Educação e fascínio da fama
23/08/2003
- Opinión
Revestir uma pessoa de fama precoce é correr o risco de destruí-la.
Nem para os adultos é fácil lidar com perdas. Todos nós construímos
uma auto-imagem, adornada por funções, posses, talentos e relações
familiares e sociais. Basta um desses aspectos ficar arranhado para
irromper a insegurança.
Por isso o desemprego, que aumenta com as políticas neoliberais, é
tão humilhante. Perdem-se a identidade social, a segurança quanto à
sobrevivência da família e a qualidade de vida. Já reparou quando lhe
apresentam a uma pessoa? Não é suficiente saber-lhe o nome. Há
curiosidade em conhecer o que ela faz, em que trabalha. A falta de
emprego é como o chão que se abre sob os pés. Cai-se no vazio. Entra-
se em depressão. Porque emprego significa salário que, por sua vez,
representa a possibilidade de aluguel, alimentação, saúde, educação
etc.
Há pais que nutrem nos filhos falsos ideais: destacar-se como modelo
numa passarela, tornar-se desportista de projeção, alcançar a fama
como atriz ou ator. O sonho congela-se em ambição e a criança passa a
dar-se uma importância ilusória. Ainda que alcance dois minutos de
fama, como dizia Andy Warhol, os tempos de vazio na platéia são
infinitamente maiores que os momentos de aplausos.
O adolescente mergulha no estresse de corresponder à expectativa. Tem
de provar a si e aos outros que é capaz, o melhor ou a mais charmosa
e inteligente. Passa então a viver, não em função dos valores que
possui, mas do olhar do outro. Convencido de que é o supremo - e
incapaz de enfrentar o desmoronamento de seu castelo de areia - ele
recorre ao sonho químico, à viagem onírica, ao embalo das drogas.
A família, perplexa, se pergunta: como foi possível? Logo ele, tão
inteligente! Foi possível porque a família confundiu brilhantismo com
segurança. Considerou-o um adulto precoce. Exigiu vôo de quem ainda
não tinha asas crescidas. Deixou de dar-lhe atenção, colo, carinho.
Os diálogos em casa passaram à instância da mera funcionalidade:
mesada, compras, viagens, problemas escolares, pequenas exigências da
administração do cotidiano.
A culpa é de quem? Da sociedade que cultua certos detalhes, criando
uma estética da consumo: moça loura e magra, executivo de carro
importado, locutor com sotaque carioca, atriz em sua mansão com
piscina, férias em Nova York etc.
A construção da personalidade é um jogo de relações e comparações,
arte mimética de abraçar como modelo aquele que merece a nossa
admiração. Hoje, as figuras paradigmáticas não se destacam pelo
altruísmo dos ícones religiosos (Jesus, Maria, José, Francisco de
Assis etc.) ou de personalidades como Gandhi, Luther King, Che
Guevara e Teresa de Calcutá. A estética do consumo rejeita a ética
dos valores. O sucesso tudo justifica: o adultério virtual, a filha
gerada pelo pai de aluguel, o cantor negro que se metamorfoseia de
branco, os negócios escusos do empresário notoriamente corrupto.
Famílias e escolas deveriam educar seus alunos para lidar com perdas.
Afinal, morrem não só pessoas, mas também sonhos, projetos,
possibilidades. A mídia deveria dar destaque a pessoas altruístas.
Contudo, como esperar que se enfatize a solidariedade num mundo
regido pela competitividade? Como falar de modéstia em tempos de
exibicionismo? Como valorizar a partilha se tudo gira em torno da
lógica da acumulação?
Cada povo tem o desgoverno que merece. As drogas não se transformaram
na peste do século só por culpa do narcotráfico. Elas são uma
quimérica tábua de salvação nessa sociedade que relativiza todos os
valores e carnavaliza até a tragédia humana. Não se culpe, indagando
onde você errou, como professor ou pai. Pergunte-se pelos valores da
sociedade em que vive. Em que medida tais valores, invertidos e
pervertidos, não se entranharam também em nossas cabeças,
envenenando-nos a alma?
Inútil fechar-se no pequeno mundo doméstico e julgar-se tão protegido
quanto Robinson Crusoé em sua ilha. Somos uma teia de relações. O
fluxo mundial invade o lar, a mente, o espírito, através da TV e do
computador, da publicidade e da mídia. Quanto mais considero que a
política é o reino privado dos políticos, no qual não pretendo entrar
nem influir, tanto mais eles, acólitos do dinheiro, configuram este
modelo de sociedade em que o sucesso predomina sobre o trabalho, a
riqueza sobre a honestidade, a estética sobre a ética.
Uma sociedade doente produz, inevitavelmente, seu clone no interior
de cada família. Ali está ele, concentrando esforços para que se
recupere, demandando sofrimentos, consumindo recursos. Querem curá-
lo, como se o fruto não tivesse sua raiz na árvore. Quanto mais sadia
uma sociedade, mais sadias as pessoas. Mas, para isso, são precisos
valores e o fim da exclusão social.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105248
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