O Governo Lula e a reforma do neoliberalismo
26/06/2005
- Opinión
Mensagem da CNBB ao Povo BrasileiroA questão de saber se o Governo Lula mantém o modelo
capitalista neoliberal colocou-se desde o início desse
governo. Talvez, a maioria dos analistas e observadores tenha
se encaminhado para um tipo de resposta segundo o qual Lula e
os partidos que integram seu governo vêem reproduzindo o
modelo capitalista neoliberal tal e qual esse modelo foi
herdado de FHC. Nós pensamos um pouco diferente.
O Governo Lula está construindo uma nova versão do
modelo capitalista neoliberal. Ele promoveu pequenas mudanças
na política econômica e na política social que, embora não
cheguem a provocar mudanças na dependência econômica e
financeira da economia nacional e nas condições de vida da
população trabalhadora, são mudanças que poderão dar um novo
fôlego político a esse modelo antinacional e antipopular de
capitalismo.
Na verdade, nenhuma das mudanças significa a introdução
de elementos completamente novos em relação ao que vinha
sendo feito anteriormente. Elas são, antes de tudo, a
radicalização de algo que começara a ser feito sob o segundo
mandato de FHC. De tal modo que, se fosse para nos fixarmos
na questão de saber se Lula dá ou não dá seqüência à política
de FHC, poderíamos dizer que ele dá seqüência ao que começou
a ser feito no final do segundo mandato de Fernando Henrique
Cardoso. Lula segue o FHC2, mas não o FHC1.
A política de exportação e a burguesia interna
O primeiro ajuste que o Governo Lula efetuou no modelo
aparece na sua política agressiva de exportação. Essa
política não rompe a hegemonia do capital financeiro, mas
atende aos interesses de parte da burguesia interna,
permitindo uma ampliação da base burguesa do modelo
capitalista neoliberal.
Ao longo do seu primeiro mandato, Fernando Henrique
Cardoso acumulou déficits crescentes e cumulativos na balança
comercial do país. Isso, de um lado, agradou o capital
internacional. Significava uma ruptura com a política
desenvolvimentista e abria o mercado interno aos produtos
estrangeiros. Porém, de outro, lado, a médio e longo prazo
essa política pode gerar problemas para o próprio capital
financeiro. O desequilíbrio das contas externas pode
comprometer a capacidade do Estado brasileiro de pagar os
juros da dívida interna e externa e, no limite, um nível
muito baixo de reservas internacionais pode, inclusive,
suprimir a liberdade básica do capital financeiro
internacional que é a liberdade e entrar e (principalmente)
de sair, sem atropelos ou prejuízos, do país. Estivemos
próximo dessa situação com a crise cambial de 1999. A fuga de
capital estrangeiro - dezenas de bilhões de dólares em poucas
semanas - foi o sintoma de um desequilíbrio mais geral que
exigia correções de rumo. Fernando Henrique Cardoso percebeu
isso. Decidiu desvalorizar o real e, para fazê-lo, atirou ao
mar seu até então fiel escudeiro, o Presidente do Banco
Central Gustavo Franco. Em seguida, desvalorizou o real,
abandonou a sua política de déficit na balança comercial e
partiu para uma política de balança comercial superavitária.
Na campanha eleitoral de 2002, já estava claro que essa
correção de rumo deveria se manter. Fernando Henrique Cardoso
talvez não fosse o timoneiro mais indicado para dirigir o
barco nessa direção. Lula, o seu partido e a CUT, ao
contrário, sempre estiveram politicamente próximos da Fiesp
quando essa protestara, ao longo da década de 1990, contra os
“exageros” da abertura comercial e contra os juros elevados.
Uma vez no governo, Lula decidiu radicalizar na direção desse
ajuste. Iniciou a sua política agressiva de exportação,
centrada no agronegócio e nos produtos industriais de baixa
densidade tecnológica, e implementou as medidas cambiais,
creditícias e outras necessárias para manter essa política. A
eleição de Lula foi uma vitória parcial da burguesia interna
que fustigou FHC ao longo dos anos 90, mesmo que sem nunca
romper com ele – chamamos de burguesia interna aquele setor
da burguesia que possui base de acumulação no território
nacional mas não apresenta um comportamento político de
burguesia nacional antiimperialista. Embora essa fração
burguesa permaneça como uma força secundária no bloco no
poder, uma vez que o Estado continua priorizando os
interesses do capital financeiro, o fato é que o Governo Lula
ofereceu para ela uma posição bem mais confortável na
economia nacional. O resultado disso pode ser visto no
comportamento da Fiesp. Essa entidade, que foi crítica dos
aspectos mais financistas da política econômica e da abertura
comercial dos anos 90, é presidida hoje por um homem de
confiança do Palácio do Planalto, que se elegeu para a Fiesp
com o apoio do governo federal. A parte da burguesia
industrial que permanece insatisfeita e recalcitrante
refugiou-se no Ciesp, em luta aberta com a Fiesp – divisão
inédita na história da burguesia industrial paulista.
Mas, por que é possível afirmar que, apesar disso, o
capital financeiro permanece hegemônico? Porque Lula estimula
a produção na exata medida em que isso atenda os interesses
do capital financeiro. Em primeiro lugar, ele estimula a
produção voltada para a exportação. Não teria sentido, de
fato, estimular a produção voltada para o mercado interno.
Isso interessaria aos trabalhadores brasileiros que aspiram
melhorar suas condições de vida, mas não ao capital
financeiro e ao governo que representa os interesses desse
capital. O objetivo da produção é a caça aos dólares e o
trabalhador brasileiro compra a sua comida em moeda nacional.
Por isso, estimula-se especificamente a exportação e não a
produção em geral. Em segundo lugar, mesmo no estímulo à
exportação, é preciso não ultrapassar a medida daquilo que
interessa às finanças. Mais dólares, mas - atenção! - desde
que esses dólares possam ser direcionados para o pagamento
dos juros da dívida. Logo, o superávit primário e os juros
devem permanecer elevadíssimos mesmo que isso limite as
exportações. Faltam estradas, portos, funcionários em
quantidade e qualidade suficientes para fazer do Brasil uma
grande plataforma de exportação de produtos primário e
industriais rudimentares – nem mesmo esse destino tacanho nos
parece permitido. Mas, do ponto de vista do capital
financeiro, não teria sentido desviar para a infraestrutura o
dinheiro que deve ser reservado para remunerar os bancos –
logo, em vez de investimentos em infraestrutura, tome
superávit primário, com ou sem acordo com o FMI. O mesmo
raciocínio aplica-se à política de juros elevados, que limita
a produção e, inclusive, a exportação. A produção deve ser
estimulada na direção (comércio exterior) e na medida que
interesse aos banqueiros e, por não compreender isso, Carlos
Lessa foi posto para fora do BNDES.
A política externa do Governo Lula faz parte dessa nova
política exportadora. Os defensores desse governo costumam
afirmar que sua política externa é a sua parte sã. Não
pensamos assim. O que todos devem se perguntar é sobre os
laços dessa política externa com a política interna do
governo. Feita essa pergunta veremos o seguinte: a política
externa visa, centralmente, ampliar mercado para os produtos
brasileiros no exterior. Seu carro chefe é a luta contra o
protecionismo agrícola dos países centrais. O G20, organizado
pelo Estado brasileiro e por outros Estados da periferia na
reunião de Cancun da OMC em outubro de 2003, visa exatamente
suspender tal protecionismo. O discurso que o Governo Lula
aciona para legitimar a reivindicação do G20 é um discurso
neoliberal que pleiteia a “verdadeira abertura” dos mercados
e concentra a luta no protecionismo agrícola. Abdica,
simultaneamente, de lutar por novas regras do comércio
internacional que favoreçam e protejam os países menos
desenvolvidos, luta que não teria nada a ver com liberdade de
comércio, e abdica também de lutar pela melhoria da posição
da economia brasileira na divisão internacional do trabalho,
aceitando nossa condição de vendedor de soja, algodão, sapato
e similares.
As políticas compensatórias
e o novo populismo conservador
O que analisamos até aqui foi o ajuste que o Governo
Lula promoveu no interior do bloco no poder em decorrência
dos vetores convergentes oriundos do desequilíbrio econômico
nas contas externas e da pressão política de parte da
burguesia brasileira – o agronegócio e a grande indústria.
Agora, vamos examinar a segunda mudança no modelo neoliberal,
mudança que diz respeito mais diretamente às classes
trabalhadoras.
Se a burguesia interna pressionou contra alguns aspectos da
política neoliberal de FHC, grande parte dos trabalhadores
resistiu a essa política, com greves, manifestações de massa,
ocupação de terras e, também, com votação em candidatos
filiados a partidos que se diziam antiliberais. Essa pressão
avolumou-se, como é sabido, ao longo da década de 1990.
Porém, para os trabalhadores organizados, o Governo Lula não
fez concessão. Continua sonegando uma política salarial e
mantém o arrocho dos salários com mão de ferro, é omisso
diante do drama do desemprego, retirou direitos
previdenciários do setor público e, também, do setor privado,
enfim, não trouxe nada de novo. Porém, o Governo Lula não
ficou parado. Ele recuperou e ampliou o populismo
conservador de Collor e de FHC. As reivindicações dos
trabalhadores organizados são preteridas, pois o seu
atendimento custaria muito caro ao capitalismo brasileiro e
ao capital financeiro, mas, ao mesmo tempo, o governo passa a
fazer demagogia social com os trabalhadores pauperizados,
desorganizados e politicamente desinformados. É importante
notar que esse novo populismo deve provocar deslocamentos na
base social do próprio PT, cujas relações com os
trabalhadores organizados está se deteriorando.
Fernando Henrique Cardoso multiplicou as bolsas e ajudas
efêmeras, incertas e insuficientes que vinham sendo
implementada desde o Governo Sarney: auxílio gás, auxílio
leite, bolsa escola, renda de emergência etc. O Governo Lula
unificou tudo isso numa bolsa família e aumentou um pouco a
dotação orçamentária para esse fim. Não são direitos, são
sobras de caixa que dependem do humor de Antonio Palocci,
isto é, do humor do capital financeiro. Ademais, o Governo
Lula está sabendo explorar simbolicamente essa iniciativa:
faz solenidades para distribuir bolsas, faz publicidade na
rádio e na TV etc. Os ministros da área social simulam
resolver no varejo a desgraça que os ministros da área
econômica promovem no atacado. Não se trata de uma proposta
de organização política dos trabalhadores pauperizados pelo
capitalismo neoliberal para fazer deles uma força pela
mudança do modelo econômico. O Governo Lula mantém essa
população pobre desorganizada e desinformada, explora-a
politicamente – para ser mais preciso, explora-a
eleitoralmente – porque sabe que a organização do povo
poderia criar uma situação que o obrigaria a substituir a
oferta de bolsas pela consolidação de direitos. Todos se
mobilizam para apresentar a pessoa de Lula como o pai dos
pobres – personagem que ele assumiu com gosto e persistência
apresentando-se, a todo momento, como o pai da “família
Brasil”. Há semelhanças entre esse novo populismo e antigo
populismo de Getúlio Vargas, mas há diferenças importantes
também. Vargas apelava aos trabalhadores para levar de
vencida ou contornar a resistência das oligarquias e do
imperialismo à industrialização do Brasil, enquanto o Governo
Lula, dando seqüência a um novo filão descoberto por Fernando
Collor, apela aos descamisados para jogá-los contra os
trabalhadores organizados de modo a fazer passar a política
do capital financeiro nacional e internacional.
As políticas compensatórias não vão resolver os graves
problemas da população trabalhadora que recebe um salário
insuficiente, que está subempregada ou desempregada. Veja-se
o mais recente exemplo desse tipo de iniciativa. O Governo
Lula criou uma bolsa para jovens que atendam os seguintes
requisitos: a) habitem grandes capitais, b) tenham entre 18 e
24 anos, c) estejam desempregados e d) tenham completado o
ciclo de ensino fundamental. Pois bem, se preencherem essa
série de quatro atributos decididos pelos tecnocratas das
políticas compensatórias poderão usufruir da bolsa? Não!
Poderão, simplesmente, entrar num sorteio para concorrer a
uma dessas bolsas de R$100,00 a ser paga ao longo de doze
meses e desde que tal beneficiário faça um curso de
qualificação profissional. Ou seja, uma espécie de loteria do
escárnio e que só pode se explicar pelo interesse eleitoral
rasteiro do governo, que foi derrotado nas eleições
municipais das principais capitais brasileiras.
que podemos esperar
Não valeria a pena apoiar uma política que, pelo menos,
oferece uma posição mais favorável para a produção, reduzindo
um pouco o poder absoluto do capital financeiro? Ou colocando
a coisa em termos sociológicos e políticos: não valeria a
pena os trabalhadores se aliarem à burguesia interna na luta
contra o capital financeiro?
Muitos poderiam responder afirmativamente a essa
questão. Há uma longa tradição na esquerda brasileira que
insiste na necessidade e na possibilidade de os trabalhadores
aliarem-se àquilo que seria uma burguesia nacional. Nós não
pensamos que esse seja um caminho correto. A política de
oferecer um certo alento à produção, como está delimitada
pelas necessidades do capital financeiro, é uma política
voltada para a exportação. Ora, isso significa, de um lado,
que reproduzimos a condição de economia dependente e
subordinada às economias centrais e, de outro lado, que
condenamos o trabalhador brasileiro a permanecer nas péssimas
condições de vida nas quais ele já se encontra. O arrocho
salarial é o principal trunfo competitivo dos produtos
brasileiros no exterior. Contar com a tecnologia do
agronegócio e da indústria no Brasil não é sensato, já que
essa tecnologia é sofrível e a infraestrutura de transporte e
de escoamento é péssima (devido à necessidade do superávit
primário para remunerar o capital financeiro); aliviar ainda
mais o imposto que incide sobre as empresas exportadoras
seria inviável (de novo o superávit primário se impõe);
desvalorizar de modo desmedido o real para aumentar a renda
dos exportadores ameaçaria o clima de segurança que o capital
estrangeiro exige para entrar e sair sem sustos do país; o
que resta mesmo é explorar ao máximo o trabalhador. O Governo
Lula mantém o arrocho draconiano sobre o salário mínimo não
apenas, e nem principalmente, para, como ele quer fazer crer,
conter o “gasto” da previdência. O arrocho do salário mínimo
é fundamental para reduzir o preço dos produtos exportados,
aumentando a competitividade das exportações brasileiras, e é
justamente por isso que os trabalhadores não têm nada a
ganhar numa eventual aliança com a burguesia voltada para a
exportação.
As mudanças secundárias promovidas na política social
tampouco trarão, como já disse, melhoria para os
trabalhadores – essas mudanças configuram algo que poderíamos
denominar social-liberalismo, política que não altera a “face
social” do modelo capitalista neoliberal. Mas, essas mudanças
estão criando, como têm indicado diversos militantes dos
movimentos sociais, uma situação política nova. De um lado, é
verdade que essas mudanças reforçam o apelo populista do
Governo Lula junto aos trabalhadores pobres e desorganizados.
O governo aproxima-se, com uma política populista
conservadora, dos mesmos trabalhadores que o derrotaram em
1989 - naquela ocasião, a candidatura Lula defendia uma
plataforma de expansão dos direitos sociais e Fernando Collor
logrou fazer com que esses trabalhadores a vissem como uma
plataforma que proporia o aumento de privilégios. Mas, de
outro lado, o PT vai perdendo força entre os trabalhadores
organizados, agravando suas tensões como esse setor. Abre-se
aqui, portanto, todo um campo de trabalho para a oposição de
esquerda ao Governo Lula. Esse campo precisa ser explorado
sem conciliação e sem sectarismo.
- Armando Boito é Professor Ciência Política da Unicamp
e Editor da revista Crítica Marxista
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