O fim do indigenismo estatal no Brasil

22/12/2014
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O indigenismo das ONGs vem se consolidando nos últimos anos no Brasil, constituindo monopólios sobre regiões e áreas, nas quais implantam uma espécie de sistema de franquia, em parceria com entidades locais, enviando ao local profissionais que sigam suas instruções e enviem de volta as informações que, por sua vez, essas ONGs devem a seus financiadores, ao prestar-lhes conta.

 

Nesse processo de consolidação e partilha das regiões ocupadas por populações indígenas, vão difundindo uma ideologia pela qual se  tenta demonstrar que a atuação do Estado em áreas indígenas seria de péssima qualidade, e que em contrapartida eles, sim, saberiam e fariam o que deve ser feito.

 

Isso era em parte verdade em outro momento do indigenismo, quando a proposta dessas ONGs era criar inúmeros projetos piloto que pudessem mostrar ao governo brasileiro e à sociedade brasileira, uma melhor forma de explorar economicamente as regiões tropicais conhecidas pelos índios e populações tradicionais. Mas, no atual sistema, cada  ONG busca apenas a visibilidade que lhe permita angariar verbas para sustentar seus funcionários, que são selecionados segundo critérios definidos por empresas de recursos humanos, pagas por ONGs de países sede tais como a OXFAM, para "limpar" quadros dentro das ONGs e encaminhar as novas contratações, segundo critérios tais como favorecer a seleção de jovens, pois estes não teriam uma opinião formada ainda sobre assuntos e seriam mais flexíveis, aceitando sem questionamentos ou resistências, posições definidas nas ONGs dos países sede, financiadas por governos e empresas de seus países, geralmente multinacionais com interesse nesta região. Isso é explícito.

 

O que se faz em campo, é o de menos. Basta informar nos relatórios que se faz. Mas, não é necessário fazer de fato. O que importa é detectar líderes e começar a partir disso uma cooptação desse indivíduo para o sistema burocrático, onde o Estado é culpado de tudo o que não se fez por ele, mas as empresas que condicionam o Estado à sua mais vulgar expressão, são isentas de qualquer culpa. Pelo contrário, essas grandes empresas até colocam seu nome em projetos locais, com base em pequenos financiamentos que oferecem, para depois debitar de impostos. Muitas vezes projetos realizados em parceria com governos, que ficam com a maior parte dos ônus, mas são os menos homenageados das festas de inauguração.

 

Assim, progressivamente, o Estado, representado pela FUNAI e outras entidades públicas que atuavam dentro de área indígena, vão desaparecendo e delegando cada vez mais suas funções às ONGs. E a pauta de melhorar os serviços estatais aos quais os índios têm direito, vai ficando esquecida, na prática das práticas, onde tudo vale a pena quando a alma é pequena.

 

Enquanto isso, os recursos de conhecimento indígena, por meio de pesquisas realizadas por antropólogos e biólogos, com guias de campo indígenas, vão sendo plotados em mapas com GPS e lançados em bancos de dados, de acesso direto pelo G-8, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, que também entrega ao governo americano cópia do estudo de radares que pagou para localizar os recursos minerais da Amazônia. Bem carinho o estudo.

 

Antropólogos de alto escalão na burocracia acadêmica passam um semestre ao ano em universidade americana, informando sobre os conhecimentos indígenas que possam ter possível utilização comercial. As pesquisas no Brasil são entravadas por inúmeros empecilhos burocráticos e legais, prejudicando todo um movimento social que caminha no sentido de utilizar esse vasto conhecimento em prol de uma economia diversa e plural. E sustentável, sem que haja fome ou pessoas marginalizadas e onde a saúde de todos seja o alvo de todos.

 

Paralelamente, toda a questão indígena fica paralisada, não se demarcam mais terras indígenas, ruralistas de crescente poder ameaçam mudar a Constituição e no fundo de tudo, temos o Ministério de Minas e Energia comandando o assunto "terras indígenas", respaldado pelos militares.

 

Dilma Roussef se cala e atende tudo que exigem. Quem cala consente. Todos calam. Vão se consolando com verbas governamentais para projetos de interesse marginal dentro do projeto político de cada entidade política. As entidades todas perdem sua função, entre elas, as próprias ONGs que ajudaram a implantar essa desordem das coisas.

 

E me refiro a "terras indígenas", e não a "povos indígenas", porque nenhum desses atores considera os povos indígenas, nem mesmo aqueles que exigem, de maneira oportunista, que sejam "consultados", respondendo a uma política implantada pela USAID que se serve de bandeiras alheias e vai se infiltrando através de suas financiadas em todas as capilaridades da questão indígena. Essas veias na questão indígena e em seus territórios foram abertas anteriormente por profissionais focados nos interesses dos índios, de fato. Mas, agora, restou apenas o franchising, a franquia dos serviços monopolistas de algumas agremiações de interesses, financiados por fontes duvidosas de todas as origens. São eles. Deles estamos falando. Eles mesmos não consultam. Trazem fórmulas prontas, com as quais "educam" as lideranças locais.

 

Não é de consultar que se trata, para os que promovem essa política, mas, sim, de ampliar o espectro de sua própria política, na qual o Estado brasileiro vá sendo excluído da questão indígena, para que esta fique absolutamente subordinada aos ditames da USAID e outras entidades ligadas aos governos da OTAN, que se preparam para explorar os recursos que foram conservados no Brasil e países da região. Todas as grandes ONGs desse campo são financiadas pela USAID. Entre si, dividem regiões de territórios indígenas e tradicionais, como um dia muitos de seus financiadores fizeram com outros territórios no Acordo de Berlim. Uma partilha.

 

Dentro dessa abordagem da USAID e outras entidades internacionais, colhem-se os conhecimentos dos índios, ao mesmo tempo que lideranças jovens são retiradas de suas terras, para que sejam levadas a fazer cursos em que sistematicamente são induzidos a acreditar que o único jeito de estar na terra que foram incentivados a largar, seria exigindo algo, sempre algo indefinido, que se denomina "direitos", por meio do sistema burocrático do Estado nacional e apoiado pelo sistema burocrático internacional das ONGs.

 

Nesse jogo, o Estado nacional deve aparecer como vilão. E a USAID, entidade representativa do governo americano, aparece na mesa de abertura de curso de pós-graduação em Desenvolvimento Sustentável iniciado em 2011 pela UnB, universidade pública brasileira, em parceria com a FUNAI, outra entidade pública brasileira. Um curso oferecido em parceria com USAID, entidade do governo norte-americano, onde metade das vagas é cativa de lideranças indígenas. Ali, na mesa de abertura, sem qualquer presença de autoridades brasileiras, em posição de honra, está  a USAID - o governo americano - palestrando sobre o indigenismo brasileiro. Enquanto o governo brasileiro, presente, parceiro, financiador da maior parte do projeto todo, fica calado, em silêncio, ouvindo o que pensa o governo americano sobre como deveria melhorar seu atendimento aos índios ali presentes, na plateia, sentado com  todas as principais lideranças do país, nesse evento de abertura que durou dois dias, em posição de subordinação, embora tenha sido o maior patrocinador do banquete.

 

O governo brasileiro aceitou esse papel. Calado. E nós, cegos, surdos, mudos.

 

Quando finalmente, em setembro de 2014, são aprovadas novas regras para pesquisa de etnoconhecimentos, que facilitam em muito essa pesquisa tão fundamental e urgente, as eleições se aproximam.

 

Entre o primeiro e o segundo turno, a FUNAI, já até sem presidente, depois de absolutamente agredida pela própria presidente do país, convoca as ONGs indigenistas representativas da política da USAID para a Amazônia e Pantanal e outras regiões do Brasil para conversar e durante dias ocorre dentro do prédio da entidade um leilão, onde milhões são negociados via BNDES para essas entidades. A renomada antropóloga mencionada já acima, que passa um semestre ao ano debatendo a associação dos conhecimentos indígenas aos grandes laboratórios que comercializam a saúde humana é uma das atrizes principais desse evento a portas fechadas. O que sairá dessa nova partilha a portas fechadas, para determinar o destino de sessenta por cento do território nacional que é a Amazônia, seu rico acervo de biodiversidades e conhecimentos sobre esses recursos, entre outras regiões do Brasil, afetadas por essas decisões que algumas entidades jamais eleitas e não representativas do povo brasileiro tomam, com o governo que elegemos mas que não nos informa sobre o que ali dentro se passa?

 

O BNDES - Banco Nacional do Desenvolvimento - foi usado para financiar um projeto da USAID e da OTAN em relação aos nossos recursos naturais e de conhecimentos. Sem qualquer consulta aos índios. E com o aval dos militares brasileiros, que via Ministério de Minas e Energia, bloquearam nos últimos tempos qualquer avanço constitucional nos direitos dos índios. No que foi escrito como sendo direito negociado democraticamente.

 

Ou seja, a gente aqui na expectativa de que a criação do banco da UNASUL possa mudar todo o quadro político-econômico que nos fazem engolir goela abaixo, mas enquanto isso, é o Banco Mundial quem dita as regras até para o BNDES, na questão indígena. E agora, os militares estão de acordo. Antes, não podia nada.

 

Inês Rosa Bueno

Ex-antropóloga, ex-indigenista.

 

 

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