Paulo Vannuchi sobre a ditadura: “Era preciso virar a página”

02/04/2014
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Vannuchi é um intelectual brasileiro com destaque na área de Direitos Humanos
 
Paulo Vannuchi é graduado em jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e tem mestrado em ciência política também na USP. Foi ministro de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República de dezembro de 2005 a dezembro de 2010. Ele foi entrevistado, com exclusivade para o Correio do Brasil.
 
É um homem político que teve uma participação efetiva nos movimentos de esquerda durante o regime de exceção. Trabalhou na elaboração do livro “Brasil Nunca Mais”, coordenado por dom Paulo Evaristo Arns – São Paulo. Ele integra a direção no Instituto Lula e, em junho de 2013, foi eleito para uma das vagas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos- OEA.
 
– Vannuchi, como você analisa essa passagem de 50 anos do golpe militar?
 
– Sem nenhuma dúvida, este é o momento de nossa história em que o país discute mais amplamente, e sem medo, o que foram o golpe militar de 1964 e os 21 anos de ditadura. Nos primeiros anos da transição, que foi uma transição consentida, controlada pelo próprio regime, prevaleceu na sociedade brasileira um comportamento cauteloso – ou amedrontado, como se queira –, sob o pânico de que poderia ocorrer um retrocesso.
 
Era preciso virar a página. Os segmentos mais intransigentes da luta contra a ditadura não reuniram forças políticas para exigir apuração das violações de Direitos Humanos, que foram sistemáticas, estruturais, e não resultantes de meros excessos de alguns agentes do Estado.
 
Um presidente civil tomou posse em 1985 e durante os anos seguintes o Brasil deu passos vigorosos rumo à configuração de um Estado Democrático de Direito. A primeira eleição presidencial pelo voto popular direto ocorreu em 1989 e despontavam como favoritos duas das principais lideranças da oposição à ditadura: Brizola e Lula.
 
As mesmas elites que haviam convivido muito bem com o regime ditatorial, tendo sob seu comando poderosos instrumentos de comunicação de massa, como a Rede Globo, articularam uma desastrosa solução para impedir rupturas naquela transição por cima. Manipularam acintosamente a opinião pública para eleger Collor de Mello, que em dois anos já seria submetido a um processo de impeachment por escândalos de corrupção. Seguiu-se uma nova transição, sem presença acintosa dos militares, até que foi empossado em 1995 Fernando Henrique Cardoso, um opositor moderado ao regime ditatorial.
 
Sob seu governo foram dados alguns passos importantes rumo ao momento atual. O Brasil aproximou-se do sistema internacional de Direitos Humanos, vinculando-se tanto aos organismos especializados da ONU quanto da OEA, obrigando-se, portanto, a seguir as orientações e determinações desses sistemas. Os dois avanços legislativos mais importantes propiciados pelo governo FHC foram a aprovação da Lei 9.140, que criou uma Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, reconhecendo a responsabilidade do Estado por uma primeira lista de 136 opositores eliminados, e a Lei 10.559, formando uma Comissão de Anistia que passou a cuidar das devidas reparações financeiras.
 
Com Lula no governo a partir de 2003, também prevaleceu numa primeira fase uma atitude de prudência que gerou crescente desgaste junto aos segmentos de familiares de vítimas da ditadura e ex-presos políticos que esperavam muito mais da nova administração. Uma forte crise política vivida em 2005, em que os segmentos mais à direita chegaram a pensar novamente num golpe via impeachment, adiou ainda mais as iniciativas de Lula frente a esse tema.
 
Mas, a partir de 2007, quando foi lançado em agosto o livro Direito à Memória e à Verdade, elaborado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, num ato comandado no Palácio do Planalto pelo próprio Lula, o assunto foi completamente desbloqueado, seguindo-se passos consistentes de avanço durante estes últimos sete anos. Um seminário no Ministério da Justiça abriu discussão sobre a possibilidade de punição aos responsáveis por torturas, mortes e desaparecimentos de opositores. Tanto a Secretaria de Direitos Humanos quanto a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça passaram a promover regularmente seminários, exposições e inauguração de monumentos e marcos simbólicos de homenagem aos que morreram na luta pela liberdade.
 
No Judiciário, poder republicano que teve no Brasil (e em outros países também) uma atitude de vergonhosa submissão ao poder ditatorial, com raras e honrosas exceções, também tiveram início importantes iniciativas para o desbloqueio. A Ordem dos Advogados do Brasil sustentou uma ação junto ao Supremo Tribunal Federal para determinar que a Lei de Anistia de 1979 não foi recepcionada pela Constituição de 1988 e que os torturadores não estavam protegidos por ela. Em abril de 2010, com exceção de apenas dois votos discordantes, os ministros daquela corte decidiram na contramão do Direito Internacional dos Direitos Humanos em favor da inimputabilidade penal dos violadores.
 
Jovens integrantes do Ministério Público passaram a preparar ações judiciais bem fundamentadas apontando na direção contrária e exigindo a punição de quem torturou, matou e promoveu o desaparecimento forçado de opositores da ditadura. Nas primeiras instâncias judiciais, a regra vem sendo a recusa dos magistrados em dar prosseguimento às denúncias, mas já houve pelo menos um episódio em que um tribunal de segunda instância decidiu dar prosseguimento às apurações.
 
Por tudo isso, a passagem dos 50 anos do Golpe de 1964, com a quase total neutralização ética de todos os defensores da ditadura militar, valem como um momento para que se fortaleça esse esforço que tem, sempre, nos familiares de mortos e desaparecidos, tal qual na experiência argentina, o grande elemento propulsionador.
 
O elemento mais decisivo nessa reabertura de expectativas foi a criação – tardia, mas, bastante consistente e promissora – da Comissão Nacional da Verdade que foi proposta ao Brasil pela 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, em dezembro de 2008, quando era celebrado o 60º aniversário da Declaração Universal da ONU, ao aprovar o esqueleto básico do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, que Lula assinaria um ano mais tarde como Decreto Presidencial.
 
Seguiu-se um impressionante ataque orquestrado pela mídia conservadora a esse Programa, resultado de ampla discussão democrática que mobilizou diretamente mais de 14 mil pessoas em todo o Brasil, que condenava como pomo da discórdia a proposta de reabrir feridas já cicatrizadas, mas com astúcia preferiu distribuir seus alvos contra outras metas universais dos Direitos Humanos, convocando os sentimentos mais conservadores da sociedade: defesa dos direitos de homossexuais, direitos da mulher sobre sua saúde sexual e reprodutiva, caráter laico da educação de estado, mediação de conflitos rurais para que não se repitam mais episódios como o de Chico Mendes, Dorothy Stang e centenas de outros.
 
Superado o ataque conservador, em 13 de maio de 2010 o presidente Lula enviou ao Legislativo a proposta de criação da Comissão Nacional da Verdade, sendo que coube à atual presidenta da República, ela própria uma militante da resistência armada à ditadura, torturada em sua juventude de 23 anos, instalar essa Comissão num evento que reuniu no Palácio do Planalto, pela primeira vez na história do Brasil todos os presidentes da República que ainda vivem.
 
Em dezembro deste ano, provavelmente no mesmo dia 10 que celebra a aprovação pelas Nações Unidas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, será divulgado o relatório final dessa Comissão, cujo nascimento deu lugar a um fenômeno sem paralelo em outros países: foram criadas quase 100 Comissões da Verdade em todos os estados, desde comissões propostas pelos governadores estaduais, até iniciativas das Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. Além disso, centrais sindicais, universidades, segmentos profissionais como advogados, psicólogos e jornalistas articularam as suas próprias comissões, para atuar de forma subsidiária ao que está sendo investigado pela Comissão Nacional.
 
A grande expectativa é que o impacto desse relatório sirva para fragilizar ainda mais os setores hostis a esse resgate da verdade, forçando o Supremo Tribunal a rever sua danosa decisão de 2010 e permitir que nosso passado seja conhecido e revelado para fortalecer a disposição social de que nunca mais se repitam as violências daquele período.
 
– Como você analisa hoje o processo de redemocratização do Brasil? Quais os maiores avanços desta conquista? O processo de democratização no Brasil forjou ao longo desses anos um Estado de direito?
 
– Não apenas o Brasil vem construindo um robusto Estado Democrático de Direito desde a promulgação da Constituição de 1988, mas, seu desenvolvimento institucional começa já a ser referência mundial em avanços que outros países não atingiram. Os três poderes atuam com completa independência e sem submissão a qualquer autoridade central, como atesta a recente condenação pelo Supremo de importantes lideranças políticas do governo Lula. A imprensa conta com um nível de liberdade tal que lhe permite, até mesmo, deixar em segundo plano todos os preceitos do bom jornalismo para agirem como verdadeiros organismos políticos de ataque sistemático a todas as iniciativas dos governos Lula e Dilma.
 
Um elemento de destaque nesse fortalecimento da institucionalidade democrática do Brasil é a generalização de conferências nacionais para discutir abertamente todas as políticas públicas federais nas várias áreas de governo: Direitos Humanos, Igualdade Racial, Políticas para as Mulheres, Cultura, Educação, Saúde, Desenvolvimento Agrário, Habitação, Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia etc, etc, etc.
 
A partir de conferências municipais e regionais, passando pelas estaduais, milhares de homens e mulheres são chamados a debater quais deverão ser as políticas públicas, mostrando uma compreensão superior de que a democracia não se restringe ao exercício do direito de voto, em eleições regulares. Ela convoca a cidadania a uma participação permanente na formulação de propostas e denúncia do que esteja errado ou insuficiente. Como exemplo, a Conferência Nacional sobre Segurança Pública, um dos problemas mais angustiantes do Brasil de hoje, contou com a participação, direta e indireta, de aproximadamente 500 mil pessoas. Pela primeira vez, todos os segmentos policiais, autoridades judiciárias, especialistas e a militância da sociedade civil, incluindo familiares de jovens que são assassinados como alvo preferencial dos policiais nas grandes cidades, se reuniram durante semanas e meses para apontar a linha geral das novas políticas públicas referentes a essa área.
 
Cabe lembrar, entretanto, que se o Brasil exibe hoje um nível invejável de solidez em suas instâncias republicanas e democráticas, impossível esquecer que a idéia mais angular na construção democrática é a Igualdade. Sendo assim, está claro que cinco séculos de dominação política repressiva (escravista durante três séculos e meio), excludente e preconceituosa não podem ser superados em apenas 10 anos de reconstrução (governos Lula e Dilma, voltados à inclusão social) ou de 25 anos, se temos como marco a normalidade democrática instituída pela Constituição de 1988.
 
– Você poderia resumir um pouco de seu trabalho na OEA e quais os principais desafios?
 
– Fui eleito em junho de 2013, na Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos, para um mandato de 4 anos na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Sediada em Washington, essa Comissão é constituída de sete pessoas vinculadas à luta dos Direitos Humanos e foi fundada em 1959.
 
Dez anos depois, foi aprovada pela assembléia geral da OEA a Convenção Americana dos Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, que vale como carta constitucional do que chamamos Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Esse sistema é constituído como um tripé: a Convenção, a Comissão que hoje eu integro, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
 
O sistema é reconhecido como o mais avançado de todos os sistemas regionais (europeu, africano etc), e reconhece até mesmo alguns direitos e possibilidades de recurso que as Nações Unidas não conseguem assegurar a partir de seus organismos sediados em Genebra.
 
Pela Convenção Americana, qualquer pessoa das três Américas e do Caribe pode apresentar petições à Comissão sediada em Washington denunciando que seu Estado nacional violou preceitos consignados na Convenção (direito à vida, práticas de tortura, sistema prisional, direitos da criança, independência do Judiciário, desaparecimentos forçados etc, etc, etc).
A Comissão examina centenas e até milhares de petições que lhe são apresentadas para confirmar se correspondem mesmo a violações de preceitos convencionais e se, de fato, foram esgotados os recursos internos que devem sempre ser mobilizados prioritariamente como busca de solução antes de recorrer ao sistema regional.
 
Como alternativas, ela pode recusar a solicitação e pode admitir a petição. Faz reiteradas consultas ao Estado, dialoga com os peticionários, propõe a chamada solução amistosa, faz recomendações aos Estados e, em casos mais complexos, encaminha a matéria para a Corte que é sediada na Costa Rica.
 
Um dos papéis mais destacados da Comissão ao longo de seus 55 anos de existência foi o tratamento das violações praticadas pelos regimes ditatoriais que se alastraram pela região nos anos 1960 e 1970. No caso da Argentina em especial, a visita que a Comissão promoveu ao país em 1979, terceiro ano do regime de Videla, valeu como verdadeiro marco para enfraquecimento do poder ditatorial e início de sua desagregação.
 
No caso do Brasil, uma das melhores expectativas de quem luta para não perpetuar a impunidade dos torturadores está na pressão para que o Judiciário nacional se curve à sentença proferida pela Corte em 2010, ao final de quase duas décadas de tramitação, exigindo que o Estado brasileiro busque e encontre os corpos dos guerrilheiros mortos na Guerrilha da Araguaia, que todos os arquivos militares sejam tornados públicos, que se completem as medidas de reparação já em curso no país e, principalmente, que a Lei de Anistia de 1979, por se constituir numa ilegítima lei de auto-anistia, não siga representando um obstáculo para a apuração rigorosa e punição de todos os que tenham torturado, assassinado, e, ocultado cadáveres.
 
3/4/2014 15:45
 
Marilza de Melo Foucher é economista, jornalista e correspondente do Correio do Brasil em Paris.
 
 
 
 
 
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