Entre boicotes e inflação

Governo de Nicolás Maduro se segura

26/02/2014
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Participação popular dos chavistas na vida política do país barra
tentativa de derrubada de Maduro (Raul Arboleda / Arquivo RBA)
 
Caracas – Um homem segura um cartaz amarelo e grita: “Vamos à desobediência civil. Está na Constituição! Na Constituição!” Ele jura que está ali para quem quiser ver, no artigo 350 da Carta Magna elaborada durante o governo de Hugo Chávez e em vigor desde a virada do século: “O povo da Venezuela, fiel à sua tradição republicana, à sua luta por independência, paz e liberdade, desconhecerá qualquer regime, legislação ou autoridade que contrarie os valores, princípios e garantias democráticas ou menospreze os direitos humanos.”
 
Outro, perto dele, pede que os militares tenham “colhões” para se rebelar contra o governo e libertar o país da “ditadura” de Nicolás Maduro. Pessoas reunidas para um dos muitos protestos realizados pela oposição ao governo ao longo deste interminável fevereiro dizem que a Venezuela está dominada por Cuba, a quem se enviam os dólares do petróleo que outrora acabava em suas mãos.
 
É difícil entender os caminhos que levaram a Venezuela a um novo momento de acirramento. Desde o começo deste mês, marchas a favor e contra o governo terminaram em violência e 13 mortes, que por sua vez desembocaram em trocas de acusações e em alta tensão na capital Caracas, onde a divisão geográfica e econômica leste-oeste virou um risco para quem deseja passar de um lado a outro. Parte da oposição fala abertamente esperar a queda de Maduro, que tem mandato até 2 de fevereiro de 2019.
 
Ainda que se tome apenas os últimos meses como marco temporal, leva horas para começar a conhecer alguns dos muitos fatores em jogo. O ponto óbvio de partida é o afastamento de Chávez, após a vitória eleitoral de dezembro de 2012, e a transmissão temporária da titularidade do cargo a Nicolás Maduro, ex-ministro das Relações Exteriores. A iminência da morte do líder, em fevereiro do ano passado, e o anúncio, em 5 de março, trouxeram de volta ao cenário o risco que exerce o imponderável na política latino-americana. É o imprevisto com que uma oposição com dificuldade de encontrar o tom do discurso sempre sonhou. É o momento que cai no colo de quem não conseguiu criar suas próprias oportunidades.
 
Um governo que tinha no carisma de seu presidente uma poderosa arma, capaz de compensar com discursos o desânimo surgido em momentos difíceis, estava obviamente em seu instante mais delicado. E foi assim que se chegou às eleições de abril. Construída ao longo dos últimos anos, a candidatura do governador de Miranda, Henrique Capriles, era o principal desafio para o chavismo, que apenas uma vez, em 17 disputas no voto até ali, saíra derrotado – agora em 2014 o placar marca 18 a 1. Maduro venceu com 50,7% dos votos, uma diferença de 224 mil sobre o oponente. E deu início, assim, ao desafio de construir sua imagem em simultâneo à necessidade de resolver os problemas econômicos que consomem a renda do trabalhador.
 
Nos dias seguintes à derrota, aproveitando a escassa vantagem e as denúncias de fraude levantadas por meios de comunicação, Capriles promoveu manifestações que terminaram com a morte de 14 militantes chavistas, numa espécie de repetição de fatos do passado e de prenúncio do futuro próximo.
 
Nova era
 
Maduro não teve vida tranquila neste menos de um ano à frente do Palácio Miraflores. Foi o herdeiro do fim dos anos dourados da Venezuela – e da América do Sul como um todo. A queda nos preços das commodities e o prolongamento da crise internacional secaram o caixa e o fim da fase do ganha-ganha tornou difícil agradar a gregos e troianos. Na tarefa de escolher um lado, por enquanto o presidente parece não ter se definido, um titubeio de onde emerge alguma irritação, especialmente nos setores do chavismo mais à esquerda, que o entendem como uma figura muito conciliadora.
 
O sucessor de Chávez vem pagando o preço de um governo que em 15 anos não conseguiu eliminar o vício de uma economia baseada no petróleo. O ouro negro segue sustentando um padrão de consumo calcado na irrealidade e uma eterna imaturidade da indústria nacional, incapaz de garantir até mesmo a autossuficiência do país em farinha de arepa, uma massinha comida frita a qualquer hora que é o prato nacional desde sempre.
 
A chamada Revolução Bolivariana promoveu fortes mudanças com a construção de um Estado garantidor de direitos básicos, mas não rompeu com um sistema capitalista internacional altamente desregulamentado. Para muitos, virou um social-capitalismo, ou um capital-socialismo, sem atingir de fato o nível de socialismo do século 21 que tenta se outorgar.
 
Em 2013, a inflação em vários países da América do Sul deu sinais de agravamento. Na Venezuela, chegou ao inédito índice de 56%, fruto de um ciclo negativo em que um fator alimenta o outro. A desvalorização do bolívar frente ao dólar é uma das etapas: em uma economia que importa muito, uma moeda depreciada resulta em preços mais altos no mercado. O governo impôs novos controles sobre o câmbio e começou a criar um sistema em que se sobrepõem cotações oficiais diversas. Aí pode ter sofrido ataques especulativos mais violentos, talvez encorajados pela ausência de Chávez, talvez simplesmente pela fome de lucro dos players do sistema financeiro – se se recorda que também a Argentina sofreu ataques especulativos, a primeira linha de pensamento soa mais provável.
 
Acelera-se a alta de preços, o que facilita novos ataques de especuladores, desta vez internamente: em um cenário em que não se sabe exatamente o valor das coisas, facilmente criam-se as condições para que cada um dê a elas o valor que bem entenda, o que acaba alimentando o agravamento do quadro inflacionário. “As pessoas precisam ter consciência disso”, queixa-se Cecília Carmen Manzanilla, de 52 anos, moradora de um conjunto habitacional entregue no final de 2012 pelo governo em um bairro central de Caracas. “Se sei que um produto tem um valor e estão cobrando três ou quatro vezes mais, não devo comprar, porque estão prejudicando o país. Estão desaparecendo com os produtos para irritar a população e jogá-la contra o governo.”
 
Escassez de divisas
 
Frente a isso, em novembro Maduro começou a tomar ações mais enérgicas contra aqueles que considera usurários, determinando a ocupação de redes de lojas acusadas de praticar preços abusivos. Em janeiro deste ano, o presidente editou a Lei Orgânica de Preços Justos. A partir dela, quem desrespeita os valores fixados pela Superintendência Nacional para a Defesa dos Direitos Socioeconômicos toma multa que pode chegar a 5,5 milhões de bolívares – numa das cotações oficiais, o equivalente a US$ 450 mil – e fica sujeito a penas de até dez anos de prisão.
 
Em simultâneo, Maduro cria um novo sistema cambial, dando fim ao organismo que durante mais de uma década manteve a regulação do setor – novamente, motivo de críticas à esquerda do chavismo. Esse é um tema intrincado. Basicamente, são duas cotações oficiais. A primeira, fixando o dólar a 6,30 bolívar, é utilizada para 80% das operações, todas voltadas à chamada “economia produtiva nacional”, ou seja, às atividades do Estado.
 
A outra é fixada pelo Sistema Complementar de Administração de Divisas (Sicad), e atualmente está em 12 bolívares por dólar, o que significa que o governo acabou tomando como oficial uma tendência puxada pela moeda norte-americana no mercado paralelo. Essa é a cotação que vale para o cidadão em geral e para as empresas importadoras. A partir daí, coloca-se à disposição do mercado US$ 220 milhões por semana, contra US$ 100 milhões no antigo sistema, uma tentativa de diminuir a insatisfação provocada pela escassez de divisas.
 
Isso tem alguns efeitos diretos. A liberação de moeda apenas no mês vigente significa que a classe alta terá mais dificuldade para viajar ao exterior. Mas não é essa a questão central: significa também que o trabalhador perde renda da noite para o dia. Ao passar a cotação da importação de produtos de 6,30 para 12 bolívares, o governo impôs uma forte perda do poder de compra – compra de insumos básicos. Um golpe duro para uma população que já vem sofrendo com um processo inflacionário que come salários.
 
Menos de um mês depois da criação desse sistema, o governo anunciou esta semana a abertura de mais uma cotação. O Sicad II realizará atividades diárias, contra atividades semanais do Sicad I, e não terá limite de transações. Pessoas físicas e jurídicas poderão comprar diretamente de quem decida ofertar a moeda por meio de casas de câmbio e bolsa de valores, com patamar flutuante. A partir de agora, prevê-se pena de até cinco anos de prisão para quem adquirir dólar para uma finalidade e o utilizar em outra.
 
Trata-se de mais uma tentativa de coibir especuladores. O governo imagina que a baixa disposição de moeda norte-americana seja um dos fatores a explicar o desabastecimento geral, que no fim do ano passado chegava a 30% dos produtos essenciais: se não há dólares em quantidade suficiente para importar o necessário, as prateleiras ficam vazias.
 
Mas há outras possibilidades que são tomadas em conta quando se admite que o sistema de fiscalização é falho. Tome-se como exemplo um empresário que trabalha com travesseiros. Com uma autorização para importar US$ 100, ele poderia comprar 10 unidades e revendê-las no mercado local com a margem de lucro permitida, de 30%. Ele, porém, é muito vivo, e sabe que pode adquirir cinco unidades e com os US$ 50 restantes ganhar em atividades especulativas, onde a margem de ganho pode facilmente passar de 100%. De quebra, vão faltar travesseiros no mercado local, e ele pode cobrar mais por aqueles cinco, aumentando sua margem de lucro e... a inflação.
 
Amplie-se agora o exemplo do importador adquirindo no exterior travesseiros para um país inteiro e se terá um rascunho do que é a situação econômica na Venezuela. Desde esse quadro borbulham acusações. À esquerda do chavismo pede-se que Maduro elimine essas empresas e torne integralmente estatal o sistema de importações. Ao centro do chavismo acusam-se os empresários de desaparecer com produtos das prateleiras para provocar irritação na população e jogá-la contra o governo. E à direita, de fora do chavismo, queixa-se que essa administração é incompetente e tão insuportável que tolhe o direito das pessoas de escolher entre cinco ou seis marcas de cada produto.
 
“De um ano para cá sofremos com escassez. Encontrar carne, uau! Agora só tem um xampu na prateleira. Tem de fazer fila para comprar as coisas”, diz Dayana Rodriguez, uma jovem estudante de Direito. “Que saia Maduro. A ideia é que saia. Queremos um tipo de governo que escute todas as partes.”
 
Segundo estudo da International Consulting Services divulgado no último domingo (23), pouca gente pensa como Dayana: 7,4% querem o fim imediato do mandato chavista, contra 54% que desejam que Maduro fique até o fim de seu mandato, em 2019, e 32% que desejam que em 2016 seja convocado um referendo revogatório, uma consulta popular prevista na Constituição.
 
Um passo
 
Que os problemas econômicos virem problemas políticos, um passo. Sem Chávez e com insatisfação provocada por inflação e perda do poder de compra, Maduro seria, em tese, alvo fácil. Mas não o é. Os instrumentos de participação popular criados ao longo de 15 anos de administração garantem um envolvimento em massa dos chavistas na vida política do país, e são uma salvaguarda para o presidente. “A oposição é maquiavélica. Me dá dor ver isso. Eles se contradizem”, diz a aposentada Matilde Aguilera. “Maduro está fazendo o que pode, mas o poder econômico e midiático não deixam. Querem derrubá-lo, mas não vamos deixar. O povo somos nós. Não são aqueles lá da zona leste, que se dizem povo.”
 
De fato, as marchas ocorridas no último sábado não dão muita margem a dúvida. Há um claro recorte econômico nos protestos organizados pela oposição, na área rica, e pelos apoiadores do governo, na área pobre. Na zona leste a maior parte das pessoas usava roupas de marca e tinha a pele clara. As queixas principais eram violência, falta de liberdade de expressão, desabastecimento e escassez de dólares. Na zona oeste, camisetas e bonés pró-Chávez e pele morena. Em pauta, o apoio a Maduro.
 
Os protestos parecem repetir o que se viu em outros momentos da história da Venezuela e da América Latina. A marcha dos opositores traz à evidência uma elite que se considera visionária, capaz de entender a situação do país e de libertar os pobres, que não têm suficiente informação e clareza de ideias para se dar conta do que estaria ocorrendo: uma ditadura que envia recursos do petróleo para Cuba. “Vocês não sabem o que é um ditador. Eu sou um revolucionário, um democrata. E digo mais: eu sou um pacifista”, rebateu, no sábado, Maduro.
 
Se as marchas da oposição representam um sentimento majoritário, não há sinais disso no ar. A mesma pesquisa que tratou do fim do mandato presidencial constatou que 81% dos 1.400 entrevistados gostariam que os protestos chegassem ao fim. Um levantamento feito pelo governo mostra que em 9% do território nacional houve algum tipo de manifestação violenta, sempre em locais comandados pela oposição.
 
Uma oposição que parece se dividir em duas. De um lado, Henrique Capriles diz estar contra as tentativas de derrubar o presidente e afirma preferir o caminho mais longo, porém mais seguro: a Constituição. A adotar esta via, terá de esperar até o referendo revogatório de mandato, em 2016. Na prática, porém, o governador de Miranda tem postura dúbia. No sábado, ao participar das marchas em Caracas, foi duro no discurso contra Maduro. No domingo, pelo Twitter, baixou o nível: “No mundo já começam a te chamar o genocida Nicolás. É um grave erro da história de nossa Venezuela. Que quantidade de lixo diz, Nicolás, nos canais do Estado. Deveria te dar vergonha. Está acabando com este país.”
 
Ainda assim, o único a adotar caminho abertamente golpista foi Leopoldo López, um economista de 42 anos que tentou capitalizar para si o furor surgido das marchas. López foi aos 29 anos prefeito de Chacao, um distrito de classe alta de Caracas. Desde 2008, porém, está proibido de se candidatar a cargos públicos por conta de uma condenação por desvio de recursos. Em 2012 tentou fazer uma campanha para lançar à revelia sua candidatura à presidência, o que não deu resultados mas criou burburinho, E este ano passou a defender publicamente que se derrube Maduro. Acusado de instigação pública, danos à propriedade, provocador de incêndio e de associação para o crime, López está detido desde a última semana, após mortes ocorridas em manifestações encabeçadas por ele.
 
Na cadeia o líder, a vice-líder segue em ação. A deputada Maria Corina Machado já tinha na semana passada correndo contra si um processo de cassação. Agora, surgiu um áudio em que, voz embargada, clama por meio de um aplicativo de celular que os seguidores não se deixem descansar no Carnaval e que retribuam as vidas perdidas por opositores em marchas. “Temos de demonstrar a essas mães que a luta de seus filhos não foi em vão. Há que participar na desobediência civil e na barricada ativa.” Ela pede ainda que as ruas de Caracas amanheçam fechadas na segunda-feira que passou, o que de fato ocorreu.
 
O governo não tem dúvida de que os protestos são provocados a pedido dos Estados Unidos, que teriam escolhido López como seu novo ponta-de-lança na história, depois de definir que Capriles é passado. Para comprovar isso, apresenta gravações que seriam indicativas do interesse da Casa Branca e do ex-presidente da Colômbia Álvaro Uribe neste processo. Se há uma participação ativa ou não, mais adiante se saberá. Mas nenhuma administração norte-americana jamais ocultou seu desejo de que tudo volte a ser como antes na terra de um dos seus principais fornecedores de petrólero. O interesse do Departamento de Estado norte-americano entra como um sinal a mais na história. Madurou estranhou que em uma sexta-feira às 22h30 o chefe do departamento, John Kerry, tenha emitido comunicado no qual critica o governo e o culpa pela violência.
 
A paranoia e o exagero retórico são características do chavismo, mas, neste caso, a história corrobora a cautela. O golpe de Estado contra Chávez em 2002 teve sinais de entusiasmo norte-americano, e de lá para cá as relações entre a Revolução Bolivariana e os chefes da Casa Branca são ruins. Indo mais atrás, os Estados Unidos sempre tiveram alto interesse em ditar as normas na região, e tiveram participação comprovada nos golpes contra Salvador Allende, no Chile, em 1973, João Goulart, no Brasil, em 1964, e em uma série de episódios similares pelo continente.
 
O caso de Allende, aliás, faz lembrar o de Maduro. O desabastecimento de gêneros básicos foi uma das estratégicas para derrubar o presidente constitucional chileno. Agora, semanalmente o governo apresenta flagrantes de galpões onde estão guardados alimentos, à espera de que se estraguem. “Antes de Chávez os políticos nos viam como estomacais. Achavam que bastava fazer uma fila para dar comida e estava tudo resolvido.” Nádia Jimenez, uma enfermeira de 52 anos, discorre sobre o processo de instabilidade enquanto caminha pelas ruas da 23 de Janeiro, uma favela emblemática de Caracas, onde Chávez escolheu votar e colocar na área dezenas de projetos comunitários.
 
Nádia, como muita, muita gente em Caracas, era vendedora ambulante durante os anos 1990, e com cerca de 40 anos foi dada como “inempregável”, expressão que também surgiu no Brasil na mesma época para ser desmentida poucos anos depois. Em 2006 ela pôde sacudir o pó acumulado sobre o diploma de enfermeira e trabalhar num dos muitos “módulos octogonais” existentes na 23 de Janeiro – unidades de atendimento primário de saúde. Ainda sem palavras para explicar o vazio deixado pelo comandante em sua vida, ela avalia que Maduro está sendo vítima de um grande boicote. “Chávez entendeu que o pobre é mais que estômago. Agora o povo já não é puramente estomacal. Somos mais que isso. A oposição não consegue entender essas questões.”
 
Até agora, as marchas opositoras não parecem representar um sentimento majoritário, embora expressem uma insatisfação que cresceu. Com um desabastecimento mais grave, porém, estará à prova a capacidade do venezuelano de se deixar pegar pelo estômago. São cenas para as próximas semanas.
 
- João Peres, da RBA
 
26/02/2014
 
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