Paulo Freire, o educamor

17/09/2001
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Estivesse vivo, Paulo Freire faria 80 anos no dia 19. Poderia, então, contemplar o mapa-múndi e reconhecer-se no Brasil, na Guiné-Bissau, em Angola e Moçambique, Nicarágua e Índia. Educador do porte de um Anísio Teixeira, Paulo não se dava a narcisismos. Suas feições de guru, emolduradas pela barba longa e prateada, traduziam-lhe bem o espírito. Homem de laboratório, ali onde a alquimia das letras produz o saber crítico, refluía frente a academicismos e erudições. Nordestino, proferia fala mansa, cantada, com gestos suaves sob o olhar luzidio. Como Maiakósvski, Paulo era quase só coração. Ele revolucionou a alfabetização ao criar o método que ensina algo mais do que associação de letras e sílabas. Sua matéria-prima não era o abedecedário. Era a vida. Para ele, a ação precede o verbo; o sujeito, o predicado; a práxis, a teoria. De pá, Paulo propunha ao pedreiro proferir uma porção de palavras parecidas. Todas extraídas do linguajar cotidiano e do manusear trivial. E a pá transmutava-se em paz, papai, pano, pavio, resgatando o educando das trevas da ignorância. Paulo não ensinava, exceto que educar é amar. Fazia aprender. Não se postava como um provedor dotado de conceitos. Extraía do educando o saber que nem sempre se condensa em livros, mas tece os fios imprescindíveis da vida: culinária, metalurgia, comércio, arte popular. Essa gente, ao pronunciar sua palavra, desvenda a própria cultura. Aos poucos, apropria-se de uma verdade lapidar: não há ninguém mais culto do que o outro. O que há são culturas paralelas, socialmente complementares. Palavras são prenúncio de existência e pronúncia do mundo. Instauram e restauram o ser, revelam a essência, decifram o mistério. Antes de saber lê-las e escrevê-las, é preciso dizê-las e vivê-las. São tão poderosas que o próprio Deus quis ser Verbo e o Verbo se fez carne, concretude humana. Paulo apontou o caminho da síntese, ele que era homem de fé cristã: a carne se faz Verbo; a natureza, cultura; o humano, divino; a imanência se funde na transcendência, pincelando o mundo de transparência. Paulo descobriu que as palavras são maternais. Geram significados e imprimem sentido. Forjam-se em eixos e expressam beleza. Nominam o criado, o inventado, e até o sonhado. Fora da palavra não há salvação. Se Ivo via a uva, Paulo o ensinou a ver também a parreira e a fazer da uva vinho e do vinho celebração. Ivo aprendeu a transmutar a uva em ave, a ave em Eva, Eva em ovo, num aprendizado pascal. De uma simples palavra mãe, terra, enxada ou tijolo, Paulo ensinava a decantar sílabas, recriar significados, numa profusão de vocábulos que se cumpliciam em frases, adensando-se em orações prenhes de sentido. Na gramática freiriana, palavras são predicados de um sujeito vivo, real, que faz de sua ação sobre o mundo a escrita da vida e o significado da história. Uma fértil amizade uniu-me a Paulo. Graças a Ricardo Kotscho, escrevemos juntos "Essa Escola chamada Vida" (Ática). Éramos vizinhos em São Paulo. Comungávamos a mesma fé, em igual afeto. Se Ivo viu a uva, eu vi Paulo também no dia em que ele via Deus.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105315
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