A morte não se improvisa

31/10/2000
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2 de novembro é o dia dos mortos, aqueles que habitam a morada para a qual nada se leva deste mundo, exceto o que se traz no coração. Morrer é inevitável. E, em geral, imprevisível. Contudo, a morte tornou-se um tabu em nossa sociedade. Nas escolas, nem se toca no tema. Já quase não há, como em Minas da minha infância, agonia em casa, velório com carpideira, missa de corpo presente, luto familiar etc. Tem-se a impressão de que a morte equivale a uma falta de educação. Corre-se da casa para o hospital e, deste, para a capela do velório junto ao cemitério. Enterra-se qual um cão atirado a uma cova, sem orações, encomendações ou bênçãos. Como a vida é o dom maior de Deus, há em cada um de nós o instinto irrefreável de permanecer vivo por mais tempo. Uma cidade no interior de São Paulo contava, nos anos 60, com 6 livrarias e 1 academia de ginástica. Hoje, há 60 academias e 3 livrarias. Malha-se o corpo, pratica-se cooper, adota-se a alimentação macrobiótica ou vegetariana, tudo centrado na obsessão de manter o corpo em forma e prolongar a existência. MasŠ quem malha o espírito? Sabemos todos que é trágico ser contemporâneo de uma época em que a fonte de vida, o sexo, transformou-se, com a disseminação do vírus HIV, em possibilidade de morte. A roleta da sorte gira ao contrário. Eis os dois pólos de nossa breve existência: sua origem, na relação sexual entre um homem e uma mulher, e seu fim, na morte. Nascemos pela vontade dos outros e morremos em absoluta solidão, da qual até Jesus teve medo. É uma passagem tanto mais sofrida quanto mais apegos colecionamos neste mundo. Ao entretenimento pós-moderno serve de paradigma a bipolaridade pornografia (vida) e violência (morte). Frente a programas e filmes, novelas e fotos - que revelam o corpo alheio qual carne dependurada sobre o balcão do acougue - nossa intimidade torna-se refém de fantasmas inconscientes. Seduz-nos o corpo aparentemente jovem e perfeito, dotado de estética e/ou robustez, expressão de saúde e prazer, assim como a destruição do corpo e a anulação da vida, pela violência, nos traz o alívio de quem sobrevive na roleta russa. É a dialética de eros e tanatos, analisada por Freud. Morrem os outros, nós não. A felicidade é conjugada na primeira pessoa; a infelicidade, na terceira. João Cabral de Melo Neto dizia que era ateu, mas tinha medo do inferno. Essa inquietação diante do mistério da morte é que nos faz perguntar pelo sentido da vida. Levada ao extremo, constitui-se no caldo de cultura favorável às religiões centradas não na justiça neste mundo, mas na salvação individual no outro. Não era esta a espiritualidade de Jesus. Nos quatro evangelhos, só duas perguntas fundamentais lhe são feitas: "Senhor, o que faço para ganhar a vida eterna?" Essa interrogação jamais saiu da boca de um pobre. E, ao ouvi-la, Jesus reagia com irritação. Era a indagação dos que já tinham assegurada a vida terrena e, agora, queriam investir na poupança celestial: Nicodemos, o homem rico, Zaqueu, o doutor da lei na parábola do Bom Samaritano etc. A segunda pergunta era a dos pobres: "Senhor, que devo fazer para ter vida nesta vida? Minha filha está doente e quero vê-la sã; minha mão está seca e necessito trabalhar; meu olho é cego e preciso enxergar" etc. A esses, Jesus - que veio "para que todos tenham vida e vida em abundância" ­ respondia com compaixão. Nossa cultura hedonista. voltada ao consumismo, teme encarar a morte. Assim, ignora o sentido da vida. Os animais são felizes porque não sabem que vão morrer. Nós, humanos, somos os únicos a ter consciência de que o fim é inelutável. Podemos prolongá-lo, jamais evitá-lo. Se não aprofundamos o sentido da vida, tememos o seu fim, pois só vale a pena morrer se descobrimos por que vale a pena viver. Só não temem morrer aqueles que muito amam e fazem de suas vidas sementes para que outros alcancem a plenitude da vida. "O amor é mais forte do que a morte", acentua o "Cântico dos Cânticos". Nosso pragmatismo, eivado de prepotência, como se fôssemos eternos, nos faz esquecer que a morte não se improvisa. Ela é uma passagem tão radical quanto o nosso parto. No entanto, fingimos ignorá-la. Se tivéssemos um pouco mais de fé, clamaríamos como Teresa de Ávila: "Morro por não morrer". Era o suspiro da amada na expectativa do encontro com o Amado. Sem nenhum indício de demissão, pois Teresa imprimiu à sua vida uma tal densidade amorosa que jamais faria eco ao lamento de Fernando Pessoa: "Fui o que não sou". "No nascimento, somos filhos de nossos pais; na ressurreição, de nossas obras", pregava Vieira. Ser o que se é, eis o que a vida nos propõe. Omitir-se desse desafio, ainda que em troca de fama e fortuna, ter e poder, é antecipar a morte e distanciar-se da mais feliz experiência humana, a de entrar no céu antes de morrer, pela porta da oração e, sobretudo, da ação amorosa que engendra vida. Isso é um dom divino, uma tarefa política e uma experiência mística.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105175
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