O que acontece no Haiti ?
29/09/2004
- Opinión
Apesar do grande "barulho" nos jornais, pouco ou nada se informa
sobre a história e o que de fato está em jogo na ilha
No dia 28 de fevereiro deste ano, foi deposto o presidente
haitiano Jean-Bertrand Aristide. Exilado, o ex-padre queixou-se
de não saber para onde o avião da Força Aérea Norte-Americana o
levava. Acusou americanos e franceses de seqüestro e omissão. A
acusação é plausível, visto que Aristide nunca havia estado na
República Central Africana, país submetido a interesses
militares e econômicos da França, para onde o ex-presidente foi
levado à revelia. Bangui, capital do país africano, é tida como
a cidade mais violenta do mundo – tão violenta que, há dois
anos, os Estados Unidos fecharam sua embaixada por lá. O exílio
chamou a atenção da Comunidade Caribenha (CAPRICOM) e da União
Africana, além da África do Sul, Panamá, Venezuela e países do
Caribe, que pediram à ONU uma investigação séria sobre a saída
de Aristide. Panamá e Venezuela chegaram a oferecer asilo
político ao presidente.
A crise haitiana tem diversas faces; em sua maioria, não
muito claras. Suas raízes estão entrelaçadas com a história
revolucionária do país. Desde que assumiu o compromisso de pagar
US$ 90 milhões à França como indenização por sua independência,
o Haiti sucumbiu em dívidas que nunca serão quitadas. Além
disso, sofreu com o embargo promovido pelas potências
colonialistas do Séc. XVIII, que temiam que o levante escravo
levasse a revoltas em outras colônias.
Quando a ilha de São Domingos perdeu seu potencial
econômico, os franceses a deixaram de lado, dando margem à
atuação do imperialismo norte-americano. Sua ocupação (1915-34)
trouxe à ilha bombardeios aéreos e uma instituição que marcaria
o resto da história do país: o exército, criado pelo Congresso
americano e dissolvido por Aristide em 95, sem nunca ter
enfrentado um inimigo externo. Foi responsável por repressão,
massacres e golpes dentro do país. Principalmente durante os
mais de 25 anos da ditadura sanguinária da família Duvalier.
Nesta época, Aristide era um padre da Teologia da
Libertação que proclamava a preferência de Deus pelos pobres e
enfrentava forte oposição da política americana de Ronald
Reagan, que via aquela atividade mais como comunista do que
cristã. Isso estava longe de ser o suficiente para barrar sua
vitória nas primeiras eleições democráticas do país. Com 67% dos
votos, foi declarado presidente no primeiro turno do pleito de
1990.
Fazer frente aos americanos nunca foi fácil. A primeira
administração Bush investiu pesado no país, financiando o grupo
paramilitar FRAPH, que ganharia projeção nacional na deposição
do presidente Aristide, em setembro de 1991. Por três anos,
grupos civil-militares governaram o país, num período que
culminou com a morte e a fuga de centenas de milhares de
haitianos.
A volta de Aristide aconteceu durante o governo Clinton, em
1994. Mas sete semanas depois, os republicanos tomaram conta do
Congresso americano, bloqueando o suporte financeiro ao Haiti.
Esse suporte havia sido aprovado pelo BID (Banco Inter-Americano
de Desenvolvimento) para o aprimoramento de infra-estrutura
básica, hospitais, escolas e estradas no Haiti.
De acordo com a lei internacional, a conta dos empréstimos
deveria ser paga independentemente de onde o dinheiro fosse
aplicado. De fato, os Estados Unidos nunca cortaram o
financiamento ao Haiti; a questão é que não foi direcionado à
infra-estrutura, como requisitava o BID, mas ao financiamento de
grupos militares e ditaduras: 40% do US$ 1,134 bilhão emprestado
entraram no país durante as ditaduras Duvalier. Ou seja, o
dinheiro não foi usado em prol da população, mas para oprimi-la.
Em julho de 2003, o Haiti entregou 90% de suas reservas externas
a Washington como pagamento de juros.
Se aplicados os mesmos juros que impedem que o Haiti pague
sua dívida externa ao ressarcimento da multa que o país pagou à
França após conseguir sua independência de forma revolucionária,
a antiga Metrópole teria de devolver à colônia nada menos do que
US$ 21.685.135.571,48. A proposta foi feita por Aristide e,
obviamente, recebida com escárnio pelos franceses. É o absurdo
que o povo haitiano tem de encarar desde sua independência:
pagar em dinheiro o que seus ancestrais escravos pagaram com
sangue.
Atualmente, na administração Bush, velhos republicanos
foram trazidos à tona para tratar das questões internacionais
com a mesma truculência do passado. Para a América Latina, Bush
priorizou diplomatas com passado pouco louvável e índices de
reprovação calamitosos na Câmara americana, como o lobista da
empresa armamentista Lockheed Martin, Otto Reich, encarregado de
minar as bases de Hugo Chávez na Venezuela e Roger Noriega,
antigo desafeto de Aristide.
Otto Reich tem feito um 'belo' serviço: todos os antigos
militares haitianos condenados à prisão perpétua por crimes
contra a humanidade e chacinas nos períodos ditatoriais estão de
volta às ruas. É o caso do antigo guarda presidencial dos
Duvalier, Prosper Avril, que tem em seu currículo torturas e
tratamentos indignos a políticos de oposição, professores e até
a um médico comunitário. Maior responsável pela atual deposição
de Aristide, Guy Philippe também é protegido dos norte-
americanos, apesar da negação do Secretário de Estado Collin
Powell: foi treinado por eles em uma base militar no Equador e
traz entre seus maiores ídolos George W. Bush e o ex-ditador
chileno Augusto Pinochet.
Escravos haitianos constituíram primeira república negra da
história
Descoberta por Cristóvão Colombo em 1492, a ilha de São
Domingo "entrou no mapa" em 1505, com a plantação da cana-de-
açúcar, importada das ilhas canárias. Aportaram também os navios
carregados de escravos da África Ocidental. Com o fim do
potencial exploratório do ouro no território, os espanhóis
partem rumos ao sul, deixando o território à mercê de piratas
franceses. A França receberia a soberania da ilha por tratado,
em 1697.
São Domingo entra então em seu período de maior prosperidade,
com a exploração do açúcar. Com base no trabalho desumano de
quase 500 mil negros, a colônia torna-se a mais rica do mundo.
Em 1789, os ecos dos ideais de igualdade, liberdade e
fraternidade chegam à colônia, dando esperança aos escravos mais
rebeldes – especialmente aqueles foragidos nas montanhas do
interior, conhecidos como cimarróns, não só no Haiti, mas em
outras ilhas do Caribe –, que começam a se rebelar contra seus
senhores. Sua população é dez vezes maior que a de seus
senhores. Em agosto de 1791, inicia-se a rebelião que, em 13
anos tornaria o país independente, sob o comando do negro
Toussaint Louverture, que joga com a rivalidade entre Espanha,
França e Inglaterra conquistando o domínio sobre todo o Haiti e
botando para correr o temido exército de Napoleão Bonaparte.
Ao fim da Revolução, o recém-batizado Haiti está em ruínas
e não tem mais o valor dos velhos tempos. Temendo a disseminação
do ímpeto revolucionário, a França opta pela mais prática das
soluções: joga o país no isolamento e no esquecimento. Não
reconhece sua independência até 1804, quando é estabelecida a
multa pelos danos causados à Metrópole. A outra República das
Américas, os Estados Unidos, também não se interessa pelo
comércio de produtos de base com a "ilhazinha dos pretos".
Desde então, o Haiti viveu às voltas com golpes, revoluções e
revoltas.
Entrevista
Dudley Mocombe, 26, estudante haitiano de teologia, residente no
Brasil
Qual a sua opinião sobre a postura do governo brasileiro em
relação ao Haiti desde o início dos protestos violentos contra
Aristide?
O Brasil não teve uma influência nem favorável nem desfavorável
diante do conflito no Haiti. A relação diplomática entre os dois
paises é muito fraca, pelo fato de que o número dos haitianos
vivendo no Brasil não ultrapassa cem e vice versa. O Brasil caiu
de pára-quedas ao aceitar encabeçar a força de ocupação da ONU
no Haiti. Eu diria que o Brasil inocentemente assumiu esse
compromisso de ajudar no restabelecimento da paz e está
desempenhando uma boa tarefa. Que essa missão realmente cumpra o
seu objetivo.
Como o você avalia a postura da França e dos Estados Unidos em
relação ao Haiti?
A França é o demônio que está por trás de todos os últimos
tumultos contra o presidente Aristide. Os franceses estão
revoltados porque o presidente Aristide pediu o reembolso de US$
21 bilhões pagos durante o governo de (Jean-Pierre) Boyer, o
quarto presidente do Haiti depois da independência. O dinheiro
foi pago sob ameaça de uma eventual volta dos franceses. Durante
a comemoração do bicentenário da independência, o presidente
Aristide pediu formalmente ao governo francês o reembolso. Aí,
os jornais franceses começaram a minar as bases de Aristide.
Os Estados Unidos são uma faca com dois gumes. O partido
democrata apoiava os simpatizantes do Aristide e o republicano,
a oposição e os rebeldes. O embaixador dos Estados Unidos no
Haiti é um governador paralelo: suas declarações muitas vezes
têm mais peso do que as do próprio governo.
Qual a influência da revolução negra para o governo Jean-
Bertrand Aristide e suas duas deposições?
A chegada do Aristide na presidência em 1991 foi terrível para
os imperialistas e mostrou a sabedoria da maioria do povo
haitiano que almeja uma vida digna. Durante os sete meses de seu
governo, se respirava um ar de esperança, de liberdade, de
solidariedade. A luta do povo nunca foi aceita e apreciada pelos
imperialistas. O primeiro golpe se deu justamente depois de uma
participação efetiva do presidente na ONU.
A revolução negra criou o medo de que o Haiti fosse referencial
para a luta da libertação do povo negro no mundo inteiro.
Enquanto o povo haitiano permanecer na miséria, ele é frágil e
não atrapalha a máquina opressora dos imperialistas. O Haiti
ajudou países como Bolívia, Venezuela e Colômbia a conquistar
sua independência.
Qual a importância do Haiti para os povos negros da atualidade?
O Haiti não tem uma importância capital para os povos negros da
atualidade, justamente porque o povo haitiano está mergulhando
na miséria; é o povo mais empobrecido da América. Haiti, que
outrora era considerado a pérola das Antilhas, o farol da
liberdade do povo negro no mundo. A política dos imperialistas é
exatamente fazer que Haiti permaneça à margem, na pobreza, para
que a sua libertação não tenha respaldo mundial.
A atual transição política tende à democracia ou a instabilidade
deve permanecer? Por quê?
A atual transição política é muito frágil. No momento, ninguém
pode prever o que o povo fará, pois levaram seu presidente amado
e querido e, até agora, não houve reação. É uma grande mentira
negar a popularidade de Aristide. Por enquanto, as atenções
estão voltadas para a realização das eleições no final de 2005,
embora o governo da transição tenha uma política suja de
perseguição aos simpatizantes do Aristide. O ex-primeiro-
ministro de Aristide, Yvon Nepturne está preso, além de
senadores e deputados. Criminosos condenados estão soltos. A
situação é complexa e difícil, não se pode ter noção do futuro.
Como você avalia a cobertura que a imprensa brasileira tem feito
sobre a crise no Haiti?
Eu acho que a imprensa brasileira tem feito uma cobertura
razoável da situação, embora se perceba um certo preconceito.
Não se pode comparar o governo do Aristide com a ditadura de
Jean-Claude Duvalier. Não admito também que o Haiti seja o país
mais pobre da América; ele é o país mais empobrecido, pois,
ainda hoje, guarda muitas riquezas naturais que não estão sendo
exploradas, como a coragem e a determinação do povo, sua
alegria, o clima, a natureza, as praias, os lugares históricos
etc.
Eu queria acrescentar que há uma diferença em se falar de Ilha
do Haiti e República do Haiti. A ilha inclui a Republica
Dominicana que é outro povo, com outra história. Há duas línguas
oficias que são Françês e Creole. Ao contrário do que costumo
ouvir, o creole não é um dialeto, é uma língua que tem
gramática, hoje ensinada nas escolas. É uma língua que resulta
de uma junção de vários dialetos falados na África com o
francês. Existe, inclusive, algumas palavras de origem
portuguesa.
Revista Contraponto- set. 2004 Fac. Jornalismo PUC-SP
https://www.alainet.org/pt/active/6851
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