A velocidade do sonho (Primeira parte): as botas

25/10/2004
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
Nas montanhas do sudeste mexicano, a madrugada não corre. Sem pressa, se deleita em todos os cantos, como amante paciente e delicada. Com seu longo vestido de nuvem, a neblina anda de mãos dadas com ela e consegue asfixiar a luz mais obstinada, a cerca, a rodeia com sua nívea parede, a encerra num aro difuso. Da metade do céu, a lua bate em retirada. Uma voluta de fumo se confunde com a neblina, vagarosamente, com a mesma lentidão com a qual a nuvem agasalha as choças dispersas sob o amplo vôo de sua anágua. Todos dormem. Todos, menos a sombra. Todos sonham. Sobretudo a sombra. Só estende a mão e apanha uma pergunta. Qual é a velocidade do sonho? Não sei. Talvez é... Mas não, não sei... Na verdade, por aqui, o que se sabe, sabe-se coletivamente. Sabemos, por exemplo, que estamos em guerra. E não me refiro só a guerra especificamente zapatista, que não satisfaz a ânsia de sangue dos meios de comunicação e de alguns intelectuais "de esquerda", tão dedicados como são, uns às quantidades de mortos, feridos e desaparecidos, outros a traduzir mortes em erros "porque não fazem o que eu lhes dizia". Não só. Falo também desta que chamamos de "IV Guerra Mundial", travada pelo neoliberalismo e contra a humanidade. A que se desenvolve em todas as frentes e por toda parte, incluindo as montanhas do sudeste mexicano. Tanto na Palestina como no Iraque, na Chechenia ou nos Bálcãs, no Sudão ou no Afeganistão, com exércitos mais ou menos regulares. A que, de mãos dadas com estas, é levada a todos os cantos do planeta pelo fundamentalismo de um e de outro bando. A que, assumindo formas não militares, faz vítimas na América Latina, na Europa social, na Ásia, na Oceania, no longínquo Oriente, com bombas financeiras que fazem voar em pedaços estados nacionais inteiros e organismos internacionais. Esta guerra que, para nós (insisto: tendencialmente), pretende destruir/despovoar territórios, reconstruir/reordenar as geografias locais, regionais e nacionais, e criar, a sangue e fogo, uma nova cartografia mundial. Esta que vai deixando pelo caminho a assinatura de sua identidade: a morte. Talvez, a pergunta "Qual é a velocidade do sonho?" deveria ser acompanhada da pergunta "qual é a velocidade do pesadelo?". Todavia, uma semana antes dos atentados terroristas de 11 de março de 2004, na Espanha, um jornalista-analista político mexicano (desses que depois de um doce se soltam e cantam elogios ridículos) louvava a visão "de Estado" de José Maria Aznar. O analista dizia que, ao acompanhar os Estados Unidos e a Grão Bretanha na guerra contra o Iraque, Aznar havia conseguido um campo promissor para a expansão da economia espanhola, e que o único preço a pagar era o repúdio de uma "pequena" parte da população espanhola, "os radicais que nunca faltam, inclusive numa sociedade tão afortunada como a espanhola", disse o "analista". E mais, sublinhou então que os espanhóis deviam esperar sentados que o negócio da reconstrução do Iraque começasse a caminhar, e aí sim, receber carreadas de dinheiro. Em suma, um sonho. A realidade não demorou a cobrar a verdadeira fatura da "visão de Estado" de Aznar. Naquela manhã de 11 de março se cumpria o fato de que o Iraque não está no Iraque, quero dizer não só no Iraque, como no mundo inteiro. Enfim, a estação de Atocha como sinônimo de pesadelo. Mas antes do pesadelo havia o sonho, só que o sonho neoliberal. A guerra contra o Iraque havia se colocado em marcha com ampla antecedência em relação aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 em território estadunidense. Para ir a este começo, nada como uma foto... Terreno plano, avermelhado. Adivinha-se duro. Talvez de argila ou de algo parecido. Uma bota. Sozinha, sem seu par. Abandonada. Sem um pé que a calce. Alguns escombros esparramados. De fato, a bota parece mais um escombro. É tudo o que há na imagem. Assim, são as linhas embaixo da foto que esclarecem se tratar do Iraque. Data? Setembro de 2004. Impossível saber se a bota é de alguém que morreu, que a abandonou na fuga, ou se trata pura e simplesmente de uma bota. Tampouco se sabe se é a bota de um soldado estadunidense ou britânico, ou de um combatente da resistência, de um civil iraquiano ou de outro país. Contudo, apesar da falta de maiores informações, a imagem dá uma idéia do que é o Iraque do "pós-guerra" de Bush: violência, morte, destruição, desolação, confusão, caos. Todo um programa neoliberal. Ao vir abaixo o falaz argumento de que a guerra contra o Iraque era uma guerra "contra o terrorismo", as verdadeiras razões emergem agora, mais de um ano depois que, ajudada pelos tanques de guerra estadunidenses, foi derrubada a estátua de Hussein e um Bush eufórico erguia outra a si mesmo declarando o fim da guerra. (Provavelmente a resistência iraquiana não ouviu a mensagem de Bush: o número de soldados estadunidenses e britânicos mortos e feridos não fez outra coisa a não ser aumentar desde que "acabou a guerra", e agora se somam as baixas civis procedentes de várias nações). Nos Estados Unidos, a ideologia conservadora tem um sonho: construir a "Disneylândia" neoliberal. No lugar de uma "aldeia modelo", reflexo dos manuais de contra-insurreição dos anos 60, tratava-se de construir uma "nação modelo". Escolheu-se então o território da antiga Babilônia. O sonho da construção de um "exemplo" do que deve ser o mundo (sempre de acordo com os neoliberais) nutriu-se da "(...) mais apreciada crença dos arquitetos ideológicos da guerra (contra o Iraque): que a cobiça é boa. Boa não só pra eles e seus amigos, mas sim boa para a humanidade, e, com certeza, boa para os iraquianos. A cobiça gera lucros, os quais geram crescimento, que cria empregos, produtos e serviços, e qualquer outra coisa que, possivelmente, alguém possa precisar ou querer. O papel de um bom governo, então, é criar as condições ideais para que as corporações levem adiante sua cobiça sem fim, de tal maneira que, por sua vez, se possam satisfazer as necessidades da sociedade. O problema é que os governos, mesmo que neoconservadores, raramente têm a oportunidade de provar o quanto é correta a sua sagrada teoria: apesar de seus enormes esforços ideológicos, até os republicanos de George Bush são, em suas próprias cabeças, eternamente sabotados por democratas intrometidos, sindicatos teimosos e ambientalistas alarmados. O Iraque ia mudar tudo isso. No lugar da Terra, a teoria seria finalmente colocada em prática em sua forma mais perfeita e descomprometida. Um país de 25 milhões de habitantes não seria reconstruído como era antes da guerra: seria apagado, feito desaparecer. No seu lugar, um deslumbrante salão de exposições para as políticas de lasseiz-faire, uma utopia como o mundo jamais havia visto" ("Bagdá ano zero. A pilhagem do Iraque depois de uma utopia neoconservadora", Naomi Klein, em Harper's Magazine, setembro de 2004. Tradução: Julio Fernández Baralbar). Em vez disso, o Iraque é sim um exemplo, mas do que o mundo inteiro pode esperar se os neoliberais ganharem a guerra, a IV Guerra Mundial: desemprego de quase 70%, indústria e comércio paralisados, aumento exorbitante da dívida externa, muros a prova de explosões por todos os lados, crescimento geométrico do fundamentalismo, guerra civil... e exportação do terrorismo para todo o planeta. Não vou saturá-los com algo que sai todos os dias nos noticiários: ofensivas militares da coalizão (atenção: numa guerra que "já acabou"), mobilização da resistência iraquiana, atentados, ataques contra alvos militares e civis, seqüestros, execuções, novas ofensivas da coalizão, nova mobilização da resistência iraquiana, etcetera. Tenho certeza de que encontrarão informação abundantes na imprensa do mundo todo. Em castelhano, sem dúvida a melhor fonte é o jornal mexicano La Jornada, que conta entre seus colaboradores com alguns dos jornalistas mais sérios e documentados sobre o tema do Iraque. O certo é que já vimos este filme antes em outros lugares...e continuamos a vê-lo: Chechenia, os Bálcãs, Palestina, Sudão, são só exemplos desta guerra que destrói nações para tratar de "convertê-las" em "paraísos"...e acabam transformando-as em infernos. Uma bota abandonada nas terras do Iraque "liberado" resume a nova ordem mundial: a destruição das nações, a desertificação de qualquer indício de humanidade, a reconstrução como reordenação caótica das ruínas de uma civilização. Contudo, há outras botas, ainda que sejam... Botas quebradas. Sim, as botas da insurgente Érika estão quebradas. Na ponta do pé direito, a sola se desprendeu e dá à bota um ar de boca insatisfeita. Os dedos ainda não estão visíveis, de tal forma que Érika não parece ter se dado conta de que suas botas, e sobretudo a direita, estão quebradas. Desde os primeiros dias na montanha, ao olhar pra baixo acabei acostumando. O calçado costuma ser um dos sonhos/pesadelos do guerrilheiro (outros?: o açúcar, ter os pés enxutos, e outras obsessões mais úmidas), de tal forma que lhe dedica boa parte da sua atenção. Talvez é por isso que adquire essa mania de olhar sempre os pés do outro. A insurgente Érika veio me avisar que acabaram de editar o conto A laranja mágica (última produção de Rádio Insurgente que trata de...bom, é melhor que se sintonizem e o escutem). Eu respondo que tem a bota quebrada. Ela baixa o olhar e me diz "você também". Faz a saudação militar e vai embora. Érika vai se trocar porque daqui a pouco jogam futebol duas equipes de mulheres insurgentes, uma se chama "8 de março", e outra "As Princesas da Selva". Não entendo muito de futebol, mas, a meu ver, as "princesas" jogam com um estilo que se distancia bastante dos bons costumes da corte real, e as da "8 de março" o fazem como se fosse o levante de primeiro de janeiro. Ou seja, boa parte delas acaba no posto de saúde insurgente. E tem mais, cada vez que vão jogar, as da saúde deixam a maca do lado da quadra. "Para não dar a volta", dizem. Empataram, ou seja, no futebol, as insurgentes empataram. Foram para os pênaltis e chegou a hora da formação sem que desempatassem. E é a insurgente Érika a me dizer isso. Érika é uma espécie de assessora sentimental das insurgentes, mas desta vez não vem me contar que uma companheira tem "o coração que dói" de mal de amores, mas sim que o jogo acabou e que ela vai falar nos povoados, mais concretamente, às mulheres dos povoados. Vá a paisana, ou seja, com roupa civil. Bom, isso é ela quem diz. Porque eu vejo que está com umas botas feitas nas oficinas zapatistas e tem gravado um "EZLN" num dos lados. "Mmmh, se for usar estas botas é melhor ir com o uniforme completo", digo tentando ser sarcástico. Érika vai embora. Daí a pouco, volta de uniforme. "Pra onde vai?", pergunto. "Para o povoado", responde. "Mas, o que te deu pra ir de uniforme?, pergunto em tom de reprovação. "Foi você que me disse!", diz. Entendo que é inútil explicar as qualidades da ironia sutil, de tal forma que me limito a ordenar: "Não, vá a paisana e tire estas botas". Ela vai embora. Daí a pouco volta, com roupa civil...e descalça. Eu suspirei, que mais podia fazer? Não acreditem na Érika, a minha bota não está quebrada. Está descosturada, que não é a mesma coisa. Além disso, é só um ponto que soltou, e por isso o entrecruzar-se dos pontos da agulha parece um sistema político no neoliberalismo, ou seja, é uma confusão e não se sabe pra onde vai a direita e pra onde vai a esquerda. Estou explicando isso a Rolando quando chega... Toñita Primeira-Geração, ou seja, Toñita I (a do beijo negado porque "pinica muito", a da xícara quebrada, a do sabugo de milho transformado em boneca) já tem 15 anos. "Ou seja, cumpriu 14, mas entrou nos 15, isto é, já vai para 16", me diz o pai dela, um responsável zapatistas dos mais antigos a estar conosco. Eu faço sinal que sim, sem confessar que nunca entendi as altas matemáticas que regem os calendários nas comunidades rebeldes zapatistas (depois de tratar, inutilmente, de explicar-me, Monarca se resigna e só acrescenta: "Acho que é porque esse é o nosso jeito, que é bem diferente"). O pai de Toñita I (ou seja, Toñita Primeira-Geração) vem para que eu a veja, porque já faz mais de dez anos desde que a vi pela última vez. Dez anos não passam em vão, de tal forma que Toñita não só não me nega um beijo, como, sem que eu diga nada, me abraça e deixa cravado um beijo na fofa bochecha do passamontanhas e fica completamente corada (a Toñita I e não o passamontanhas). Não digo nada, mas penso "Mmmh, esse ano foi mau...e isso porque não tenho tirado o passamontanhas nem pra tomar banho". Então, Toñita I tira suas botas da mochila e as calça. Estou pra perguntar porque ela põe as botas depois de caminhar seis horas descalça desde o seu povoado no lugar de colocá- las para fazer o caminho e tirá-las ao chegar, mas Toñita I se adianta e me pergunta se pode ir pra "lá" - e aponta pra onde há um grupo de mulheres insurgentes. Toñita I sabe o que um beijo pode conseguir, mesmo que seja no passamontanhas, de tal forma que não espera a resposta e vai. Enquanto Toñita I corre pra ver se a deixam jogar no jogo de futebol das insurgentes, o pai dela me conta do seu povoado (aquele que eu sempre chamei, cuidando para que ninguém soubesse, de "Cúpulas Tempestuosas"). Cheguei a ver a cicatriz de um corte no braço esquerdo de Toñita, e assim lhe pergunto sobre isso. O pai de Toñita me conta que um jovem do povoado queria levá-la pra latrina. (Nota: esclareço o improvável leitor destas linhas que em alguns povoados a latrina não cumpre só suas cheirosas funções higiênicas, mas também costuma ser lugar de encontro de casais. Não são poucos os casamentos nas comunidades que têm como origem o nada romântico lugar da latrina. Fim da nota). O caso é que Toñita I não quis ir pra latrina. "Ou seja, não era do seu gosto", me confirma o pai dela. Foi aí que o rapaz quis obrigá-la e, então, "como não era do seu gosto" - reitera o pai dela - lutaram. Toñita I conseguiu fugir, mas, como diz logo em seguida, o assunto se tornou público e chegou na assembléia do povoado. O pai de Toñita me conta que queriam prendê-la. Eu interrompo: "Mas por que, se é ela que foi atacada e até traz um corte no braço?". "Ah, Sup, é que você devia ver em que estado ficou o jovem... - me diz o pai -, ele ficou no chão inconsciente, é que, como se costuma dizer, Toñita é muito brava". Além de um rosto bonito, Toñita I tem um porte físico avantajado, ou seja... como é que vou dizer isso?, bom, para que vocês me entendam, só vou dizer que Rolando quer que ela jogue na zaga central da seleção zapatista de futebol. "Mas o time das insurgentes já está completo", digo a Rolando. Ele só acrescenta: "acaso é para o time das insurgentes, eu a quero no dos homens". Nisso passam as da saúde com as insurgentes bastante machucadas. Toñita I está chorando porque, por culpa sua, marcaram dois pênaltis contra o seu time. Entendo Rolando e me viro em direção ao pai e lhe pergunto: "Toñita não tem dito que quer ser insurgente?". Toñita I tirou as botas e as colocou na mochila. Vai embora com o pai dela, caminhando descalça. Não faz muito que ela foi quando aparece, acompanhada pela mãe...a Toñita Segunda-Geração, ou seja, a Toñita II. A mãe da Toñita II, ou Segunda Geração, se chama Elena. É tenente insurgente de saúde e, entre seus méritos, está que em janeiro de 1994 ela salvou a vida de vários insurgentes e milicianos que saíram feridos dos combates de Ocosingo. Num mais que modesto hospital de campanha, Elena operou feridas de bala e extraiu estilhaços delas do corpo dos zapatistas. "Morreu-nos um companheiros" disse ao informar. Não mencionou os mais de 30 combatentes, que hoje vivem e lutam nestas terras, e que foram salvos por ela. Toñita II tem três anos. "ou seja, completou dois e vai para quatro?", adianto à explicação de Elena. Ela ri. Quero dizer, Elena ri. Porque Toñita está dando uns berros dignos da melhor causa. Acontece que, assumindo o meu olhar elegante (o de número 7 do meu exclusivo "catálogo de olhares sedutores") lhe pedi um beijo. Toñita II nem sequer disse que "pinica muito" (ou seja, não é uma versão melhorada), simplesmente despencou a chorar com tal veemência que já tem ao seu lado um grupo de mulheres insurgentes que lhe oferecem balas, uma sacolinha com cara de coelho (ainda que me parece que tem cara de gambá - a bolsinha, se entende), e estão até cantando pra ela a do cordeirinho que rola e que tem um inusitado êxito entre as crianças zapatistas. "Não te querem", me diz a major Irma chovendo no molhado. Eu respondo: "Bah, está louca por mim", e faço de conta que não tenho o coração despedaçado. Saindo da bodega, Rolando me dá uma destas agulhas chamadas "capoteras" e um rolo de fio de náilon. Já na choça do comando do EZLN estou em dúvida... Se não sei a velocidade do sonho, também não sei se devo costurar as botas ou o coração. (a continuar...) Das montanhas do sudeste mexicano Subcomandante Insurgente Marcos. México, setembro de 2004, 20 e 10.
https://www.alainet.org/pt/active/6982
Subscrever America Latina en Movimiento - RSS