Tentando entendê-la pela raiz, em busca de superação:
Sob o impacto da crise
22/08/2005
- Opinión
Movemo-nos sob o impacto de uma grave crise ético-política de desdobramentos
imprevisíveis. Tanto mais grave quando percebemos vir associada a outras
crises – ou, antes, a outras dimensões da mesma crise de gravidade não menor -
de sociedade, de Estado, de Governo, de valores...
Mesmo sabendo que sua complexidade e seu alcance, na medida em que têm a ver
com a dinâmica característica do Capitalismo (ainda que cuidadosamente
ocultada aos olhos do grande público), extrapolam a dinâmica interna do Estado
brasileiro, nossa reflexão contempla mais diretamente fatos mais recentes,
cujo epifenômeno se dá na sociedade brasileira.
E para não recuarmos muito no tempo, nossa reflexão parte de notícias e
episódios mais recentes, tais como as misteriosas circunstâncias do
assassinato do então prefeito Celso Daniel, de Santo André, em 2002, e, mais
proximamente, o escândalo Valdomiro Diniz, em fevereiro de 2004, e, ainda em
curso nos últimos três meses, recomeçando em maio de 2005 com o flagrante de
propina a um alto funcionário da Empresa dos Correios, logo seguido de
entrevistas e depoimentos prestados pelo Deputado Roberto Jefferson à mídia, à
Comissão de Ética da Câmara de Deputados e à CPMI dos Correios, chegando, até
hoje (11/08/2005), ao depoimento do conhecido “marqueteiro” Duda Mendonça,
principal artífice-maquiador da campanha presidencial de Lula, cujo contrato
teria custado a fortuna de 25 milhões de reais...
Desde então, os espaços da mídia – dos canais de rádio e televisão aos
jornais; das revistas de âmbito nacional aos espaços virtuais, inclusive as
charges animadas; e daí ao cotidiano de casa, da rua, da escola, do trabalho,
das igrejas - não cessam de repercutir, dia após dia, conforme os interesses
em voga, uma sucessão de escândalos e graves deslizes éticos envolvendo
figuras exponenciais da combalida República brasileira, especialmente o núcleo
dirigente do Partido dos Trabalhadores, em sua relação promíscua com os
aparelhos do Estado, por meio de lídimos representantes governamentais, em
conluio com membros do Parlamento (possivelmente dezenas de membros da Câmara
de Deputados) e segmentos de empresas estatais e figuras do setor empresarial.
Estarrecida, a sociedade se indigna, especialmente os segmentos populares mais
organizados, diante dos sucessivos escândalos de milionários saques bancários
feitos por prepostos de deputados e de partidos da base de apoio ao Governo,
transportados em malas e distribuídos em quarto de hotel, em troca de sua
adesão ao Governo, por ocasião das votações de projetos de lei de grande
impacto para a sociedade.
Escândalos que constrangem e dilaceram a sociedade, seja pelo inédito volume
de recursos movimentados (fala-se até aqui em algo em torno de 55 milhões de
reais, só em relação ao esquema Marco Valério), seja pela freqüência, seja
principalmente pelo número e perfil dos envolvidos, em particular dirigentes e
parlamentares do PT em conluio com o ex-ministro da Casa Civil, principal
figura governamental e mais próxima do presidente dessa mal nascida e sempre
agonizante República.
Ao mesmo tempo, importa ter presente que o que agora vem a público é a apenas
o epifenômeno dessa crise, a ponta do “iceberg”, sua manifestação mais
impetuosa e mais à vista. Ainda que sem deixar de acompanhar atentamente essa
avalanche de denúncias, acusações, depoimentos, entrevistas, diariamente
noticiados pela mídia, parece impossível um entendimento razoável do caráter,
do alcance e das conseqüências dessa crise complexa e multifacetada, se não
nos ativermos a seus diferentes fatores imediatos e menos imediatos,
conjunturais e estruturais.
Nesse contexto, sentimo-nos historicamente interpelados a refletir sobre
várias questões que nos são colocadas, dentre as quais:
- Até que ponto o que anda acontecendo no Brasil não é mais uma vulpina
armação dos grupos dominantes?
- Ou seria uma ardilosa antecipação, pelas forças da oposição de direita, da
campanha presidencial de 2006?
- Por que tanta perplexidade ante denúncias de corrupção atribuídas a figuras
dirigentes do PT e do Governo Lula, se práticas de corrupção têm sido uma
praxe, ao longo da história da sociedade brasileira?
- É possível a qualquer partido no Governo ou a qualquer Governo manter-se
completamente blindado de deslizes por parte de membros isolados?
- É admissível generalizar-se a acusação ao conjunto do Governo ou ao conjunto
do PT, em função dos erros cometidos por alguns de seus dirigentes?
- Episódios como o do assassinato de Celso Daniel, ex-prefeito de Santo André;
o caso Valdomiro Diniz e a série de denúncias mais recentes (de maio para cá)
são mesmo isolados, meros “acidentes de percurso” na trajetória de qualquer
força política?
- Em caso de comprovação das acusações assacadas, o que teria levado
dirigentes tão importantes a tão graves deslizes?
- Haverá saída para esse impasse? Em caso positivo, que pistas ajudariam nessa
direção?
Em conformidade, por conseguinte, com a linha de interpretação seguida em
outras ocasiões (cf. Calado, 1977; 1998, 1999, 2003, 2004), e com apoio em
analistas como Octavio Ianni, Michael Löwy, Francisco Martins Rodrigues, César
Benjamin, José Comblin, José Arbex Júnior, Emir Sader, Frei Betto, Leonardo
Boff, Francisco de Oliveira, Ivo do Amaral Lesbeaupin, Pedro Ribeiro de
Oliveira, João Pedro Stédile, Paul Singer, A. Bogo, além de análises
procedentes de outras forças de esquerda como PSTU, PSOL, PCO, PCB, entre
outros, o presente texto tem o objetivo de contribuir com o esforço de
avaliação mais detida das últimas ocorrências. Para tanto, começamos por
sublinhar as características ético-políticas da atual fase do Capitalismo,
dita “neoliberal”, cujos traços favorecem sobremaneira a multiplicação das
manifestações de expedientes de corrupção, por toda parte, não apenas no
Brasil. Em seguida, tratamos de nos debruçar sobre o quadro específico da
sociedade brasileira, sublinhando mais detidamente a responsabilidade mais
direta das forças de esquerda, nesses episódios, sem esquecer o envolvimento
incessante das forças de direita, por ser mais aberto e notório. Por fim,
tentamos-extrair dessa crise ainda em curso alguns ensinamentos, em busca de
ensaiar passos de superação.
1) Capitalismo não rima com ética (ou a “ética capitalista” em tempos de
globalização neoliberal)
O processo de acumulação de riquezas, especialmente no modo de produção
capitalista, pressupõe o recurso a mecanismos de pilhagem, com ou sem manto
legal. Impossível que tenha lugar dentro de um quadro de relações eticamente
aceitável. A não ser que se trate da “ética capitalista”. A despeito das
variações históricas e da intensidade e forma dos mecanismos de acumulação,
uma marca lhe é peculiar: apelar para a exploração das camadas populares.
Na Social Democracia, por ser menor a gula dos protagonistas, estes até
conseguiam, aqui, ali, passar a idéia de respeitar certos limites éticos. A
exploração se fazia, mas por conta do intenso apelo às políticas
compensatórias, passava-se uma idéia de respeito aos direitos dos
trabalhadores. Isso muda, porém, com o advento do chamado Neoliberalismo, mais
intensamente presente nos governos Margareth Thatcher e Ronaldo Reagan, no
final dos anos 70 e começos dos anos 80. A máscara supostamente humana do
Capitalismo caía definitivamente. E a que se passa a assistir? De forma
didática, apontemos algumas de suas principais características:
- discriminação (expressa ou velada) das vontades dos protagonistas,
manifestada, por exemplo, pelo privilégio do veto dos membros permanentes do
Conselho de Segurança da ONU, o que depõe, com toda a evidência, contra
qualquer propósito aceitável de se respeitar o jogo democrático;
- consentimento (expresso ou tácito) a qualquer dos protagonistas da
iniciativa de invasão a outro país, qualquer que seja o motivo alegado,
ficando os casos de eventual legítima defesa subordinados à decisão
democrática da assembléia geral do países-membros, sem qualquer privilégio,
inclusive de veto;
- autorização seletiva do odioso privilégio de fabricação ou armazenamento de
armas de destruição em massa (não apenas as armas químicas e biológicas): o
caso das grandes potências e de seus apadrinhados, inclusive Israel;
- práticas explícitas de pilhagem, por parte das grandes potências, em favor
dos grandes conglomerados transnacionais, contra os países periféricos, seja
mediante a política de crescente endividamento, imposição de política de
privatização dos Estados nacionais, seja por meio do flagrante desrespeito às
regras elementares de reciprocidade que devem reger as relações comerciais
entre os povos, seja por meio da “ciranda financeira” do chamado capital
volátil, ou ainda por meio de evasão de divisas (1) e de “n” mecanismos de
sonegação combinados com a escandalosa renúncia fiscal feita por instâncias
governamentais;
- abusiva liberdade de movimento e de lucro extorsivo dos conglomerados
financeiros, sem qualquer controle social, entre outras.
- o pano de fundo se dá com a extraordinária intensificação do processo de
globalização (fenômeno antigo, mas recentemente com ritmo inédito), a afetar
as mais distintas esferas da realidade social;
- no âmbito econômico, tem lugar o processo de re-estruturação produtiva (em
moldes capitalistas, claro), impulsionado pela terceira revolução tecnológica
em curso (na informática, na microtecnologia, na engenharia genética, na
robótica, na fibra ótica, nos novos materiais, etc., etc.);
- a entrada em cena do segmento financeiro do Capital como hegemônico, o que
não quer dizer sem ligação orgânica com os demais setores componentes da malha
do Capital;
- o agressivo assédio dos grandes conglomerados transnacionais, a imporem
notadamente aos países periféricos, por meio das grandes potências e de seus
organismos multilaterais, políticas sociais de privatização do patrimônio
público, de sucateamento e desmonte dos serviços públicos essenciais (no caso
da educação, por exemplo, vale assinalar que o Banco Mundial chega a ser
apontado como um órgão que atua como verdadeiro ministério da educação dos
países periféricos...);
- a quase totalidade dos governos dos países periféricos rende-se à imposição,
inclusive procedendo à alteração de sua própria Constituição e leis
ordinárias, a fim de adequá-las à nova ordem dominante;
- feito à moda do Capitalismo em sua atual fase/face, isso tem acarretado
fenômenos como o desemprego estrutural, a hipertrofia da economia informal,
precarização das relações de trabalho, supressão ou drástica redução dos
direitos sociais, privatização de empresas estatais, reordenamento jurídico ao
gosto do mercado, sucateamento ou desmonte dos serviços públicos essenciais,
entre outros desdobramentos;
- adequação da mídia à nova onda do mercado e sua grade de valores;
- expansionismo militar, à frente Estados Unidos, mas com o apoio das
potências do G7.
Tantas outras marcas teríamos por certo a acrescentar. Contentemo-nos, porém,
com essas, tendo bem presente a expressiva dinâmica do entrelaçamento das
diferentes esferas da realidade social. O que, aqui, aparece como componente
mais direta da esfera de produção carrega também fortes marcas de concepções,
práticas e formas de exercício do poder. De modo semelhante, o que à primeira
vista se manifesta mais diretamente pertinente à esfera política traz
consideráveis implicações intersecções de natureza política e cultural...
2) Rememorando retalhos da história da sociedade brasileira
Falcatruas e corrupção são antigas no Brasil. O que há de novo são as forças
atuais envolvidas...
A história da sociedade brasileira, à semelhança de tantas outras na América
Latina e Caribe e alhures, tem sido tecida de híbridos fios, de variado matiz.
Fios de relações solidárias (que nos remetem às tribos indígenas, aos
quilombos, às comunidades camponesas, aos mutirões urbanos, etc.) e de
dominação (ver a herança do pacto colonial, em suas mais distintas dimensões)
e fios de resistência (vr os movimentos sociais populares), e também de fios
éticos, misturados, ora de decência, ora de uma sucessão de episódios graves e
menos graves de deslizes ético-políticos. Aqui nos deteremos mais diretamente
sobre estes últimos e mais recentes.
À primeira vista, para um analista mais atento aos bastidores da política, no
quadro histórico da sociedade brasileira, não haveria motivo para tanta
surpresa ou perplexidade. Indignação, sim. Os escândalos financeiros e as
falcatruas governamentais e político-partidários são, de resto, triste praxe,
ao longo da história de nossa República sempre tão mal resolvida, desde suas
origens. E muito antes, mesmo: lembremo-nos, a propósito, que desde a famosa
Carta de Pero Vaz de Caminha, já se fazia uso de expediente nada ortodoxo de
condução da coisa pública... Mais recentemente, tivemos o caso Collor de
Mello, as dezenas de escândalos e falcatruas nos oito anos de Governo FHC...
Aqui, ali, combatem-se os “excessos”, movem-se ações judiciais, cassam-se os
mais afoitos, e, não tarda, tudo volta à estaca zero. Em breve, a corrupção
tem raízes mais fundas, em nossa sociedade e em tantas outras. Trata-se de um
mal endêmico, ainda que tal registro a ninguém que se probo considere isente
de combatê-lo. Inclusive pela raiz, coisa a que muito poucos se dispõem. Por
que, então, tanta indignação? Por que tal ímpeto de publicidade, não raro,
justo da parte de quem – a mídia - mais se empenha em encobrir as cotidianas
falcatruas das forças dominantes?
Vê-se logo que algo de novo há, desta feita. E há mesmo. Desta vez, são outros
os protagonistas. Melhor dito: os co-protagonistas. Diversamente dos atores de
antes, agora são justamente as forças que se reclamam de esquerda, e mais
precisamente o Partido dos Trabalhadores e seus aliados, que protagonizam os
escândalos. Justo esses cuja trajetória de conquistas sempre esteve
diretamente vinculada à bandeira da ética na política.
A trajetória do PT, com efeito, desde suas origens, é marcada por princípios
ético-políticos de que dão prova, não apenas seus principais documentos
fundantes e as deliberações de seus congressos e encontros, como também
diversas de suas iniciativas concretas reconhecidamente grávidas de tais
princípios.
Se assim é, que fatos ou circunstâncias determinaram ou condicionaram essa
mudança de postura? Passemos a sublinhar alguns.
- o progressivo afastamento das lutas sociais -
- a crescente ocupação dos espaços instituídos -
- o deslumbramento com a máquina governamental -
- aposta cada vez maior nas instâncias governamentais como principal ou
exclusiva ferramenta de mudança social -
- o aliancismo como ferramenta de acesso às instâncias executivas e
parlamentares do Estado -
- profissionalização da militância, agora transformada em agentes partidários
e governamentais -
- retração ou inibição dos seus habituais procedimentos de organização
partidária -
- abandono à manutenção do Parido pelo conjunto de seus filiados como
procedimento político;
- desproporcional contribuição financeira a cargo dos eleitos em detrimento da
proveniente dos militantes de base;
- progressiva centralização das deliberações partidárias;
- abdicação dos critérios para filiação partidária;
- progressiva alteração nos procedimentos de embates eleitorais -
- recurso tático abusivo ao currículo de seus quadros dirigentes;
- cultura do endividamento como recurso para cobrir gastos de campanhas
eleitorais;
- abuso dos gastos em marketing e propaganda (avidez por parecer)
- apelo ao controle indireto da estrutura sindical e dos movimentos sociais;
- agravamento do corporativismo, traduzido no compromisso com os “meus” ainda
que contra a causa...
- promoção e exercício da prática de esquizofrenia individual e coletiva...
- mudança de tratamento ou endurecimento em relação aos críticos internos ao
Partido;
- progressivo e deslumbrante aproximação de outros “amigos” e outros
aplausos...
- aposta na perpetuação do “poder”
- assujeitamento às regras do mercado para além do exigido, em troca de opção
pelas políticas compensatórias;
- perda do horizonte de classe (o amplo leque dos excluídos: mulheres das
classes populares, vítimas da prostituição, trabalho infantil, assalariados,
desempregados, sub-empregados, sem-terra, sem-teto, Índios, Negros, portadores
de deficiência, jovens vítimas da violência social, migrantes, presos comuns,
moradores das florestas vitimadas pelos crimes ecológicos com a conivência de
representantes de órgãos governamentais...)
- controle tático das empresas estatais...
Alguns ensinamentos da crise, em busca de superá-la
O que devemos recolher desse emaranhado de descaminhos e falcatruas,
ocorrências fraudulentas, situações de impasse, desdobramentos ainda em curso?
Uma infinidade de lições. O que se segue é um primeiro esboço, resultante das
impressões mais fortes que o momento propicia. Vamos resumir em dois pontos:
evidências “esquecidas” possíveis pistas de superação.
Evidências “esquecidas”
Também neste item, optamos por expor um leque de pontos ou situações que
chamamos de evidências “esquecidas”, por serem bem familiares a militantes
históricos do PT. Para um entendimento mais consistente, convém ter presente o
dinâmico entrelaçamento que caracteriza o conjunto dessas evidências.
- Pretender lutar por uma nova sociedade para os deserdados da Terra - Isso
nada tem de novidade. E, no entanto, é uma de tantas evidências esquecidas
pelas forças que se pretendem de esquerda. A transformação social é obra dos
próprios trabalhadores e trabalhadoras. Tentar substituí-los ou dispensá-los
do protagonismo é fracasso certo. Não é a primeira vez, na história...
- Profissionalizar a militância – Profundo equívoco do PT e forças aliadas foi
distanciar-se das lutas sociais, frutuoso espaço de formação e de refontização
de seu compromisso com a causa dos oprimidos. Os movimentos sociais e as
pastorais sociais eram terreno familiar e propício à formação da consciência
de classe dos militantes, nos primeiros anos do Partido. À medida que foram
abandonando ou se distanciando progressivamente desse espaço referencial,
foram também abrindo mão da gratuidade do trabalho político e popular. A
militância, que antes fazia política movida pela paixão e pelo amor à causa
dos pobres, uma vez instalada nos espaços partidários, parlamentares e
governamentais, passou progressivamente a fazer política como “profissão”,
tendo nela sua principal (ou única) fonte de renda. Aí se acha um fator
radical da crise ora mais evidenciada.
- Apostar nos espaços e mecanismos institucionais como único ou principal
fator de mudança social – O PT nasceu com ímpeto instituinte. Lutava pela
construção de uma nova sociedade. Mesmo recorrendo a mecanismos institucionais
como o processo eleitoral, demonstrava disposição de ir além da mera
democracia representativa. Nisso se assemelha a tantos movimentos populares,
ao longo da história.
Os documentos fundantes do PT e seus primeiros anos são um atestado dessa
evidência. Como negar o cuidado com os critérios de filiação, a formação de
núcleos nos locais de trabalho, nas periferias urbanas e na zona rural? Como
esquecer a profunda inserção nas lutas do campo e da cidade? Como não recordar
a freqüência das discussões e deliberações de base? Como não lembrar que as
reuniões, encontros se davam em espaços pobres, lá onde estava a base efetiva
do partido?
Influência que se faz presente, ainda hoje, em movimentos como o MST.
Infelizmente, nem o PT, nem a CUT persistiram nessa trilha. Muito pelo
contrário, haja vista, por exemplo, os lugares hoje escolhidos para as
reuniões, encontros e congressos...
As conquistas graduais de espaços parlamentares e governamentais (Câmaras,
Prefeituras, Assembléias Legislativas, Câmara Federal, Senado, Governos
Estaduais, Presidência, Ministérios, organismos estatais...) foram mudando a
cabeça dos eleitos e sua nova base de sustentação. Pior: o acesso e o
exercício do poder parlamentar e governamental foram operando neles, salvo
honrosas exceções, progressiva mudança de postura, até sucumbirem de vez ao
fascínio do poder, já não mais importando os critérios, a não ser o cuidado de
repetir princípios de boca para fora (“Eu não mudei”)...
- Apoiar-se no currículo como arma de sustentação ético-política - Uma das
táticas mais recorrentes abusivamente utilizadas pelos dirigentes
governamentais e partidários, quando instados a se explicarem de posições
antagônicas aos princípios históricos que defendiam até há pouco tempo, vem
sendo a de remeterem seus críticos ao seu passado de lutas. “Eu tenho uma
história. Vejam meu currículo. Eu fui isso, fui aquilo...” Sempre que lhes
convém, recorrem ao passado, como ainda recentemente o fez o ex-ministro José
Dirceu, ao cumprimentar a nova ministra da Casa Civil, como “ex-camarada de
arma”...
- “Com a gente é diferente” (dizer combater os privilegiados e incorporar seu
estilo de vida) – Um ligeiro refrescar da memória dos primeiros tempos de PT
ajuda a recuperar o estilo sóbrio dos dirigentes e militantes partidários.
Mesmo os que pertenciam a segmentos médios da sociedade comportavam-se de modo
singelo, sem pompa. A convivência com os oprimidos e suas lutas ajudava a se
guardar um clima de fraternidade, nas relações políticas do dia-a-dia. Isso
também foi progressivamente abandonado, salvo exceções. Não se trata apenas de
modos de portar-se (vestir, morar, padrão de vida, etc.). Também tem a ver com
as companhias. Até os amigos são outros. Visita vai, visita vem... A ponto de,
ainda recentemente, tornar-se famosa aquela declaração do presidente acerca do
deputado Roberto Jefferson, a quem o presidente seria capaz de entregar um
cheque em branco... E isso se faz sob o pretexto de que “Eu estou acima de
qualquer suspeira”...
- O deslumbramento pelos sedutores atalhos – A cada dois anos, temos eleições
no Brasil, ora para vereadores e prefeitos, ora para a Câmara Federal, o
Senado e a Presidência da República. Mesmo em suas origens, o PT também
participava desse processo, mas de modo a buscar publicizar seu projeto de
sociedade de sociedade, manifestando-se crítico com relação ao status quo. Não
perdia a cabeça ante os tímidos resultados eleitorais. Atribuía ao processo
eleitoral o peso que lhe devia. À medida, porém, que conquistas pontuais,
nesse terreno, iam sendo alcançadas, parte significativa de seus dirigentes
passou a mudar de idéia. A proximidade do poder lhe subiu à cabeça. Veio o
deslumbramento que, desde então, não cessava de atrair um número crescente de
militantes e dirigentes. Entre outras conseqüências, podemos apontar a
progressiva mudança de critérios para a filiação de novos membros, para a
definição dos aliados, para a organização do processo eleitoral, no qual dos
comitês unificados passou-se para o “salve-se-quem-puder”. E aí...
- Substituição progressiva da aposta na busca da verdade pela aposta na
verossimilhança – A essa mesma obsessão pelos atalhos está associada a
progressiva aposta nas táticas de marketing. Já não vale a prática como
critério da verdade. Nas campanhas eleitorais e na promoção dos candidatos, o
que importa mesmo é parecer, é o investimento na aparência, na imagem que é
passada ao público. Entram em cena os magos do marketing, a exemplo de Duda
Mendonça, que tem feito fortunas, às expensas das contas púbicas...
- Negligenciar o processo formativo continuado – Quem não se lembra da euforia
provocada na militância com a iniciativa do Instituto Cajamar, voltada para a
formação da militância, das bases e dos dirigentes. A Secretaria de Formação
investindo o melhor de si nessa perspectiva. Sonho que duraria pouco, ante a
gula pelo poder... A certa altura, já nem se falava mais nisso. Ao contrário
da atenção que se passaria a dispensar nos meandros eleitoreiros... Daí para a
superestimação dos marqueteiros como peças fundamentais nos processos
eleitorais foi um pulo...
- Perder o senso da autocrítica – Não apenas os documentos, como também os
espaços formativos eram ocasiões propícias em que se acentuava o papel
irrenunciável do exercício da autocrítica. Prática que logo se esvaziaria, à
medida que deslizes eventuais foram se institucionalizando, fazendo os
implicados substituírem o recurso à autocrítica pelo discurso da racionalidade
cínica, como aliás ditava a moda “pós-moderna”...
- Atribuir a uns poucos o que é da responsabilidade do coletivo –
Diferentemente das experiências iniciais, previstas, aliás, nos textos
fundantes do PT, cuja prática habitual era de se discutir e deliberar
coletivamente desde as bases, passou-se a delegar a bem poucos os destinos do
Partido. O resultado não poderia ser diferente... Mesmo assim, é falso
restringir a meia dúzia a responsabilidade pelos descaminhos e pelos deslizes.
É praticamente impossível ao coletivo dirigente (Direção Executiva ou mesmo do
Diretório) ignorar completamente os trâmites seguidos, ainda que lhes escapem
certo detalhes. Afirmar que não tivessem sequer sinais desses deslizes não
parece convincente. Amarga experiência a merecer também funda auto-crítica,
como condição de não se voltar a repetir...
- Apostar nas políticas compensatórias como principal estratégia – Já que, a
essa altura, o rumo já terá sido esquecido, a tendência passa a ser a do
discurso da racionalidade cínica: “faz-se o possível”, “já que o sonho é
impossível, vamos tirar proveito do que pudermos”... Neste caso, dá-se adeus
às antigas propostas mudancistas, substituindo-as pela cultura
assistencialista com nomes sedutores equivalendo simplesmente à estratégia das
políticas compensatórias... Ou seja: aos ricos o bolo, aos pobres as migalhas
do banquete...Basta ver a distribuição do orçamento, no que respeito às somas
destinadas a pagamentos das dívidas aos banqueiros e às que são efetivamente
destinadas a políticas sociais... Nesse sentido, superestimou-se, a olhos
vistos, o procedimento do chamado “orçamento participativo”. Sob o pretexto de
se democratizar as deliberações de partilha do bolo púbico, escondia-se dos
participantes tratar-se de apenas frações do orçamento, já que o grosso já
estava comprometido com despesas fixas, a mando do FMI e seus aliados..
- Seguir incondicionalmente os rituais da democracia representativa – Sendo
assim, não há outro caminho “possível”, a não ser nivelar-se aos demais
“partidos da ordem”. Como não se ousa dizer as coisas pelo seu nome
verdadeiro, criam-se eufemismos autojustificadores: “Precisamos ser
responsáveis.” “Uma coisa é fazer oposição, outra é governar.” “Não podemos
quebrar o país.” “Vamos fazer as mudanças no ritmo que pudermos.” E assim por
diante. Esquece-se facilmente o que se dizia na campanha. Esquece-se que,
quando se trata de atender aos interesses das forças dominantes, se age rápido
e generosamente, até indo além do que se pede, como no caso do famigerado
“superávit primário”...
- Recurso ao endividamento partidário- Tal é a gula pelo naco de poder (que na
verdade é simbólico, já que se cumprem ordens vindas de fora, como lembrava
Otavio Ianni, justificando por que não votaria em nenhum dos candidatos a
presidente com mais chances de vitória), que facilmente sucumbem ao cativeiro
do endividamento... Após as campanhas, as dívidas se revelam astronômicas, com
ou sem que ninguém acredite na lisura do processo.
- Apostar na “Reforma Política” – Um álibi freqüente de que se tem usado e
abusado, em tempos de crise aguda, é o apelo a reformas, ou seja: “aprimorar a
legislação”. Um verdadeiro despropósito, até porque leis existem, inclusive
apropriadas... O problema é que sua aplicação é seletiva: elas se aplicam
quando convêm aos “donos do poder”...
É possível dessa crise recolher pistas de superação?
- Reavivar o rumo almejado – Caminhos de saída para a crise só haverá, caso
sejam capazes de afetar a raiz do problema. Dentro do Capitalismo, estamos
cansados de saber, crise depois de crise, que não há a mínima chance. Pode-se,
quando muito, adiar o “estouro da boiada”. Mas, volta e meia, de novo ela se
instala. Só um horizonte alternativo ao Capitalismo pode inspirar
credibilidade aos e às que se entregam à busca de uma saída, olhos fixos na
viabilização de um projeto alternativo, útero de uma sociabilidade
alternativa. Ainda que não tenhamos condições (pelo menos subjetivas) de fazer
irromper já essa transição. Podemos até abrir mão do nome dessa nova
sociedade, não do seu conteúdo, não do teor de suas relações que se vão
construindo desde já. De fato, o que importa é o conteúdo das novas relações
em que apostamos, devendo sempre comportar traços tais como: a igualdade
social, a solidariedade, a justiça social, a eliminação de todo tipo de
privilégio (de classe, de gênero, de etnia, de orientação sexual, de religião,
etc... Nunca é demais lembrar o alerta da personagem José Dolores, do filme
“Queimada”: “É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e
não saber para onde ir.” Recuperar o horizonte da classe trabalhadora, do
campo e da cidade. Compromisso que se viabiliza à medida que se vá dando prova
de que nem laços de sangue nem laços de amizade deverão ter primazia sobre o
compromisso de classe.
- Retomar os caminhos correspondentes ao rumo –
- Inverter, em favor das ações instituintes junto à classe trabalhadora
(movimentos sociais, organizações sociais de base, grupos sindicais, etc.), as
atividades hoje consagradas quase exclusivamente à atuação partidária
convencional;
- Priorizar o recurso aos meios simples (aprender das massas dos deserdados,
pelo permanente e orgânico convívio ou contato com elas; nada de se apelar
para endividamento, ou de apostar em sofisticações);
- alternância ou rodízio de funções (não permitir que as mesmas pessoas
exerçam indefinidamente as mesmas funções ou cargos);
- combate ao personalismo (a força está no coletivo, nada de culto a “gurus”,
o que não deve impedir a reverência e o justo respeito a quem, pelas suas
atitudes, se mostre fiel à causa dos deserdados);
- superação da dicotomia trabalho manual/trabalho intelectual;
- promover a união e a organização das camadas populares por meio de pequenos
grupos (não importam os nomes que lhes sejam atribuídos: conselhos, brigadas,
células, núcleos...)
- Redefinir constantemente parceiros, aliados e adversários – Tal é a dinâmica
com que mudam os cenários das sociedades, nessa fase de profunda, célere
incessante globalização, que implica constantes redefinições de quem são mesmo
nossos parceiros, nossos aliados e quem são nossos adversários. Sem isso,
podemos estar comprando constantemente gatos por lebres...
- Presentificar a memória histórica dos lutadores e lutadoras do Povo – Uma
iniciativa legada por quase todas as gerações de lutadores e lutadoras do povo
tem a ver com a disposição de fazer presente a densa memória de lutas
populares, com seus respectivos protagonistas. Reavivar a memória histórica é
apostar na necessária realimentação dos verdadeiros protagonistas, no sentido
de conduzirem a bom termo nossa justa inquietação com a classe trabalhadora.
- Exercitar a mística revolucionária nos espaços do Cotidiano – Quase todos os
graves deslizes têm por trás a presunção de que baste que um militante afirme
“pertencer ao PT” (ao que não poucos acrescentam: “Sou fundador do PT, desde
as origens.”), para logo sentir-se seguro nos seus compromissos. Se assim
fosse, não passaria de um ritual que se esgota em si mesmo. Isso não garante
nada. O que de fato garante é a renovada disposição do coletivo (movimento,
sindicato, partido...) e de cada militante, de refazer seus compromissos no
chão das relações do Cotidiano. E não com declarações de efeito ou metáforas,
mas tendo a prática como critério de verdade. Sobretudo nos últimos anos, o
exercício da mística vem sendo prática freqüente levada a sério por
importantes segmentos de protagonistas sociais comprometidas com a causa da
transformação social, na perspectiva das classes populares.
- Apostar na formação continuada – O processo de formação continuada, ou será
uma prioridade efetiva para cada militante, ou de nada valerão seus propósitos
de compromisso com a causa dos excluídos. É pelo incessante processo de
formação, que os militantes conseguem aprimorar sua capacidade perceptiva,
condição para uma intervenção qualificada nas relações sociais e humanas de
cada dia.
Tal como em tantas outras experiências amargas do passado, não devemos
esquecer que períodos de crise, desde que bem trabalhados (com autocrítica),
podem tornar-se propícios para uma retomada, em novo estilo, de rumos e
caminhos. Aqui também repousa nossa esperança.
(1) A esse respeito é bem elucidativa a entrevista feita com o Prof. Fábio
Konder Comparato (cf. Caros Amigos, no 72, março de 2003, p. 8), em que
denuncia o escandaloso expediente da Eletropaulo subsidiária da AES, em
situação de falência, nos Estados Unidos, com uma dívida de 3 bilhões de
dólares, a qual, deixando de pagar sua dívida ao BNDES (instituição pública
mantida com o dinheiro dos trabalhadores, o FAT), resolve socorrer a matriz,
remetendo-lhe um bilhão de dólares
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- Alder Júlio Ferreira Calado é sociólogo. Docente-pesquisador na FAFICA,
Caruaru – PE. Assessor de Movimentos Sociais e Pastorais Sociais, no
Nordeste.Membro do Centro Paulo Freire.
https://www.alainet.org/pt/active/9044
Del mismo autor
- Sob o impacto da crise 22/08/2005