O leopardo
19/05/2001
- Opinión
A prefeitura de San Pellegrino, famosa estação de águas da Itália, no verão de
1954 promoveu um encontro de escritores. Lucio Piccolo, poeta lírico, despontou
como a grande revelação do colóquio. Vindo da Sicília, ali chegara
desconhecido, acompanhado por um primo que, alheio ao mundo literário, manteve-
se calado todo o tempo: Giuseppe Tomasi, príncipe de Lampedusa. Anos depois, o
escritor Giorgio Bassani, autor de "O Jardim dos Finzi Contini", recebeu de
Palermo um manuscrito de autor desconhecido. Percebeu logo que se tratava de
uma obra-prima e não tardou a descobrir o autor: Tomasi de Lampedusa. Mas ele
havia morrido no ano anterior, em 1957, aos 61 anos. Ao retornar de San
Pellegrino, Lampedusa decidira levar ao papel uma história que o perseguia há
vinte e cinco anos, inspirada em seu avô. De um só fôlego, entregou-se à tarefa
nos anos de 1955 e 1956. O texto, só publicado em 1958, é um clássico entre os
romances históricos: "O Leopardo", posteriormente filmado por Visconti.
O talento de Lampedusa consiste em emoldurar, no retrato da família Salinas,
toda a história da Itália na segunda metade do século 19, quando Garibaldi
unificou o país. Dele a famosa frase, refrão de toda a narrativa: "É preciso
que tudo mude para ficar como está".
Escrever um bom romance exige vivência, cultura e, como os vinhos de qualidade,
maturação. Em "O Leopardo" até o cão Bendicò é tão nítido como personagem
quanto o príncipe Fabrizio e seu sobrinho Tancredi. Naquele novelo de família
siciliana estão contidas a política italiana, a história milenar da ilha, os
costumes e a cultura da época, o requinte da nobreza, o ocioso poder do clero e
a miséria dos camponeses. Tudo bem temperado com senso de humor.
Um texto possui tanto mais valor quanto mais revela o seu contexto. Escrever é
escavar: memórias, histórias, conjunturas, idéias e perfis. Não basta alinhavar
vocábulos. É preciso desbordar a vida, sem meias nem peias. O bom romancista
não escreve com a cabeça, escreve com a pele. Mas com uma condição, essencial
para produzir uma obra de arte: o valor estético. No romance, a forma importa
mais que o conteúdo. Felizes, porém, os autores que, como Lampedusa, logram
unir as duas coisas.
No Brasil, o romance passa por uma crise de expressão e estilo. Influenciado
pelo cinema, muitos parecem escritos para virar roteiros de TV. Carecem de
qualidade estética ou daquilo que, na opinião de Aníbal Machado, em Cadernos de
João, define a boa qualidade literária: "O melhor livro é aquele que,
violentando a sensibilidade e os hábitos mentais do leitor, perturba-lhe por
algum tempo o equilíbrio interno e o restabelece depois em plano e clima
diferentes".
https://www.alainet.org/pt/articulo/105163
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