O enigma do chapéu
20/06/2001
- Opinión
Quem escreve sabe como as palavras gostam de brincar de esconder. Quando
mais se precisa delas, fogem da memória e ficam, impronunciáveis, na ponta
da língua. O jeito é recorrer a um sinônimo que não exprime exatamente o
que se queria dizer, mas quem não tem cão.
Há dias vi-me indeciso quanto à grafia de chapéu gelô (ou gelo ou gelot?),
tão freqüente em fotos e filmes antigos. Recorri ao Vocabulário
Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, que
reúne 350 mil vocábulos. Nada. Fui à coleção de dicionários de que
disponho: Caldas Aulete (meu preferido), Michaelis, Aurélio, Celso Luft,
Sacconi, Biderman e Simões da Fonseca. Em vão. Nenhum registra o termo que
adjetiva o chapéu preto, arredondado, de copa saliente, que Freud usava.
Não é comum encontrar uma palavra de uso corrente nos últimos cem anos
não-dicionarizada, exceto gírias e neologismos mais recentes. Perdido,
recorri às minhas fontes vivas, que dominam com maestria o nosso idioma.
Primeiro, a meu pai, Antônio Carlos Vieira Christo, lexicólogo, íntimo de
todos os dicionários, meu mestre em letras. Vasculhou toda a sua
biblioteca, sem resultado.
Parti para os amigos. Deonísio da Silva, autor de "De onde vêm as palavras"
(Siciliano), 30 mil exemplares vendidos, também nada encontrou em seus
alfarrábios. Teimoso, buscou um velho usuário do chapéu, de quem obteve a
informação de que o vocábulo deriva do nome da loja que o vendia em Paris:
Gelot. Provavelmente um nome de família.
João Ubaldo Ribeiro respondeu-me com a seguinte mensagem: "O vocabulário
ortográfico da ABL não registra a palavra, em nenhuma das duas formas. O
nome do chapéu é francês e vem do nome de seu criador. Só não sei se leva
acento ou não, no "e". Mas, já que a palavra entrou na língua portuguesa
há décadas, acho que você pode usar perfeitamente "gelô", em vez de um
pernóstico "gelot", ainda mais sem saber, como eu não sei, se há o acento.
Creio que não, porque o "e" aí deve ser uma vogal átona, para não ser
confundido com um "j'ai l'eau", ou qualquer coisa assim. Enfim, é o máximo
que posso informar-lhe. Na minha opinião, você devia cometer esse ato de
canibalismo lingüístico e escrever "gelô".
Aceito a sugestão, fico com chapéu gelô, mas só na ortografia, pois a
cabeça, sob o sereno e o sol quente, prefiro cobri-la com boné de pala curta.
Hoje em dia é moda pesquisar a história de detalhes, da vida privada à vida
da privada. Não sei se há por aí uma história do vestuário, como vi na
coleção de trajes exposta num museu de Coimbra. Os arqueólogos da moda
deveriam dedicar-se a estudos que nos expliquem por que o chapéu
desapareceu da indumentária. Veja a foto de uma assembléia operária no
início do século passado. Nenhuma cabeça descoberta.
No Brasil, começamos despidos, nas aldeias indígenas, e agora parece que
estamos retornando ao ponto de partida. Em pouco mais de meio século de
vida, vi desaparecer, além do chapéu (minha mãe tinha caixas deles
empilhadas sobre o guarda-roupa, à espera do próximo casamento), as
abotoaduras, o prendedor de gravata, a galocha (os sapatos de hoje
resistem à chuva?), a combinação, a anágua, o baby-doll etc. Torço pelo
fim da gravata.
Tudo muda, menos o guarda-chuva.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105223
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