000 iraquianos que foram mortos pelos bombardeiros aliados, a
guerra foi inconclusiva, deixando o governo do Iraque nas mãos de
Saddam Hussein. Na situação atual, não existe um interesse material
comum, nem tampouco existe alguma regra do direito internacional que
tenha sido claramente infringida.
É por isto que o mundo acompanha espantado a forma como a discussão
sobre a legitimidade do "pacto de guerra", se deslocou do campo do
Direito Internacional, para o campo do Direito Penal, na espera da
investigação que permita caracterizar o crime, e decidir o castigo,
de uma pessoa física.
Em termos estritos e jurídicos o que os europeus, pelo menos, estão
discutindo, é a legalidade de uma guerra que seria declarada por
razões penais. Uma guerra de vários Estados e exércitos aliados, para
castigar um indivíduo, no caso em que for comprovado seu envolvimento
nos atentados ao Pentágono e ao World Trade Center. O que é no mínimo
uma extravagancia histórica, quando não se compreende o impasse
político internacional, que se esconde por trás deste paradoxo.
Quando a Guerra do Golfo começou, recem haviam sido realizadas duas
reuniões do G7 - em Huston e Dublin - convocadas explicitamente para
sacramentar o fim da Guerra Fria, e analisar a vitória da "liberal-
democracia" e dos mercados, que deveriam ser os dois alicerces da
nova ordem mundial que nascia das ruínas do Muro de Berlim. Naquele
momento, a Guerra apareceu para a opinião publica mundial, como um
fato surpreendente e distoante, apesar de que seus antecedentes
fossem de total conhecimento, dos principais governantes do mundo
desenvolvido.
No final, entretanto, a guerra acabou cumprindo um papel decisivo no
estabelecimento da "nova ordem mundial", porque foi ela que definiu o
limite último da soberania dos estados, em cada um dos degraus da
nova hierarquia do poder mundial. Em Bagdá, como em Hiroshima e
Nagasaki, a história deu razão, uma vez mais, ao realismo de Hobbes,
que nos ensinou - na hora em que nascia o sistema inter-estatal, no
século XVII - que "é preciso a ordenação de um poder soberano, para
que se possa então definir o que é a equidade e a justiça", uma vez
que "é a autoridade e não a verdade que faz a lei, (porque) antes que
se designe o que é justo e o injusto, deve haver alguma força
coercitiva".
O bombardeio do Iraque cumpriu, em 1991, um papel equivalente ao de
Hiroshima e Nagasaki, em 1945: estabeleceu através do poder das
armas, quem seria o novo "poder soberano", e a "força coercitiva" que
definiriam, a partir dali, o que fosse "o justo e o injusto" no
campointernacional.
A II Guerra Mundial e a Guerra Fria, podem ser lidas como parte de
uma mesma "guerra civil" européia, quase contínua, desde o século XV.
Mas a Guerra Fria, não teve nenhuma batalha na Europa e terminou no
Iraque, na forma clássica das "guerras imperiais", e sem a
participação direta da URSS. Como conseqüência, não houve em 1991,
nada parecido com os acordos interestatais assinados na Paz de
Westphalia, de 1648; no Congresso de Viena, de 1815; no Congresso de
Versailles, de 1918; ou mesmo, nas reuniões inconclusivas de Yalta e
Potsdam, de 1945. Não foram definidas as novas regras em que se
fundamentaria a governance global.
Mesmo que todos reconhecessem a superioridade inconteste do poder
militar, financeiro e informacional dos Estados Unidos, não se
estabeleceu nenhum principio normativo, nem acordo operacional, sobre
o uso das armas e da violência e da guerra; sobre a criação e
legitimidade das novas leis internacionais; nem tampouco sobre o
funcionamento do novo sistema financeiro global. Neste sentido, a
história parece ter confirmado, em parte, nossa suspeita e angustia,
logo depois do fim da Guerra do Golfo :" tudo indica que este novo
poder global se definirá pela bússola de interesses norte-americana.
Mas neste caso, seguirão indeterminados os verdadeiros limites e
contornos do exercício da força e do medo, porque é cada vez mais
difícil identificar, no espaço interno internacionalizado dos Estados
Unidos, o que seja verdadeiramente o "interesse nacional" da
sociedade norte-americana. A menos que se considere que este
interesse seja definido, permanentemente, pelo complexo militar-
industrial e pelas estruturas supra-nacionais de gestão da guerra,
lideradas pelos Estados Unidos.
Por isto, se pode afirmar com toda certeza que se a Guerra do Golfo
decantou um novo princípio ordenador nas relações internacionais, ela
deixou sem resolver uma questão decisiva: quais serão os limites, ou
quem limitará o uso abusivo da força e do medo ? A impressão que fica
é que Guerra do Golfo deixou um verdadeiro "buraco negro", no lugar
da Guerra Fria. Uma espécie de vácuo assustador, por onde pode se
dispersar em múltiplas direções entrópicas, a enorme força liberada
pelo exercício, sem limite, do poderio tecnológico-militar dos
Estados Unidos.
Se isto for verdade, se pode concluir que esta Guerra, ao invés de
conduzir a humanidade para um novo patamar civilizatório, e
contribuir para a universalização dos valores construídos pela razão
cosmopolita da Europa iluminista, pode ter sido apenas a ante-sala de
uma nova era, que será caracterizada pela força e o medo, instalados
dentro da própria coalizão vitoriosa."
Olhando dez anos depois, fica claro que naquele momento, o mundo
começava a conviver com a ausência de algum tipo de bipolarização
internacional, que sempre existiu deste o século XVI, mesmo nos
momentos em que o sistema geopolitico, parecia apoiar-se apenas num
equilibrio multipolar de poderes. Nestes séculos, não foram só as
hegemonias, foram estas bipolaridades que se transformaram no eixo de
referencia de todo o sistema.
Foram elas, em última instancia, que permitiram o funcionamento do
próprio "equilíbrio de poder" entre os demais estados, apoiado no
exercício eficaz de algum tipo de "negarquia" internacional: " uma
combinação de forças capaz de conter o uso arbitrário e egoístico do
poder, e de garantir seu emprego, pelo menos em parte, para a
promoção do bem comum". Foi assim, e não com base em falsos
consensos, que foram sempre criadas as regras de convivência e
competição, entre as Grandes Potências do "nucleo central" do sistema
político mundial.
Depois do fim da Guerra do Golfo e da URSS, na década de 90, foi
possível driblar o problema, graças ao extraordinário sucesso
econômico americano, responsável pela força de sua ideologia
globalitária e de sua proposta de coordenação hegemônica da economia
mundial. Mas na entrada do século XXI, este projeto perdeu força
frente às evidencias da polarização do poder e da riqueza, que
ocorreu à sombra da utopia da globalização.
Logo depois, começou a desaceleração do "milagre econômico" americano
e assumiu a Administração Bush, confusa, arrogante, mas tentando se
orientar pela velha bússula da raison d'état, inventada por
Richelieu. Portanto, o que nos anos 90 apareceu como se fosse um
projeto de hegemonia global "benevolente", transformou-se, na década
seguinte, num projeto imperial explícito, trazendo de volta o
problema da inexistência de regras e consensos pactados, entre as
Grandes Potencias.
Problema agravado pelas fraturas internas, cada vez mais graves,
dentro do establishment norte-americano. Como se viu na luta política
fratricida, travada em torno da tentativa de impeachement do
presidente Bill Clinton. Para não falar da luta e da forma em que
George W. Bush foi conduzido à presidência dos Estados Unidos.
Está fragmentação e incerteza política interna, da sociedade
americana, somada à ausência de limites externos ao seu poder militar
e financeiro, tem sido os principais fatores de desestabilização da
nova ordem imperial americana, inaugurada em 1991.
A crise atual pode recompor a elite americana, e ajudar na
imposição/aceitação de algumas regras do novo Império. O "pacto de
guerra" que foi proposto é simples e maniqueo, não deixa lugar para
alternativas: "quem não está com os Estados Unidos, está com os
terroristas", e nenhum estado ou governante estará com os
terrotistas. Mas não há como enganar-se, porque os conflitos de
interesse são muito mais complexos, e por isto as divergencias,
tensões e incertezas se manterão dentro do "núcleo central" do
sistema, até que surja uma nova bipolaridade efetiva e eficiente.
Do ponto de vista da Ásia Menor, entretanto, os acontecimentos terão
conseqüências completamente diferentes. O historiador norte-
americano, David Abernethy, sugeriu recentemente, a hipótese de que
"dominação global" européia, obedeceu desde o século XV, à uma regra
de sucessão de fases análogas. À cada onda de expansão colonial
(seculares), sucedeu uma reversão descolonizadora ( menos
prolongada).
A última delas, depois da II Guerra Mundial. Se esta sucessão for uma
tendencia e se mantiver vigente, o novo "pacto de guerra", proposto
pelos norte-americanos, pode se transformar numa nova fase expansiva
da "dominação global", e começar pelo estabelecimento de um
"protetorado militar", em algumas regiões da Ásia Menor e da
Palestina, compartido pelos aliados, mas mantido, em última
instancia, pelos anglo-saxões.
Neste caso, o "pacto de guerra" se transformaria numa nova versão do
Congresso que se realizou em Berlim, em 1885, quando as Grandes
Potências européias decidiram entre si, as regras da repartição
colonial da África e da Ásia.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105327
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