O outro lado do golpe: por que não houve uma resistência significativa?

26/03/2014
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Arquivo Carta Maior
 
As análises, rememorações, depoimentos sobre o golpe militar de 1964 e as suas conseqüências se sucedem. Mas é necessário também analisar o outro lado dos acontecimentos de então, o que leva a uma questão espinhosa: por que não houve uma resistência significativa? Vamos considerar algumas alternativas que, se não são ditas explicitamente, sempre rondam os comentários.

1) A personalidade de João Goulart

Este é um dos primeiros argumentos que vêm à tona. Se o homem é ele mesmo e a sua circunstância, a de Jango não poderia ser pior naquele momento. Deprimido pela estampa pública de uma relação conjugal complicada, comprimido entre a radicalização de seu governo com a pregação das reformas de base e a sua situação de latifundiário bem sucedido, o presidente não resistiu à pressão interna. Faltou-lhe o ânimo da luta. Sua decisão de fugir sabotou a possibilidade de se organizar qualquer resistência.
 
Em 1961 o Brasil vira o maior movimento cívico e popular de sua história, pelo menos desde a Revolução de 1930. A razão desse movimento fora a manutenção da legalidade, com a posse do vice-presidente depois da renúncia de Jânio Quadros. Já naquele momento Jango frustrara as expectativas dos empenhados na campanha pela sua posse, preferindo negociar com os conservadores e liberais do Congresso a aceitação da emenda parlamentarista.
 
O gesto foi recebido aos gritos de "covarde, covarde", pela multidão concentrada em frente ao Palácio Piratini em Porto Alegre. Jango teve de sair pela porta dos fundos. Em 1964, saiu de novo pela porta dos fundos, desta vez para sempre. Teria sua disposição de resistir alterado o resultado final do golpe? Vá se saber.

2) A imprevidência do governo no setor militar

Este argumento é muito sério e merece uma consideração de peso. As forças armadas, sobretudo o Exército, saíram divididas dos acontecimentos de 1961. Houve uma divisão horizontal, na oficialidade superior, e vertical, pela importância de atitudes da tropa em momentos decisivos, como no impedimento pelos suboficiais de que os jatos da base aérea de Canoas bombardeassem Porto Alegre durante a crise.
 
Jango, o governo e os militares legalistas não souberam ou não conseguiram, ou não quiseram capitalizar o momento, permitindo que oficiais golpistas permanecessem na ativa e com comandos de tropas significativos. Nos remanejamentos subseqüentes os golpistas, que tinham saído derrotados em 1961, apesar do empate técnico da emenda parlamentarista, ganharam força e posições. O levante dos sargentos em Brasília permitiu que estes fossem presos e desmobilizados. O levante dos cabos e marinheiros, no Rio de Janeiro, às vésperas do golpe, na prática teve o mesmo efeito.
 
Em 1964 nenhum comando importante estava em poder de oficiais declaradamente legalistas. Jango teve de nomear às pressas o General Ladário Pereira Telles para o comando do III* Exército em Porto Alegre. O gesto, que poderia ser o primeiro passo de uma resistência, serviu na verdade para facilitar a fuga do presidente.

3) A radicalização retórica da esquerda

Este argumento é uma faca de vários gumes. Corta para todos os lados.
 
Há uma visão conservadora que diz que "se não fosse o Brizola, Jango não teria caído". Brizola, seduzido pela idéia de tomar o poder, radicalizara suas posições, arrastando o cunhado. Havia até uma campanha (quem se lembra?), devido à proibição de que parentes de um presidente se candidatassem ao cargo: "cunhado não é parente, Brizola pra presidente".
 
Por este lado, é difícil sustentar algum argumento mais convincente. O golpe vinha sendo tramado, preparado, ensaiado, arriscado desde 1950, quando Vargas voltara ao poder com seu populismo inclinado à esquerda. A partir da revolução cubana e dos episódios de 61 ganhara o ímpeto de uma determinação histórica, com o decidido apoio de amplos setores dos governos norte-americanos. A retórica da esquerda serviu apenas de pretexto para mobilizar manifestações como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade (pobre família! Pobre Deus! Pobre liberdade!).
 
Numa outra visão, pode-se ver que se a retórica ia para a esquerda, a esquerda na verdade se esfacelava. Isso é mais consistente. O governo na verdade estava isolado; a esquerda começava um processo de divisões internas que cresceria depois do golpe militar. Esse processo de aprofundamento de divergências descolou-a da perspectiva de esboçar qualquer gesto em defesa do governo. Jango era o herdeiro do "populismo de Vargas" e isso, para a esquerda, era um anátema.
 
Criou-se uma espécie de visão esquizofrênica que bloqueou de imediato qualquer possibilidade de reação, embora os sinais do golpe fossem visíveis desde o começo do ano. O golpe era indesejável, é certo. Mas livrar-se de um "populista" que poderia entravar o "processo revolucionário" não seria de todo mau.
 
Com isso as esquerdas, em geral, tiveram uma leitura equivocada do golpe, como se ele fosse apenas "mais uma" quartelada latino-americana de pouco fôlego, um tropeço no caminho inflexível da revolução. Além disso, como herança do período do Estado Novo, as esquerdas tiveram sempre um flerte bastante animado com os liberais, os de centro e os de direita. Mas em 64 esses liberais (com as honrosas exceções de dignidade e valor) estavam do lado ou dentro mesmo do golpe, com seus jornais, rádios e tevês emergentes.
 
As esquerdas se viram sós, sem governo, sem pai nem mãe, com um sistema sindical de fato minado pelo populismo e pelegos que queriam na verdade salvar o próprio (pelego) em grande parte dos casos.
 
As forças à esquerda também se dividiram no plano institucional, e logo onde não podiam se dividir: no Rio Grande do Sul. Na eleição para o governo do estado logo após o episódio da Legalidade, o PTB de Brizola e o Movimento Trabalhista Renovador, de Fernando Ferrari, egresso daquele partido, não chegaram a um acordo e concorreram separados. O PTB lançou Egydio Michaelsen, um político de fraco apelo popular. Ferrari tinha ímpeto e era "o homem das mãos limpas", mas ainda não tinha forças para bater ou galvanizar o PTB. Resultado: o governo foi parar nas mãos do conservador Ildo Meneghetti, autor da famosa frase "nenhuma revolução vai se fazer com o meu sangue", para explicar sua inexplicável fuga para Passo Fundo durante o golpe.
 
Houvesse um legalista no governo do estado, seria possível galvanizar a Brigada Militar como em 61, e com Ladário no III* Exército daria para montar um embrião de resistência. Ao contrário, tudo ruiu, e só restou, abrindo novo caminho histórico, a radicalização do movimento estudantil e as dissenções que desaguaram na luta armada.

4) A direita aprendeu tudo em 61 e as esquerdas muito pouco ou quase nada

Este é um argumento muito sério. A batalha de 61 foi ganha no campo das comunicações, apesar da censura sobre ele, imposta no centro do país.
 
Em muitas redações imperava uma fórmula mais ou menos conhecida: uma equipe de esquerda, um diretor de direita. Tais alianças instáveis foram se desfazendo, e a imprensa foi declaradamente para a direita. Nem as esquerdas nem o governo valorizaram devidamente aquilo que lhes levara a neutralizar o golpe em agosto/setembro de 1961.
 
No Brasil o parque de comunicações era emergente, embora ainda distante do ímpeto que ganharia depois do golpe. E nesse parque montou-se uma barragem de fogo cerrado contra o governo. Criou-se um país ameaçado pelo terror de esquerda, insuflaram-se amplos setores da classe média crendeira, que passaram a acreditar que lhe iam tomar de fato os pingüins sobre as geladeiras recém adquiridas e as próprias geladeiras. Houve jornais e jornalistas que resistiram. Mas foi insuficiente. O governo e as esquerdas perderam em 64 onde tinham triunfado três anos antes.

São lições e meditações sobre o passado. Nossas vidas seriam outras, muito outras, se pelo menos houvesse nem que fosse um mero esboço de resistência em 64. Venceríamos? Perdemos por WO, essa é que a verdade difícil de aceitar.
 
Texto originalmente publicado em 30 de março de 2004.
 
Créditos da foto: Arquivo
 
26/03/2014
 
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