Jornalismo e ditadura militar no Brasil: da censura à resistência nas redações
25/09/2013
- Opinión
Censura e opressão
A primeira consideração relevante sobre o jornalismo durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985) é que a atuação da censura aos meios de comunicação, em sua forma mais coercitiva e opressora, ocorreu após 13 de dezembro de 1968, quando foi decretado o Ato Institucional número 5. Com a suspensão das garantias constitucionais, o Congresso Nacional foi fechado e instituída a censura prévia à imprensa, além de prisões em massa de parlamentares oposicionistas, líderes estudantis e sindicais, intelectuais e artistas. Entre 1964 e 1968, a intervenção governamental em jornais e revistas ocorria em casos relativamente esparsos, através de bilhetes ou telefonemas aos proprietários das empresas jornalísticas, em que as autoridades militares passavam recomendações ou se queixavam de determinadas matérias. Com a vigência do AI-5, jornalistas e donos de jornais sentiram o impacto e a violência da censura policial.
O jornalista Alberto Dines, então editor-chefe do Jornal do Brasil, relata que, até o AI-5, o regime autoritário não havia provocado mudanças significativas na rotina da redação que dirigia. O golpe militar reforçou posições conservadoras da chamada grande imprensa, que já vinha fazendo carga contra a radicalização nacionalista do governo do presidente João Goulart. Após a deposição de Goulart em 1964, segundo Dines, não houve alterações no exercício do jornalismo na imprensa tradicional: “(...) Cobria-se tudo, publicava-se tudo, tudo que chegava nós publicávamos. As grandes alterações aconteceram a partir de 1968.” (1)
A instalação da censura prévia à imprensa foi consolidada no decreto-lei n° 1.077, de 26 de janeiro de 1970, no qual o general-presidente Emílio Garrastazu Médici advertia que não seriam admitidas publicações contrárias ao regime, à moral e aos bons costumes, em quaisquer meios de comunicação. A submissão de textos, fotos, ilustrações e charges aos censores da Polícia Federal restringiu dramaticamente a liberdade de expressão e as possibilidades de divulgação de certas informações julgadas inadequadas, suspeitas ou subversivas pelo regime. Os comandos das redações recebiam, frequentemente, comunicados da Polícia Federal informando que temas ou acontecimentos não deveriam ser noticiados, ou que deveriam merecer tratamento cauteloso e contido. Tais ordens eram cumpridas à risca pelas empresas jornalísticas, sob pena de punições, como abertura de processos judiciais e ameaças de suspensões de circulação, e represálias, que incluíam, por exemplo, corte de verbas publicitárias do governo federal.
O jornalista Clóvis Rossi, que trabalhava em O Estado de S. Paulo, conta que, o período que sucedeu o AI-5 abalou os repórteres do jornal e fez com que ficasse claro que a ditadura estava efetivamente instaurada: “Até 1968 ainda dava [para divulgar certas informações]. É claro, com cuidado, com meias palavras, com entrelinhas – coisas que eu detesto fazer, mas era inevitável, indispensável. Até 1968 dá. Aí é que, em 1968, isso muda completamente. Eu me lembro bem que, na noite do AI-5, nós fechamos o jornal com a notícia do novo Ato Institucional e fomos reunir os repórteres e amigos, fomos para um boteco, (...) num ambiente de “o mundo acabou, não tem futuro, não tem horizonte, o que vai fazer, o que não vai fazer.” Enfim, todas as vias de futuro tinham sido fechadas. (2)
O jornalista Pery Cotta, um dos editores do Correio da Manhã, considera que o episódio mais dramático vivido por ele durante a ditadura militar ocorreu na noite em que foi decretado o AI-5. A experiência de acompanhar de perto a ocupação da redação foi tão traumática que, depois disso, ele só permaneceu no jornal por mais alguns dias. Cotta completa: “Quando a ditadura invade o jornal, quando o regime militar toma conta do jornal, [ele] mata a alma do jornal. É o fim do jornal, acho que foi aí, um fim anunciado, porque eles cortaram publicidade, jogaram bomba em agência do jornal, da principal agência do jornal (...) fizeram todo o cerceamento possível, estrangular financeiramente e comercialmente o jornal. Felizmente depois do AI-5 eu passei só cinco dias na redação do jornal porque me neguei a continuar escrevendo sobre política, pedi que me mandassem para outra área. Não me mandaram, disseram que eu teria que continuar escrevendo sobre política e no quinto dia me demitiram”. (3)
Com base nos depoimentos de vários jornalistas que à época atuavam nas redações, é possível notar que, por um lado, nos jornais em que havia a presença física de um censor da Polícia Federal dentro da redação, a elaboração de estratégias para fugir da censura se tornava uma tarefa mais difícil. Por outro, a convivência com os censores possibilitava, em alguns casos, uma margem de negociação, que não existia nos veículos em que a censura prévia era feita nas sedes de órgãos do governo. Alguns jornalistas relembram que, em determinadas situações, a proximidade física com os agentes ajudava os repórteres a perceber os critérios usados no corte de matérias e o modo de atuação dos censores. Ricardo Kotscho, então repórter de O Estado de S. Paulo, depõe: “Como a gente ia trabalhar, os censores também iam. Com o tempo, a gente começou a conviver com os caras e negociar com eles na oficina. Eu percebi que eles liam só o começo da matéria, se fosse assunto sério eles liam tudo, mas se fosse bobagem eles deixavam passar. Aí eu comecei a escrever com pirâmide invertida ao contrário, porque o jornalista tem sempre que abrir com o mais importante. Eu abria com qualquer abobrinha e deixava as coisas mais importantes para frente. Uns dias depois o cara percebeu, alguém falou com ele, e ele ficou bravo. A gente tinha essa relação com o censor, não tinha outro jeito.” (4)
Clóvis Rossi levanta outra questão. Sem negar as consequências negativas para a liberdade de informação da presença do censor na redação e para o trabalho cotidiano, o jornalista comenta que, no caso do Estado de S. Paulo, a introdução da censura prévia gerou um único fato positivo: o fim da autocensura. “A censura nos liberou da autocensura, o que é um benefício, porque a autocensura é muito ruim para quem a faz. Você se sente mal, você se sente cúmplice e a censura nos liberou disso. Você não precisava fazer isso, porque sabia que os censores iam proibir – e proibiriam mesmo. (...) Trabalhávamos com um teor de normalidade muito maior do que a ditadura externa permitia, porque nós sabíamos que cada um tinha seu papel. Nosso papel era fazer um jornal e o da censura era cortar o que eles quisessem cortar, e assim vivíamos nessa situação estranha, mas melhor, acho eu, do que a autocensura.” (5)
De acordo com Augusto Nunes, que também trabalhava em O Estado de S. Paulo, o clima na redação sob censura prévia era o pior possível. “Num primeiro momento, você acha que é herói da resistência e aí você decide que vai escrever e eles vão cortar”, diz Nunes. “O problema da censura é que ela te emascula, ela acaba fazendo o afogamento na origem. Você cansa de escrever sabendo que vão cortar. Você escreve uma vez, escreve outra, quando vem a terceira matéria com aquele lápis vermelho, é difícil você escrever, porque vira uma coisa teimosa... Não é que você pratique a autocensura, você se rende, não há o que fazer. E aí você começa a publicar receita, essas coisas.”(6)
Presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro durante o último governo militar, do general João Baptista de Figueiredo, José Carlos Monteiro analisa que, embora os anos de chumbo tenham sido críticos para toda a imprensa, havia condições diferenciadas de trabalho e coação nos veículos. Ele relembra que, no jornal O Globo, onde foi um dos editores do noticiário internacional, “foram tempos duros, tenebrosos” de 1968 em diante. “O clima na redação era sufocante. Apesar de Roberto Marinho [proprietário do jornal e do grupo Globo] ter apoiado, desde o começo, o movimento golpista, o jornal não escapou da repressão. Do ponto de vista profissional, pessoal e político, a atmosfera era um misto de perplexidade, desorientação, desalento e de uma grande disposição de resistência. Não era só a editoria de política que era visada pela censura. De forma geral e indiscriminada, a prática da censura atingia praticamente todos os setores da redação, até o setor de pesquisa e de arquivo.” Quando se transferiu para o Jornal do Brasil, as coisas melhoraram bastante. “Eu tive mais liberdade. Trabalhei na coluna Informe JB, que me permitia um maior espaço de resistência”, ressalta Monteiro. (7)
Formas de resistência
As maneiras de driblar a censura, divulgando informações contrárias aos interesses do regime, variavam de veículo para veículo, bem como a intensidade do controle aplicado a cada jornal. Um exemplo dessas diferenças está na comparação que pode ser estabelecida entre os jornais Estado de S. Paulo e O Globo. No primeiro caso, o inconformismo diante de ordens da censura incluiu a família Mesquita, proprietária do jornal, o que contribuiu, por um lado, para a instauração da censura prévia, mas possibilitou, por outro, uma margem maior de atuação para os jornalistas na redação. Em O Globo que apoiou o golpe militar desde o começo, houve formas de controle interno da informação e da opinião. Procedimento semelhante se observou em outros veículos, como mencionado em livros e teses que abordam o período. Neste caso, a censura empresarial agiu de forma mais acentuada, minimizando, ainda mais, os espaços de resistência.
José Carlos Monteiro explica que, durante os anos de chumbo, as estratégias para driblar os mecanismos de censura em O Globo tinham que ser bastante sutis. Segundo ele, os jornalistas não tinham liberdade de informar criteriosamente o leitor sobre o que acontecia no mundo. “Aos jornalistas o que cabia era descobrir maneiras, procedimentos de contornar essa censura, essa repressão. No nosso caso, dos jornalistas que trabalhavam nas grandes empresas de comunicação, além da censura do regime, estávamos sujeitos às regras da empresa. Por exemplo, escrevíamos matérias de apoio a movimentos literários, musicais, que prestigiassem o teatro brasileiro, o cinema, etc. Na hora da edição, colocávamos uma foto aqui, uma legenda ali. Mas os que exerciam a censura não eram burros. Eles chamavam a atenção da gente”. (8)
Na avaliação de Alberto Dines, a experiência no Jornal do Brasil mostrou que obedecer estritamente às ordens dadas pela censura também poderia ser uma forma de desobedecer. Isto é, a seu ver, era possível acatar as ordens e, ao mesmo tempo, interpretá-las com alguma margem de liberdade e ousadia. Como exemplo disso, Dines conta que, no dia da deposição do presidente chileno Salvador Allende por um golpe militar (11 de setembro de 1973), a Polícia Federal ordenou que o jornal não usasse a notícia como manchete. A solução encontrada pelos jornalistas foi, de acordo com ele, uma forma de conciliar a orientação recebida com uma mensagem subliminar de resistência:
“Eu disse [aos colegas de redação]: ‘a gente vai cumprir estritamente, eles não querem manchete, fazemos um jornal sem manchete... Vamos fazer um negócio: tira a manchete, vamos dar aí três ou quatro blocos, corpo o maior possível, contar essa história toda, sem manchete, e essa história, ela vai servir de manchete. Nós estamos cumprindo estritamente às ordens da censura, estamos fazendo um jornal em que o Allende não está na manchete’. Não esqueci dos telefonemas que eu recebi e do impacto que causou e a edição não sobrou nada, porque foi muito impactante para o leitor um jornal sem manchete.” (9)
É importante assinalar que muitos jornalistas temiam que, depois de conviver por muito tempo com a censura, inconscientemente, adotassem uma autocensura, que acabasse atrapalhando o exercício de suas funções. Como explicita Maria Aparecida de Aquino em seu estudo sobre os efeitos da censura na imprensa: “Uma das maiores preocupações dos profissionais da imprensa referia-se à introjeção da autocensura, mesmo após o término de sua vigência. Ou seja, após tantos anos de convivência com ‘ordens superiores’ ou com o censor instalado nas redações, impedindo ou mutilando o exercício de seu trabalho, temiam os jornalistas que, retirada a censura prévia, a autocensura viesse tomar o seu lugar, como um alter-ego, bloqueando sua produção e a sua função de informar o leitor.” (10)
Quando ocorreu, efetivamente, o fim da censura, os jornalistas vivenciaram uma fase de readaptação, em que tiveram que se reacostumar à possibilidade exercer a profissão com mais liberdade – ainda que não absoluta, já que as empresas jornalísticas continuaram e continuam aplicando suas diretrizes editoriais e zelando por seus interesses políticos e econômicos. As dificuldades anteriores afetaram alguns profissionais, que precisaram de tempo para se readaptar às tarefas cotidianas, porque ainda sentiam um certo medo de escrever, temendo a censura ou as reprovações de seus chefes imediatos. Na verdade, eram os efeitos da autocensura que se faziam sentir. Sem querer, não eram poucos os jornalistas que se continham demais ao escrever, se autocensurando. Mesmo quando a censura desapareceu, editores e redatores receavam arriscar em determinados títulos e manchetes. Só aos poucos fomos relaxando”, atesta José Carlos Monteiro. (11)
Considerações finais
Podemos concluir, a partir da análise dos depoimentos dos jornalistas que estavam nas redações no período mais agudo da ditadura, que, apesar das restrições à liberdade de imprensa e de expressão, em muitos casos, foi possível transmitir informações relevantes aos leitores. A censura levou jornalistas mais conscientes a buscarem outras maneiras de veicular notícias sobre a realidade do país. Isto é, por conta das dificuldades enfrentadas, os profissionais precisaram fugir dos padrões de escrita e de edição tradicionais do jornalismo, encontrando, assim, outros mecanismos eficientes de comunicação e, de algum modo, apurando o estilo textual. Embora muitas tarefas cotidianas tenham sido prejudicadas por cortes e proibições da censura, houve ocasiões em que foi possível reagir às imposições, através de artifícios para burlar o controle da informação.
Importante perceber que vários jornalistas que se opunham à repressão atribuem, nos dias de hoje, enorme importância à função da imprensa na resistência ao regime ditatorial, tanto como forma de cumprimento do papel social do jornalista, quanto como exercício de cidadania. Ou seja, gerações de jornalistas consideram que a experiência de trabalhar sob censura em determinada medida contribuiu para a formação pessoal e profissional. Os depoimentos revelam que os episódios de resistência às imposições censórias foram fundamentais para a construção de suas reputações, já que defendiam a ética e a veracidade informativa.
Alguns jornalistas afirmam, ainda, que o aprimoramento da escrita e a linguagem metafórica usada para transmitir conteúdos proibidos produziram mudanças importantes em suas práticas e estilos profissionais. Como revela Mino Carta sobre o período em que dirigiu a revista Veja: “A censura nos levou a repensar a conjuntura em que vivíamos de forma bem diferente da do início da revista. E mais, levou a revista a se esmerar na informação de qualidade. Por incrível que possa parecer.” (12)
Flávio Tavares, redator e depois correspondente de O Estado de S. Paulo, diz que foi necessário aprimorar a forma de dizer as coisas nas matérias, para escapar à vigilância. Mesmo que tenha sido algo forçado pelas circunstâncias, essa experiência acabou resultando em aprimoramento profissional: “Eu me soltei muito mais depois de 1964. É uma total contradição dizer isso, de que eu me soltei mais como jornalista num período autoritário, ditatorial, de total vigilância, mas é verdade. Apurei meu estilo, passei a dizer tudo de uma forma mais elegante que marca meu estilo até hoje.” (13)
Uma das lições a extrair, segundo Monteiro, é a necessidade de a sociedade civil organizar-se para atuar como “uma caixa de ressonância dos desejos de transformação”. Sem isso, ele conclui, “os jornais alternativos ficam escrevendo as suas coisas, a grande imprensa fica fingindo que faz parte da democracia escrever e dizer o que ela diz e nada muda”. (14)
A resistência da imprensa durante a ditadura militar provou que a luta por um sistema democrático está atrelada à defesa da livre circulação das informações e à necessidade de os meios de comunicação refletirem a variedade de opiniões, visões de mundo e valores que se manifestam na sociedade. Desta forma, o jornalismo de qualidade pressupõe liberdade de expressão e diversidade de fontes, temáticas e conteúdos, a fim de que a sociedade possa se informar da forma mais ampla possível, formar seus próprios juízos e participar da vida do país de forma consciente.
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Este artigo é uma versão resumida da monografia “Ditadura militar: os jornalistas e o exercício da profissão nas décadas de censura e autoritarismo”, aprovada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro para conclusão do curso de Comunicação Social (Jornalismo) em dezembro de 2012.
Lívia Assad é jornalista no Rio de Janeiro, Brasil.
NOTAS:
(1) Entrevista de Alberto Dines ao Centro de Cultura e Memória do Jornalismo. Disponível em: http://www.ccmj.org.br/sites/default/files/pdf/5/ALBERTO_DINES%20final.pdf
(2) Entrevista de Clóvis Rossi ao Centro de Cultura e Memória do Jornalismo. Disponível em: http://www.ccmj.org.br/sites/default/files/pdf/5/Arquivo%20para%20download_12.pdf
(3) Entrevista de Pery Cotta ao Centro de Cultura e Memória do Jornalismo. Disponível em: http://www.ccmj.org.br/sites/default/files/pdf/5/Arquivo%20para%20download_20.pdf
(4) Entrevista de Ricardo Kotscho ao Centro de Cultura e Memória do Jornalismo. Disponível em: http://www.ccmj.org.br/video-detalhes/607
(5) Entrevista de Clóvis Rossi ao Centro de Cultura e Memória do Jornalismo. Já citada.
(6) Entrevista de Augusto Nunes ao Centro de Cultura e Memória do Jornalismo. Disponível em: http://www.ccmj.org.br/sites/default/files/pdf/5/Arquivo%20para%20download_5.pdf
(7) Entrevista de José Carlos Monteiro à autora, em18 de junho de 2012.
(8) Idem
(9) Entrevista de Alberto Dines ao Centro de Cultura e Memória do Jornalismo, já citada.
(10)AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, imprensa, estado autoritário (1968-1978). Bauru: EDUSC, 1999, p. 16.
(11)Entrevista de José Carlos Monteiro à autora, já citada.
(12) Entrevista de Mino Carta. In PEREIRA, Fábio. Jornalistas-intelectuais no Brasil. São Paulo: Summus, 2011, p. 125.
(13) Entrevista de Flávio Tavares. In: PEREIRA, Fábio. Jornalistas-intelectuais no Brasil. São Paulo: Summus, 2011, p. 125.
(14) Entrevista de José Carlos Monteiro à autora, já citada.
https://www.alainet.org/pt/active/67660