Hoje, na América Latina, Marx seria extrativista?
21/02/2013
- Opinión
Na América Latina, seguem avançando as estratégias focadas na mineração, hidrocarbonetos e monocultivos, apesar de significarem a repetição do papel de países provedores de matérias-primas e das resistências cidadãs.
Tal modo de ser extrativista se expressa tanto em governos conservadores como progressistas. Mas, como entre esses últimos se esperava outro tipo de desenvolvimento, a insistência se converteu em um nó político de enorme complexidade.
Para sustentar o estímulo extrativista, está se apelando a novas justificativas políticas. Uma das mais chamativas é invocar os velhos pensadores do socialismo, a fim de argumentar que eles não se oporiam ao extrativismo do século 21, pelo contrário, promovê-lo-iam.
Seguramente, o exemplo mais destacado foi o presidente equatoriano Rafael Correa, que para defender o extrativismo lançou perguntas desafiantes: “Aonde está no Manifesto Comunista o não à mineração? Que teoria socialista disse não à mineração?” (entrevista de maio de 2012).
Correa dobra sua aposta, já que, além de citar Marx e Engels, soma outro apoio agregado que não pode passar despercebido: “tradicionalmente, os países socialistas foram mineradores”. A mensagem que se lança é que a base teórica do socialismo é funcional ao extrativismo, e que, na prática, países do socialismo real o fizeram com êxito. Se sua postura fosse correta, hoje em dia, e na América Latina, Marx e Engels deveriam estar apoiando as explorações mineradoras, petroleiras e os monocultivos para exportação.
Sonhando com um Marx extrativista
Comecemos avaliando até onde pode chegar a validade da pergunta de Correa. É que não dá pra esperar que o Manifesto Comunista, escrito em meados do século 19, contenha todas as respostas para todos os problemas do século 21.
Como assinalam dois dos mais reconhecidos marxistas do século 21, Leo Huberman e Paul Sweezy, tanto Marx como Engels, ainda em vida, consideravam que os princípios do Manifesto seguiam sendo corretos, mas que o texto tinha envelhecido. “Em particular, reconheceram implicitamente que, à medida que o capitalismo se estendesse e se introduzisse em novos países e regiões, na corrente da história moderna, surgiriam necessariamente problemas e formas de desenvolvimento não consideradas pelo Manifesto”, argumentam Huberman e Sweezy. Sem dúvida, essa é a situação das nações latino-americanas, onde seria indispensável contextualizar tanto as perguntas como as respostas.
Em seguida, é necessário verificar se realmente todos os países socialistas foram mineradores. Isso não é de todo certo, e, naqueles locais onde a mineração cresceu em importância, agora sabemos que o balanço ambiental, social e econômico foi muito negativo. Um dos exemplos mais impactantes ocorreu nas regiões mineradoras e siderúrgicas na Polônia, sob a sombra soviética. Hoje se vivem situações igualmente terríveis na mineração da China.
Não se pode esquecer que muitos desses empreendimentos, dado seu altíssimo custo social e ambiental, só voltam a ser viáveis quando não existem controles ambientais adequados ou se silenciam autoritariamente as exigências cidadãs. Tampouco pode passar despercebido que aquele extrativismo, de estilo soviético, foi incapaz de gerar o salto econômico e produtivo que esses mesmos planos previam.
Atualmente, a partir do progressismo, defende-se o extrativismo aspirando aproveitar ao máximo sua renda econômica, para assim financiar, de um lado, diferentes programas sociais e, por outro, mudanças na base produtiva para criar outra economia.
O problema é que, dessa maneira, se gera uma dependência entre o extrativismo e os programas sociais. Sem os impostos às exportações de matérias-primas, seriam reduzidas as possibilidades para financiar, por exemplo, as ajudas monetárias mensais aos setores mais pobres. Isso faz com que o próprio Estado se torne extrativista, convertendo-se em sócio dos mais variados projetos, cortejando investimentos de todo tipo e brindando diversas facilidades. Sem dúvidas que existem mudanças sob o progressismo, mas o problema é que se repetem os impactos sociais e ambientais e se reforça o papel das economias nacionais como provedoras subordinadas de matérias-primas.
A pretensão de sair dessa dependência por meio de mais extrativismo não tem possibilidade de concretizar-se. Gera-se uma situação na qual a transição prometida se torna impossível, pelas consequências do extrativismo em vários aspectos, desde econômicas até políticas (como o deslocamento da indústria local ou a supervalorização das moedas nacionais, tendência a combater a resistência cidadã). O uso de instrumentos de redistribuições econômicas tem alcance limitado, como demonstra a repetição das mobilizações sociais. Além disso, é custoso e torna os governos ainda mais necessitados de novos projetos extrativistas.
É justamente todas essas relações perversas que deveriam ser analisadas com o olhar em Marx. A mensagem de Correa, apesar de desafiante, mostra que, para além das citações, na realidade, não toma aqueles princípios de Marx que ainda seguem atuais para o século 21.
Escutando a advertência de Marx
Marx não rejeitou a mineração. A maior parte dos movimentos sociais tampouco a rejeitam, e, se suas queixas fossem escutadas com atenção, se perceberia que estão focadas num tipo particular de empreendimentos: de grande escala, com remoção de enormes volumes, a céu aberto e intensiva. Em outras palavras, não se deve confundir mineração com extrativismo.
Marx não rechaçou a mineração, mas tinha muito claro aonde deveriam operar as mudanças. Desde tal perspectiva, surgem respostas à pergunta de Correa: Marx distinguia o “socialismo vulgar” de um socialismo substantivo, e essa diferenciação deve ser considerada com toda a atenção na atualidade.
Em sua “Crítica ao programa de Gotha”, Marx recorda que a distribuição dos meios de consumo é, na verdade, uma consequência dos modos de produção. Intervir no consumo não implica transformar os modos de produção, mas é neste último nível onde deveriam ocorrer as transformações. Agrega Marx: “o socialismo vulgar (...) aprendeu dos economistas burgueses a considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção e, portanto, a expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição”.
Aqui está a resposta à pergunta de Correa:
Marx, na América Latina de hoje, não seria extrativista, porque com isso abandonaria a meta de transformar os modos de produção, tornando-se um economista burguês. Pelo contrário, estaria promovendo alternativas à produção e isso significa, no nosso contexto presente, transitar para o pós-extrativismo.
Seguramente, o olhar de Marx não é suficiente para organizar a saída do extrativismo, já que era um homem imerso nas ideias do progresso próprio da modernidade, mas admite identificar o sentido que deverão ter as alternativas. Com efeito, fica claro que os ajustes instrumentais ou melhoras redistributivas podem representar avanços, mas continua sendo imperioso transcender a dependência do extrativismo como elemento chave dos atuais modos de produção. Essa questão é tão clara que o próprio Marx conclui que “uma vez que está elucidada, há muito tempo, a verdadeira relação das coisas, por que voltar e dar marcha atrás?”.
Portanto, por que se segue insistindo com o extrativismo?
Bibliografia:
Huberman, L. e P. Sweezy, 1964; O Manifesto Comunista: 116 anos depois. Monthly Review 14 (2): 42-63.
Marx, K. 1977. Crítica do Programa de Gotha. Editorial Progreso, Moscou.
- Eduardo Gudynas é analista de informação no D3E (Desenvolvimento, Economia, Ecologia e Equidade), centro de investigações dos assuntos latino-americanos sediado em Montevidéu.
Traduzido por Gabriel Brito, Correio da Cidadania.
https://www.alainet.org/pt/active/61784
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