O inexorável e a história
13/04/2014
- Opinión
Há um bonito forró, de autoria do compositor pernambucano Rogério Rangel, cantado Brasil afora, com uma letra cheia de metáforas impressionantes. Esse tipo de música é rara nos tempos atuais, mesmo assim conseguiu sucesso, particularmente no Nordeste. Eis alguns trechos da letra:
Se avexe não, a lagarta rasteja até o dia em que cria asas
Se avexe não, que a burrinha da felicidade nunca se atrasa
Se avexe não, amanhã ela para na porta da sua casa
Se avexe não, que a burrinha da felicidade nunca se atrasa
Se avexe não, amanhã ela para na porta da sua casa
Se avexe não, toda caminhada começa no primeiro passo
A natureza não tem pressa, segue seu compasso
Inexoravelmente chega lá
A natureza não tem pressa, segue seu compasso
Inexoravelmente chega lá
O compositor misturou o inexorável com a história de uma forma que a letra acaba por ser fatalista, como se tudo fosse determinado pelo tempo.
Nós cristãos temos o privilégio de poder considerar a história e o inexorável num mesmo pano de fundo. Afinal, o inexorável é fato. Tudo que nasce, morre. Tudo que um dia começou, um dia chega ao fim, inclusive nossas vidas individuais. “A natureza não tem pressa, segue seu compasso, inexoravelmente chega lá”. Hoje, inclusive, os cientistas dizem que também a Terra, o sistema solar e o próprio Universo um “dia” começaram e um dia terão um fim.
Mas, onde a ciência vê o inevitável, nós podemos ver o projeto do Deus Criador, que um dia tudo cria, no espaço e no tempo, que se insere pessoalmente nesse processo ao se fazer ser humano. Assim, nos eleva à condição de filhos de Deus, mas também se fazendo ser humano para todo o sempre. Além do mais, acreditamos que o inexorável não conduz à destruição, mas à plenitude. É o “pleroma” do qual falava o jesuíta Teilhard de Chardin.
Mas, também temos a história, o que podemos fazer aqui e agora, no espaço e no tempo. Nosso “fazer” é sempre relativo, sempre em transição. Nossas ações não são definitivas, a não ser que consideremos tudo que fazemos na perspectiva da única coisa que, segundo Paulo, não passa: o amor. É aqui que entram as exigências de nossos compromissos históricos, políticos, sociais, ambientais e humanitários. É nessa perspectiva da história, da busca pela justiça, liberdade, fraternidade, solidariedade, da nossa ação no tempo e no espaço que nos distinguimos dos vegetais e demais animais que tem apenas o inexorável como dimensão existencial. Enfim, só o ser humano pode fazer história.
É nessa dimensão que podemos e devemos – como tem insistido o Papa Francisco – sair de nossas casas, nosso território, nossa segurança e irmos para o inseguro, para o instável, para o terreno movediço da história.
É aqui que nos encontramos como comunidade cristã, mas também com os homens e mulheres que tem outras convicções religiosas, outras convicções ideológicas, mas que tem causas comuns conosco capazes de nos aproximar, não nos dividir.
É nesse terreno que se criam as pastorais sociais, aqueles cristãos que estão nos limites do humano-desumano, encontrando-se com o povo ao qual serve na sua real condição de vida, raramente dentro dos templos ou dos muros seguros dos templos ou mesmo de nossas casas.
É nesse terreno que nos comprometemos com lutas pela justiça, lutas políticas, lutas ambientais reais e, por vezes de aparência tão insignificantes, como defender um rio, um riacho, uma fonte de água, uma espécie que está para ser extinta.
Nós cristãos, embora sabendo que a política continua sendo a forma mais alta da caridade, como dizia o papa Paulo VI, jamais podemos perder de vista o humanitário. Não nos interessam apenas os grupos organizados, os que tem potencial revolucionário, os que podem interferir no jogo da sociedade. Para nós as crianças, os doentes, os idosos, os “improdutivos”, tem tanto valor como qualquer outro que se faz visível na sociedade.
Esse é um ponto de estrangulamento muitas vezes em nossas relações com grupos de esquerda. Não que eles não tenham razão no que dizem e no que fazem, mas nós não podemos desprezar pessoas e grupos só porque eles não tem potencial revolucionário. Além das pessoas já citadas podemos pôr nesse terreno as próprias comunidades indígenas, quilombolas, pescadoras, etc. Eles significam muito para a sociedade contemporânea em termos de valores de vida e ambiental, mas são considerados travas na concepção crescimentista reinante.
Para nós cristãos, finalmente, não há excludência entre o inexorável e a história. Saber ler o aqui e agora à luz do inevitável é o que biblicamente se chama de “sabedoria”. Não é um saber intelectual. É uma leitura de mundo, que sabe ver a totalidade da vida, valorizando o que está ao alcance de nossas ações, mas sabendo que não temos o controle sobre os processos mais vastos e profundos, mistérios que compreendemos em parte, mas não totalmente.
Num mundo imediatista, que não quer ver seu passado e nem o futuro das próximas gerações, cujo paraíso é o consumo do aqui e agora, a sabedoria cristã continua essencial para nos orientarmos para o bem, para o justo, para o irmão, sem perdermos de vista a plenitude dos tempos.
Podemos perder em coisas, para ganhar em pessoas e humanização. Podemos renunciar agora para que o outro tenha agora e depois. A beleza, o prazer, todos os bens são dons de Deus, mas eles também podem ser relativizados em vista da plenitude da vida. Absolutizar o relativo é um equívoco. Tudo é bom, mas Deus é o criador de tudo e, portanto, maior que tudo e que todos. Portanto, a sabedoria nos faz ver a vida com olhos diferentes e esse olhar pode modificar nossas atitudes para sempre.
Publicado originalmente no jornal “Alvorada”.
Prelazia de São Félix do Araguaia.
https://www.alainet.org/pt/active/72934
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