O imperativo dos direitos coletivos sobre os individuais

20/02/2014
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O capitalismo tem, historicamente, sua ideologia legitimadora no liberalismo. Das vertentes mais moderadas às mais radicalizadas desta ideologia – caso, nesta última, do neoliberalismo hayekiano –, o indivíduo é o elemento nuclear da sociedade. Mas trata-se do indivíduo como proprietário: originalmente de seu próprio corpo e logo de seus bens, dos resultados de “seu” trabalho (o que inclui o direito à herança e sobretudo à exploração do trabalho alheio) e fundamentalmente dos meios de produção. Assim, desde os primórdios do capitalismo, e de sua ideologia legitimadora, o legado à humanidade foi a terrível lógica do individualismo.
 
Diversos pensadores clássicos refletiram sobre tal lógica, implicando enorme controvérsia e contenda. Aos defensores da lógica individualista, os pressupostos foram a associação com a ideia de “liberdade”, de “inovação”, de “desenvolvimento” por meio das iniciativas “empreendedoras” e dos benefícios à sociedade indiretamente havidos – embora não intentados – em decorrência da “iniciativa individual”. Decorre daí a perspectiva de Schumpeter ao analisar o sentido do empreendedorismo no contexto maior do “espírito individualista” no capitalismo.
 
Pois bem, passados os grandes eventos revolucionários do século XIX e as reformas sociais (sobretudo) do século XX, está mais do que claro os efeitos perversos e trágicos da prevalência dos direitos individuais sobre os coletivos e da ideologia individualista, travestida também em meritocracia. Não se advoga aqui a supressão do indivíduo e de suas esferas, tais como a ideia do “privado”, da “privacidade” e, claro, do próprio espaço – indelegável – do indivíduo: seja em termos filosóficos, psicológicos e sociais. As tentativas de tal supressão responderam por nazismo e stalinismo, e claramente contrariam o que se quer apontar neste artigo.
 
Afinal, grandes crises, como as de 1929 e do pós-segunda guerra, e tantas outras, demonstraram justamente a importância da sobreposição dos direitos coletivos – desde que democraticamente definidos e controlados – sobre os individuais. Aliás, a construção do Welfare State se deu justamente nesta nova lógica ao longo do século XX. Mais ainda, conforme os reformistas o demonstraram, direitos coletivos são confluentes com direitos individuais (privacidade e direitos fundamentais), desde que estes, no que afetam a sociedade, sejam coadunados aos interesses majoritários que, no limite, seriam do “todo”.
 
Embora no capitalismo jamais possa haver um “todo”, uma vez que estruturalmente a sociedade é cindida em frações de classes, o que torna o próprio conceito de “esfera pública” problemático, a ideia de totalidade envolve os efeitos sistêmicos das ações individuais e de grupos à sociedade como todo, tendo em vista os impactos que causam ao tecido social, tomado numa perspectiva ampla.
 
Exceto nos lugares em que os direitos coletivos se impuseram vigorosamente, caso dos países nórdicos, e numa ou noutra experiência, o fato é que o direito ilimitado à propriedade, à riqueza – herdada ou construída –, ao acesso ao espaço urbano, ao uso e ocupação do solo, à ideia de liberdade individual sem correspondência quanto à responsabilidade social e outras, impactam fortemente Estados, governos e cidadãos...e o próprio planeta, no que tange aos aspectos ambientais. Deve-se notar que o seletíssimo número de bilionários no mundo, contados em poucas centenas, detém riqueza superior à quase totalidade dos habitantes do planeta.
 
As grandes metrópoles e o mundo rural, embora marcados por incríveis diferenças, assemelham-se quanto aos efeitos trágicos da sobreposição da lógica individual sobre os direitos coletivos. Da imobilidade urbana à produção agrícola contaminada pelos agrotóxicos, a lógica do capital – num capitalismo ainda estruturalmente desregulado e desregulamentado – expressa a preponderância do privatismo sobre o direito aos aspectos mais elementares da vida.
 
Mas especialmente nas grandes cidades, em que milhões de pessoas vivem infernos cotidianos, o capital imobiliário – eminentemente especulativo – se sobrepõe aos marcos legais avançados, caso do Estatuto das Cidades, e mesmo de PPAs e de Plano Diretores por vezes organizados segundo a lógica coletiva e de bem-estar social. Do financiamento de campanha aos vereadores e aos prefeitos e aos lobbies de toda forma, o capital imobiliário – em larga medida apoiado por financiamentos estatais da CEF, por exemplo – define a estrutura de bairros, que são construídos, destruídos e reconstruídos incessantemente. Daí velhos bairros operários, em cidades como São Paulo, por exemplo, tornarem-se palco de shopping centers, torres comerciais e edifícios de alto luxo, com impacto urbano, simbólico e social, uma vez que as populações historicamente residentes nestes locais são expulsas para as periferias profundas, casos por exemplo do extremo sul da cidade, justamente onde se localizam importantes represas de água.
 
Os deslocamentos das populações pobres pela cidade, mensurados em muitas horas diárias, implicam simultaneamente enorme sofrimento humano aos trabalhadores, baixa produtividade – o chamado “custo Brasil” tem sua origem justamente no privatismo excessivo de nossa organização político/social – e esgarçamento do tecido social. A divisão entre bairros ricos/de classes médias altas e pobres/classes médias baixas demonstra o fosso ainda existente e aprofundado pelo capital imobiliário especulativo, que carreia em seu movimento um conjunto de outras iniciativas voltadas aos serviços. Em outras palavras, a democracia política é subvertida pelo poder do Capital, apesar dos inúmeros avanços observados. Na cidade de São Paulo, por exemplo, o destravamento da “agenda de participação” – embotada e trancafiada pelos obscurantistas governos Serra/Kassab –, por meio da criação de diversos conselhos e pela ampliação efetiva de mecanismos de fiscalização e transparência, representa um enorme avanço político, mas claramente frágil perante o poder quase sem peias do grande capital.
 
Somente a mobilização popular permanente, nas ruas, nas instituições, na disputa pela opinião, na criação de novos espaços participativos e na permanente luta pela contra-hegemonia, poderá alterar esse quadro, o que implica combater simultaneamente a lógica do sistema político (financiamento privado das campanhas, multipartidarismo voltado à produção de maiorias não programáticas, baixa representação política dos partidos, “irrelevância” dos canais de participação popular e de controle social etc) e do Capital, uma vez que este submete os direitos coletivos aos interesses individuais, privados.
 
A ilusão da liberdade como “iniciativa individual empreendedora e inovadora” – discurso dominante e fundamentalmente ideológico – tem trazido consequências trágicas às sociedades. O nó górdio contemporâneo é, mais do que nunca, enquadrar, em forma de marcos legais, de instituições efetivamente fiscalizadoras e de políticas públicas, as iniciativas individuais que impactam a sociedade, colocando-as a serviço de interesses e direitos coletivos. Embora não seja simples a definição do que sejam estes, a ampla participação popular, o controle social e a transparência “radical” permitem definições concretas. Aliás, em diversos casos mencionados neste artigo, notadamente quanto ao ambiente urbano, claramente as populações sabem como suas vidas são modificadas com as intervenções do capital especulativo imobiliário sem que elas sejam ouvidas ou participem, de formas distintas, de sua decisão. Logo, saberão definir o sentido do que seja coletivo.
 
A chamada democracia “do” capital se utiliza sorrateiramente da democracia “formal” (o jogo institucional distante dos cidadãos), com apoio do sistema midiático/ideológico, tornando o sentido de liberdade e de direitos individuais algo contrário à sociedade e aos direitos coletivos.
  
Reverter esse quadro, tal como as manifestações de junho iniciaram, é fundamental para que se rompa o abismo entre indivíduo (interesses privados) e sociedade!
 
20/02/2014
 
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