A guerrilha das mídias alternativas

21/08/2014
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Já há consenso nas esquerdas políticas e sociais brasileiras de que a mídia privada, controlada por meia dúzia de famílias, manipula informações e deforma valores. Ela atua como “aparelho privado de hegemonia do capital”, conforme a clássica definição de Antonio Gramsci. Ainda segundo o intelectual italiano, ela cumpre o papel de autêntico partido das forças da direita. Esta postura, que atenta contra a democracia, hoje é ainda mais agressiva. Como confessou recentemente Judith Brito, ex-presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ) e executiva do Grupo Folha, a velha mídia adota a “posição oposicionista” diante do governo Dilma, já que a “oposição está fragilizada”. Não é para menos ela também passou a ser rotulada de “PIG – Partido da Imprensa Golpista”, a partir de uma ironia difundida pelo irreverente blogueiro Paulo Henrique Amorim.

Diante desse poder ditatorial, inúmeros atores sociais já perceberam que têm dois desafios simultâneos e titânicos pela frente. O primeiro é o de quebrar a força deste exército regular das classes dominantes. Daí a urgência da luta pelo novo marco regulatório do setor, que hoje se expressa na campanha liderada pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) de coleta de 1,4 milhão de assinaturas para o Projeto de Lei de Iniciativa Popular (PLIP) da mídia democrática. O segundo é o de multiplicar e fortalecer os veículos próprios de comunicação das forças populares, construindo uma mídia contra-hegemônica que se contraponha às manipulações do poderoso PIG. Estes instrumentos atuam como uma guerrilha no enfrentamento ao exército regular dos impérios midiáticos, numa prolongada operação de cerco e fustigamento.

A história do Brasil está repleta de ricas experiências de construção desta “imprensa alternativa” – desde os anarquistas, no início do século XX, passando pelos comunistas durante várias décadas, até chegar à heroica fase do jornalismo de resistência à ditadura militar. Na fase recente, estas iniciativas se multiplicaram, conectaram-se com as novas tecnologias e adquiriram novo impulso. Elas ainda não conseguiram se constituir em fortes veículos nacionais contra-hegemônicos, como já ocorre em outros países da rebelde América Latina. Mesmo dispersos, porém, estes veículos promovem a guerrilha informativa e incomodam os barões da mídia. O texto a seguir trata de quatro destas experiências, que não são as únicas: a imprensa sindical, a TV dos Trabalhadores, o movimento dos “blogueiros progressistas” e os novos coletivos de ativistas digitais.

A força da imprensa sindical

A imprensa sindical, iniciada pelos anarquistas estrangeiros, pode ser considerada a origem da “mídia alternativa”. Ela enfrentou a violência das classes dominantes, com o empastelamento de vários jornais e a prisão de centenas de gráficos e comunicadores populares. Na frágil democracia brasileira, inúmeras vezes abortada por golpes militares e ondas autoritárias, a imprensa sindical atuou com coragem e dedicação, contrapondo-se aos ataques dos veículos patronais contra as lutas dos trabalhadores por seus interesses imediatos e futuros. Após o colapso das concepções anarquistas, os comunistas passaram a hegemonizar o sindicalismo e sempre trataram como prioridade a comunicação nas entidades de classe.

O golpe militar de 1964, apoiado pelos mesmos barões da mídia dos dias atuais, interrompeu o avanço das lutas dos trabalhadores. Os generais intervieram em centenas de sindicatos, prenderam seus líderes, nomearam “pelegos” e transformaram as entidades em “repartições públicas”. A imprensa sindical quase faliu – restando apenas boletins de “colunas sociais”, de confraternização dos velhos pelegos com os empresários e os carrascos da ditadura. Mas a luta dos trabalhadores não cessou, com a criação de centenas de “jornais de fábrica” e a construção de oposições sindicais. Com a retomada do movimento grevista, no final da década de 1970, a imprensa sindical voltou a florescer.

Pesquisa realizada pelo ex-metalúrgico Vito Giannotti e pela jornalista Cláudia Santiago, do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), apontou a existência, no final dos anos 1990, de centenas veículos sindicais. Somente nas entidades filiadas à CUT, a maior central do Brasil, trabalhavam mais de 300 jornalistas, que produziam mensalmente quase 7 milhões de exemplares de jornais e boletins. Como brinca Vito Giannotti, “maior do que a redação cutista só existia a das Organizações Globo”. De lá para cá, ocorreram muitas mudanças na área, mas o movimento sindical não perdeu a sua força comunicativa. Ele passou a investir também em programas de radio e tevê, na internet e em outras ferramentas.

Segundo o jornalista João Franzin, criador da Agência Sindical, esta vasta produção tem papel fundamental na conscientização e organização dos trabalhadores. “A imprensa sindical brasileira publica mais de 10 milhões de exemplares por mês, basicamente boletins e jornais, distribuídos nos locais de trabalho, entregues de mão em mão, no contato direto entre os sindicalistas e os trabalhadores”. Para ele, ainda há problemas nesta comunicação, especialmente na linguagem e no trato dos temas nacionais. Mas ele garante que estes meios alternativos são decisivos para os avanços da luta classista. “A imprensa sindical informa, orienta e combate abusos. Ela ajuda o trabalhador a construir sua cidadania concreta”.

A experiência da TV dos trabalhadores

Foi no bojo destes avanços sindicais que nasceu a TVT, a primeira emissora outorgada a uma entidade de trabalhadores. Ela entrou no ar em 23 de agosto de 2010, resultado de 23 anos de pressão do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista sobre o governo. Formalmente, ela pertence à Fundação Sociedade, Comunicação, Cultura e Trabalho, entidade cultural sem fins lucrativos, criada e mantida pelo sindicato. Vários conteúdos próprios são produzidos pela equipe, em especial um jornal ao vivo de trinta minutos – “Seu Jornal”. Também foram firmadas parcerias com a TV Brasil e outras emissoras públicas, que completam a grade de programação. Os programas são transmitidos na tevê a cabo e pela internet.

A decisão de investir numa emissora de televisão, conhecida pelos elevados custos, evidenciou a compreensão da direção sindical sobre o papel da comunicação na atualidade. Segundo Valter Sanches, presidente da fundação, a TVT emprega quase 100 profissionais. Só com equipamentos foram investidos R$ 1 milhão. O custo mensal da programação gira em torno de R$ 400 mil. E para garantir a outorga da concessão pública, o sindicato precisou fazer um aporte financeiro de R$ 15 milhões com recursos próprios na conta da fundação. Mesmo assim, a outorga só foi conquistada em outubro de 2009, por meio de um decreto assinado pelo ex-presidente Lula, que se projetou na luta operária do ABC paulista.

Todos estes investimentos e esforços empreendidos, segundo Valter Sanchez, foram necessários e valem a pena para enfrentar as manipulações da mídia monopolizada. Já nas greves operárias do final da década de 1970 ficou evidente o ódio de classe das emissoras privadas de televisão, que fizeram de tudo para satanizar os grevistas e derrotar o nascente movimento operário. “O sindicato abraçou o desafio de esperar 22 anos na fila por uma concessão de radiodifusão porque percebeu a importância estratégica da comunicação. Entendeu que precisamos lutar, também, no campo da mídia”. Para alavancar ainda mais o alcance da TVT, a fundação articula agora novas parceiras e novos investimentos.

No final de julho passado, a fundação firmou um acordo com a direção do Sindicato dos Bancários de São Paulo para produzir novos programas e ampliar o alcance da transmissão. A TVT não consegue ainda mensurar sua audiência, mas desde o ingresso na tevê a cabo, via NET, os sinais da vitalidade da emissora ficaram mais nítidos. A meta agora é ampliar este alcance, dialogando principalmente com a juventude que saiu às ruas na jornada de junho de 2013. “As pessoas buscam ter voz, querem divulgar suas ações. E para isso não existe espaço na mídia tradicional”, explica Valter Sanchez. Ele lembra que a TV Globo foi um dos alvos dos protestos juvenis, o que revela o despertar de maior senso crítico na sociedade.

O barulho dos “blogueiros sujos”

O senso crítico realçado pelo dirigente da TVT tem buscado também outros canais de expressão, que se somam às antigas formas de organização da sociedade, como sindicatos, entidades estudantis e movimentos comunitários. Neste sentido, a brecha tecnológica aberta com a descoberta e a difusão da internet permite que novos atores entrem em cena, produzam conteúdo e ampliem ainda mais o vasto campo da chamada “mídia alternativa”. No mundo inteiro, a experiência do ciberativismo, que ganhou impulso no início do século, desafia o poder dos impérios midiáticos, resultando na queda abrupta da tiragem dos jornalões, na redução da audiência de emissoras de televisão e na crise do seu modelo de gestão.

No Brasil, o mesmo fenômeno está em curso e já provoca muito barulho, incomodando os barões da mídia. Através de sites e blogs, milhares de ativistas digitais fazem o contraponto às manipulações da velha imprensa, divulgam os movimentos sociais, lutam pela ampliação da democracia no país. No seu esforço cotidiano da guerrilha informativa, eles ajudam a quebrar o monopólio da palavra da mídia monopolizada. Não é para menos que geram tanto ódio das forças autoritárias, contrárias à verdadeira liberdade de expressão. José Serra, o eterno candidato deste setor, inclusive criou o rótulo de “blogs sujos” para tentar estigmatizar estes militantes virtuais. Na sua irreverência, os blogueiros até adotaram o título!

Segundo Leonardo Vasconcelos Cavalier Darbilly, em sua tese de doutorado para a Fundação Getúlio Vargas, “o surgimento da blogosfera política no Brasil, caracterizada pela divergência com relação ao posicionamento de grande parte da mídia tradicional, ocorreu ao longo da década de 2000”. O primeiro “blog sujo” foi o Viomundo, criado pelo jornalista Luiz Carlos Azenha em 2003. Em 2005 nasceram os blogs de Renato Rovai e Antônio Mello; Conversa Afiada, de Paulo Henrique Amorim, e o blog de Luis Nassif surgem em 2006; no ano seguinte nasce o Blog da Cidadania, criado por Eduardo Guimarães; já o blog Escrevinhador, de Rodrigo Vianna, apareceu em 2008.

Neste período, por todos os cantos do país – nas capitais e também em importantes cidades do interior – brotaram centenas de páginas pessoais que se contrapõem às forças políticas conservadoras e que polemizam com a mídia tradicional. Muitos jornalistas, descontentes com a cobertura enviesada da chamada grande imprensa, utilizam esta ferramenta para expor as suas posições criticas e independentes. Mas a blogosfera não se limita a este setor, permitindo que profissionais de diversas áreas exponham seus pontos de vista sobre vários temas. A maioria dos blogs ainda é produzida de forma amadora, sem recursos financeiros ou apoio logístico. Em função destes obstáculos, muitos não resistem por muito tempo.

Mesmo assim, a blogosfera foi se constituído num importante espaço da mídia contra-hegemônica. Ela atua como uma rede horizontal, sem a organicidade dos sindicatos e dos movimentos sociais estruturados, mas demonstra grande capacidade de interferir nos debates nacionais. O seu primeiro grande teste ocorreu eleições presidenciais de 2010, quando ela ajudou a desmascarar a cobertura partidarizada do famoso PIG. Com o tempo, os sites e blogs progressistas também se articularam, promovendo quatro encontros nacionais que primaram pela busca da “unidade na diversidade”. Hoje, a blogosfera é um instrumento decisivo na construção de uma influente mídia alternativa no Brasil.

Mídia Ninja e os novos coletivos

Outro elemento decisivo neste rico processo foi o florescimento de novos coletivos digitais, que agregam jovens criativos e ousados nascidos na era da internet. O mais conhecido é o Mídia Ninja – nome do grupo “Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação”. Ele foi criado em 2011, mas ganhou projeção nacional durante da jornada de protestos do ano passado, que abalou o país. Usando câmeras de celulares e unidades móveis montadas em carrinhos de supermercado, estes guerrilheiros virtuais transmitiram ao vivo centenas de passeatas, atos e choques com a polícia em todo o Brasil. Em alguns momentos, eles chegaram a pautar a paquidérmica e rancorosa mídia tradicional.

O Mídia Ninja teve origem na experiência do Pós-TV, uma iniciativa inovadora organizada pelo coletivo cultural Fora do Eixo. Sempre identificado com as lutas libertárias, ele cobriu a “marcha da maconha”, a “marcha das vadias” e as manifestações em defesa dos povos indígenas Guarani-Kaiowá. A partir da “jornada de junho”, porém, ele passou a ser alvo das forças de direita, sediadas nas redações da chamada grande imprensa. Este ataque resultou numa maior aproximação com os movimentos sociais organizados e com os setores da mídia alternativa. Como argumenta Rafael Vilela, integrante do coletivo, “ficou mais nítida a necessidade da união com os movimentos sociais na luta pela democratização do país”.

Para ele, a comunicação e o luta social são inseparáveis. “Por isso entramos em lugares que a mídia convencional não vai. Damos voz direta aos personagens, sem intermediários”. Na sua visão, o “Mídia Ninja é um laboratório de comunicação, que visa desmascarar o que a grande mídia edita e mostra como única verdade existente”. Do ponto de vista do futuro, Rafael Vilela defende que a iniciativa “não é nem deve ser um núcleo de cobertura de protestos, mas sim um canal midiático cidadão, trabalhando com diversas editorias, que vá dos protestos ao lazer e à cultura, sem abrir mão da crítica”. Neste rumo, a experiência é uma importante contribuição ao fortalecimento da mídia alternativa no Brasil.
 
22 de agosto de 2014
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/102658
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