Cruzada em defesa das nações pobres
12/07/2001
- Opinión
Gênova, Itália.
Quem diria? O grande líder anti-G-8 não virá a Gênova e,
no entanto, mobiliza aqui cerca de 5 mil jovens, vindos
de todas as regiões do país: o papa João Paulo II. Seus
pupilos são tratados pela mídia italiana como "Papa
boy¹s", filiados a sessenta associações católicas.
O líder local é o cardeal Tettamanzi, de irradiante
simpatia. Sua maior bênção aos manifestantes consistiu em
declarar a um público de 2 mil jovens que "uma criança
africana com Aids vale mais do que o Universo inteiro".
Recado direto aos chefes de Estado e de governo que
chegam à sua arquidiocese no dia 20. Um dos temas da
agenda do G-8 é a mortandade que a Aids provoca na
África, onde os laboratórios se recusam a fornecer
remédios a baixo custo.
Os "Papa boy¹s" ocupam os teatros de Gênova pela manhã;
à tarde distribuem-se por quatro igrejas, onde debatem
temas sociais, como dívida externa e pobreza do Terceiro
Mundo; e à noite, no Parque dell¹Acquasola, cantam diante
do monumento do soldado desconhecido.
Gênova transformou-se numa "cidade blindada". O
aeroporto estará fechado entre os dias 19 e 22. O porto
fecha um dia antes, pois Bush e Chirac ficarão hospedados
em porta-aviões. O Palácio Ducal, onde ocorrerão as
reuniões do G-8, é o epicentro da "zona vermelha"
quatro quilômetros quadrados de acesso restritíssimo,
segundo as autoridades, Será? Ontem mesmo foram
distribuídas, pelas ruas da cidade, cópias dos crachás de
acesso. A única diferença do original é que, em lugar de
"fac-símile", os autores do apócrifo imprimiram "funk-
símile".
Há quem garanta que a CIA bloqueará todos os celulares
dentro da "zona vermelha", para evitar o risco de
acionarem uma bomba. O governo italiano promete
monitorar, por satélite, todas as comunicações
eletrônicas durante o G-8. E enviou para a cidade mais 20
mil policiais, sem contar a segurança, quase toda
secreta, de cada um dos oito senhores que concentram em
suas mãos o poder mundial. As forças de segurança temem,
em especial, os manifestantes ingleses, espanhóis e
alemães, considerados violentos.
Crentes e ateus querem fazer ressoar o apelo do papa no
último domingo: "Escutem o grito de dor dos países
pobres". O tema da dívida externa consta da pauta do G-8
e centraliza a atenção dos manifestantes. Para os adeptos
da campanha mundial pela anulação da dívida das nações
mais pobres do mundo, lançada em 2000 pelo Vaticano, a
proposta nada tem de absurda e, muito menos, de original.
No século 18, os EUA anularam suas dívidas com a coroa
britânica, assim como, em 1991, a Polônia cancelou o
pagamento de parte de sua dívida externa. Nem por isso
cessou o fluxo de financiamento externo privado para
aqueles países. A anulação de 51% da dívida externa da
Alemanha, em 1953, propiciou o crescimento econômico do
país, como já ocorrera com a Rússia em 1918.
Segundo a ONU, em 1999 os 48 países mais pobres do
mundo, com 600 milhões de pessoas, só receberam 0,5% dos
investimentos diretos estrangeiros. Mais da metade
daqueles investimentos privilegiou apenas quatro países:
Brasil, China, México e Tailândia. O dinheiro,
entretanto, não entrou de mão beijada, pois 80% do
montante serviram para a aquisição de empresas locais,
que passaram ao controle de conglomerados transnacionais,
reduzindo os postos de trabalho e, de quebra, a soberania
nacional.
Uma questão levantada nos debates de Gênova concerne ao
Brasil: a legitimidade da dívida contraída sob a ditadura
militar. Na opinião de alguns entendidos, ela é
juridicamente ilegítima, segundo precedentes históricos.
No fim do século 19, os EUA assumiram o controle de
Cuba, após a guerra que levou a ilha do Caribe a
conquistar sua independência da Espanha. Madri exigiu que
a dívida cubana com a coroa espanhola fosse assumida
pelos EUA. Washington fez ouvidos moucos e ainda
qualificou o peso da dívida de jugo imposto ao povo
cubano. A comissão estadunidense encarregada do caso
alegou que a dívida havia sido criada pelo governo
espanhol para o seu próprio benefício, e que os credores
aceitaram o risco dos investimentos.
Nos anos 30, a Corte de Arbitragem Internacional, da
qual participava o juiz Traft, presidente da Corte
Suprema dos EUA, admitiu que eram nulos os empréstimos
concedidos ao presidente Tinoco, da Costa Rica, por um
banco britânico estabelecido no Canadá. O argumento foi
que o dinheiro não servira aos interesses do país, mas
sim aos privilégios de um governo não democrático. O juiz
Traft declarou: "O Royal Bank deveria provar que o
dinheiro foi emprestado ao governo para usos legítimos. O
banco não o fez".
Isso se repetiu nas Filipinas em 1986, após a queda do
ditador Marcos; em Ruanda, em 1994; na África do Sul,
após o fim do apartheid; na República Democrática do
Congo em 1997, depois da queda de Mobutu; na Indonésia,
em 1998, após a saída de Suharto etc.
Os grandes bancos europeus e estadunidenses são
denunciados aqui como cúmplices da extorsão provocada por
ditadores sobre os povos que governaram. Mobutu arrecadou
uma fortuna quase dez vezes superior ao PIB de seu país.
A Nigéria possivelmente estaria menos pobres se os bancos
restituíssem a ela os tesouros roubados pelo ditador
Abacha.
O curioso é que todo esse discurso contrário ao atual
modelo de globalização não soa como um chavão de
esquerda. E ninguém sequer menciona o fantasma do
comunismo. Respaldado pelo papa, repercute como um apelo
ético, o que obriga aos poderosos sócios do G-8 a pelo
menos demonstrar que têm um pingo de sensibilidade diante
do clamor dos pobres.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105246
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