Lista de natal
12/12/2000
- Opinión
Neste Natal, não quero o Papai Noel das promoções comerciais, das ceias
pantagruélicas, dos presentes caros embrulhados em afetos raros. Quero o
Menino Jesus nascido no coração manjedoura, esperança acesa num pasto de
Belém, Maria a cantar que os abastados serão despedidos de mãos vazias e os
pobres saciados de bens.
Não quero o Papai Noel das lojas enfeitadas, do celofane brilhante das cestas
de produtos importados, das garrafas em que os néscios afogam tristezas
rotuladas de alegrias. Quero o Menino palestino em busca de uma terra onde
nascer e viver, o Menino judeu arauto da paz na Terra aos homens e mulheres
de boa vontade, o Menino poupado da estupidez das guerras.
Neste Natal dispenso abraços protocolares e sorrisos sob medida, sentimentos
retóricos e emoções que encobrem a aridez do coração. Quero o amor sem dor, a
oração só louvor, a fé comungada no sabor de justiça.
Não quero presentes dos ausentes, a litúrgica reverência às mercadorias, a
romaria pagã aos templos consumistas dos shopping-centers. Quero o pão na
boca da criança faminta, a paz que se alarga dos espíritos atribulados aos
campos de batalha, o gozo de contemplar o Invisível.
Neste Natal, não quero essa pavorosa troca de produtos entre mãos que não se
abrem em solidariedade, compaixão e carinho despudorado. Quero o Menino solto
no mais íntimo de mim mesmo, semeando ternura em todos os canteiros em que as
pedras sufocam as flores.
Não quero esse ruído urbano que esmaga a alma, os ouvidos aprisionados aos
telefones, o olfato condenado por odores insalubres, a boca em cascatas de
palavras inúteis, despidas de verdade e sentido. Quero o silêncio
indevassável de meu próprio mistério, o canto harmônico da natureza, a mão
que se estende para que o outro se erga, a fraternura dos amigos abençoados
pela cumplicidade perene.
Neste Natal, não me interessam as oscilações dos índices financeiros, as
promessas viciadas dos políticos, os cartões impressos a granel, cheios de
colorido e vazios de originalidade. Quero as evocações mais ternas: o cheiro
do café coado de manhã por minha avó, o som do sino da matriz, o rádio Philco
exalando sabonete Eucalol enquanto a babá me via brincar no quintal.
Não quero as amarguras familiares que se guardam como poeira nas dobras da
alma, as invejas que me alienam de mim mesmo, as ambições que me tornam
tristes como as galinhas, que têm asas e não voam. Quero os joelhos dobrados
no átrio da igreja, a cabeça curvada ao Transcendente, a perplexidade de José
diante da gravidez inusitada de Maria.
Neste Natal, não irei às ruas febris dos mercadores de bens finitos, nem
disfarçarei em algodão a neve que se amontoa em meus dessentimentos ou
prenderei falsas sinetas no frontispício de minha indiferença. Quero o
segredar dos anjos, a alegria desdentada de um pobre reconhecido em seu
direito, a euforia imaculada de um bebê acolhido em braços amados.
Não viajarei para longe de mim mesmo, à procura de uma terra na qual eu
próprio me sinta estrangeiro, falando um idioma cujo significado me escapa.
Mergulharei no mais profundo de minha subjetividade, lá onde as palavras se
calam e a voz de Deus se faz ouvir como apelo e desafio.
Neste Natal, não entupirei o meu verão de castanhas e nozes, panetones e
carnes gordas. Nem deixarei o que me resta de sensatez resvalar pelo gargalo
de uma bebida destilada. Porei sobre a mesa Deus fatiado em pão, a entornar
de vinho cálices alados, e convidarei à festa os famintos de bem-
aventuranças.
Não rezarei pela bíblia dos que professam o medo, nem acenderei velas aos
guardiães do Inferno. Não serei o alpinista de cobiças desmedidas, nem o
coveiro de utopias libertárias. Desfraldarei sobre o telhado a bandeira de
sonhos inconfessos e semearei estrelas no jardim de meus encantos, lá onde
cultivo essa doce paixão que me faz sofrer de saudades do que é terno.
Neste Natal, farei de minhas gravatas uma imensa corda para enforcar o
cinismo das convenções sociais e descerei um por um os degraus dos podres
poderes, até ingressar nos subterrâneos repletos de luz dos servos da
esperança. Não sonegarei sentimentos e encantos.
Andarei nu pelas ruas para que todos vejam como o tempo enrugou delicadamente
a minha pele, imprimiu flacidez a esses membros prenhes de história e cobriu-
me de pêlos alvos como o frescor da velhice coerente.
Não aceitarei os brindes de mãos que não se tocam, nem irei às ceias dos que
se devoram. Não comerei do bolo que empanturra corações e mentes, nem
deixarei que a aurora do Menino me surpreenda empanzinado de sono.
Alimentado como um pássaro, sairei na noite feliz guiado pela estrela dos
magos; dançarei aleluias entre as galáxias da Via Láctea e, pela manhã, em
cada raio de sol injetarei poesia para que todos acordem inebriados como se
fossem borboletas livres do casulo.
Neste Natal, não direi adeus ao século que finda e ao milênio que se encerra,
nos quais recebi a vida, a fé e mais perguntas que respostas. Pisarei
cuidadoso entre mortos inocentes e alentos frustrados, e haverei de conferir
no monitor eletrônico quantos foram os dissabores disseminados pela fera
disfarçada de humano.
De mãos dadas com o Menino, deixarei que as águas lavem o avesso de minha
pele e, em seguida, caminharemos silentes rumo ao novo século e ao terceiro
milênio. E eu estarei com os olhos fixos no Menino para que seu verbo se faça
carne em meu coração de pedra, cuidando para que ele cresça despregado da
cruz, exaltado pela vitória inelutável da Ressurreição.
https://www.alainet.org/pt/articulo/104994
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