Entrevista a Gregorio Santos, Presidente da Região Cajamarca-Peru
“A unidade dos povos pela vida e pela água”
24/02/2012
- Opinión
Cajamarca se converteu, nos últimos meses, no centro do conflito pela defesa da soberania dos recursos naturais e do meio ambiente no Peru e, certamente, pela dimensão dos interesses que estão em disputa, se converteu também no centro do conflito em nível continental. O projeto mineiro Conga, que foi declarado inviável pelo governo regional de Cajamarca, ameaça acabar com as reservas de água doce da região e, segundo indicam os estudos de impacto ambiental realizados pelo próprio Ministério do Ambiente do Governo peruano, produziria danos irreversíveis ao ecossistema da região e contaminaria gravemente a bacia hidrográfica do rio Marañón, que como se sabe, é o principal afluente de da bacia superior do Rio Amazonas.
Portanto, longe de um impacto ambiental pontual, se trata de uma grave ameaça para a bacia amazônica e, por conseguinte, para o ecossistema da principal floresta úmida do planeta.
Por outro lado, os interesses econômicos de Conga não são menores, pois se trata de um projeto nas mãos da segunda maior empresa de extração de outro do mundo (Newmont, de capital estadounidense), em um país que ocupa o primeiro lugar em produção de ouro na América Latina e o sexto em nível mundial.
Há algum tempo estudamos as diferentes dimensões da disputa entre projetos hegemônicos e contra-hegemônicos na conjuntura mundial contemporânea e a complexidade que isto significa para a geopolítica latino-americana. Nossas pesquisas mostram que a disputa pelos recursos naturais estratégicos adquiriram uma centralidade cada vez maior na dinâmica de acumulação do capitalismo contemporâneo, criando práticas cada vez mais violentas de expropriação e de expulsão das populações locais, geralmente indígenas e campesinas, dos territórios produtores destes recursos. Estes conflitos se apóiam cada vez mais em uma política de militarização dos territórios e criminalização dos movimentos sociais na região.
Para compreender melhor esta dinâmica temos realizado estudos empíricos que comprovem este enfoque. Abaixo, reproduzimos a entrevista que fizemos recentemente com o Presidente Regional de Cajamarca, Gregorio Santos, que ao se colocar na condução da luta pelos interesses do povo de Cajamarca, se converteu em uma das lideranças políticas mais expressivas pela defesa da soberania, a defesa do meio ambiente e a articulação das lutas locais, regionais e continentais.
Formado a partir de sua experiência como professor e dirigente das Rondas Campesinas de Cajamarca, organização criada nos anos 80 para defender os interesses comunitários das populações campesinas e indígenas desta região, Santos demonstra uma visão estratégica da disputa pelos recursos naturais e uma análise séria e bem informada da dinâmica da atividade mineira no Peru. Sua visão de governo aposta em um novo enfoque de desenvolvimento, rompendo com o tradicional modelo exportador de matérias primas de baixo valor agregado e propondo uma gestão econômica soberana dos recursos naturais. Esta postura contrasta profundamente com os adjetivos de “intransigente”, “violentista”, e até a comparação com o ditador do Camboja, Pol Pot, que foram imputadas a Gregorio Santos durante as últimas semanas.
Mónica Bruckmann: Quais são os interesses mais concretos que estão em jogo em relação ao projeto mineiro Conga?
Gregorio Santos: Historicamente Cajamarca sempre representou um marco na vida latino-americana. Marcou-o, em 1532, quando os europeus chegaram ao Peru e começou a grande desestruturação do Tahuantinsuyo. Posteriormente, com a captura de Atahualpa pelos espanhóis e a coleta do ouro e da prata que haviam pedido como resgate, para logo terminar enforcando ao próprio Atahualpa[1].
Logo, [Cajamarca] marcou a retomada do crescimento da economia nacional com a intensificação da mineração no Peru, depois do golpe de Estado de Fujimori, quando em 1993 a mineradora Yanacocha inicia suas operações, e com ela se dá início ao maior Projeto Mineiro da América do Sul, com participação acionária da empresa estadunidense Newmont, do Banco Mundial e da família Benavides de la Quintana.
Outro momento especial foi vivido quando os interesses de Yanacocha se expandiam até a cidade de Cajamarca e o povo reagiu e freou a exploração da colina Quilish, que nesse momento significava a exploração de 6 milhões de onças de ouro.
Yanacocha continuou suas operações e enquanto isso ocorria, as seis maiores mineradoras do mundo se localizavam em Cajamarca. Estamos falando de Newmont, de Rio Tinto e de La Granja, que segundo dizem tinham uma produção de 4 bilhões de toneladas de rocha mineralizada de cobre. E falamos também do Projeto Galeno, de investimento chinês, do projeto Michiquillay, da empresa Anglo American. O grande interesse é aproveitar a conjuntura dos preços elevados dos minerais e ganhar tempo para promover grandes transformações na estrutura legal e constitucional do país, que é o que exigem as transnacionais. O tempo do movimento social peruano estaria diminuindo na luta pela defesa dos recursos naturais.
Não esqueçamos que Ollanta Humala ganha as eleições presidenciais porque propõe uma mudança constitucional: acabar com os privilégios tributários e revisar os contratos com as grandes transnacionais. Muitas delas, que têm privilégios tributários como a empresa Newmont, são as que neste momento resistem e neutralizam as lutas populares. Estas transnacionais, ao parecer, dominam a CONFIEP (Confederação Nacional de Instituições Empresariais Privadas),este grêmio peruano que cerrou fileiras e colocou como tema emblemático o caso do projeto Conga.
Então, são interesses econômicos da Newmont, interesses políticos e jurídicos que buscam não ceder no atual marco regulatório peruano, porque cedendo em CONGA teriam que ser realizadas mudanças constitucionais e teriam que ser produzidas modificações em toda a base legal e tributária do país. Em nosso modo de ver, há os grandes interesses das empresas transnacionais em manter o controle dos recursos naturais no Peru.
MB: Que benefícios teria Yanacocha através do projeto mineiro Conga?
GS: Bom, para o Projeto Conga já não haveria convênio de estabilidade tributária. Mas o grande benefício de Conga é que toda a maquinaria da Yanacocha seria deslocada diretamente para as novas minas, através de um caminho que os une por um cordão umbilical de poucos quilômetros.
Yanacocha tem a enorme vantagem de que seu projeto mineiro é barato e muito rentável, porque toda a infraestrutura dos quase 20 anos de exploração mineira em Cajamarca passaria imediatamente a ter novo valor com o projeto Conga. O problema é que Yanacocha, com os privilégios tributários que possui, encontrou água grátis, recursos naturais grátis e isso significa enormes vantagens em relação a outros lugares do mundo onde eles operam.
MB: Segundo a avaliação do governo regional de Cajamarca, qual seria o impacto ambiental do projeto Conga se aprovado nas condições propostas atualmente?
GS: É um projeto altamente depredador. Entra em conflito profundamente com o momento que vivemos no mundo, com o discurso do presidente Ollanta Humala nas praças de Cajamarca, Bambamarca e Celendín, quando ele nos disse: “o que vocês querem, ouro ou água?”, e o povo disse: “água”. E então ele nos disse: “querem vender a lagoa?”, e as pessoas responderam: “não”. Então, ele respondeu, “eu me comprometo a defender os recursos hídricos de Cajamarca”.
O maior impacto do projeto Conga é o desaparecimento de todas as regiões pantanosasde todas as cabeceiras da bacia e das principais bacias de três províncias de Cajamarca: Celendín, Cutervo e Bambamarca. O informe de impacto ambiental do MINAM (Ministério do Ambiente) disse que a operação em Conga produziria danos irreversíveis e que o estudo de impacto ambiental do projeto carece de um enfoque de preservação das bacias.
Outro dentre os grandes impactos é o desequilíbrio da paisagem, porque trata-se do desaparecimento de mais de 100 mil hectares que terminariam somando-se ao enorme deserto andino que já se foi ampliado dramaticamente nos últimos 20 anos. Yanacocha ainda não demonstrou que com o fechamento das minas, como eles assinalam, haverá a recuperação do território e o deixaram tal como o encontraram…
Isso sem contar com todo o resto de consequências, que tem a ver com o impacto social, por exemplo. O estudo do impacto ambiental não tem como informação de base a saúde das pessoas antes de iniciar a operação do projeto mineiro. Outro tema grave é a subvalorização dos recursos naturais. O mesmo MINAM assinala que os recursos foram subvalorizados, tanto a água como o próprio uso do solo para fazer estradas. Estes são problemas que já foram vividos em Cajamarca com a influência de Yanacocha. A população não sabe se a enfermidade que tem é pelo impacto da mineração ou se sempre tiveram esse tipo de enfermidades, cada vez mais desconhecidas.
MB: O grande argumento que está sendo colocado pela grande mídia no Peru a favor do Projeto Conga é o volume do investimento que este traria ao país. De que estamos falando realmente?
GS: A grandes transnacionais, os grupos de poder econômico do mundo e as grandes potências como Estados Unidos fizeram o Presidente da Republica Ollanta Humala mudar de opinião. Quando ele retornou da APEC[2] e o conflito social em Cajamarca havia se instalado, diante da palavra de Cajamarca que era “Conga no va”, ele disse “Conga si va”. Neste momento disse que o investimento que havia para esse projeto era muito útil e necessário para o país, e cometeu graves erros ao assinalar que com isso financiaria programas sociais como “Bolsa 18” e “Pensão 65”. No Peru, os programas sociais não são mais que o vergonhoso assistencialismo que o neoliberalismo vem sustentando e aplicando.
Fale-se de 4,800 milhões de dólares de investimentos. Ao longo dos próximos 20 anos poderia ser investido algo em torno de 15 milhões no Peru. No entanto, quando analisamos a cifra dos 4,800 milhões de dólares, vemos que estes seriam gastos na instalação da empresa de mineração. Aproximadamente 1,800 milhões de dólares estariam destinados à infra-estrutura da empresa, a um moinho que seria o transportador de pedra e o resto seria destinado para Odebrecht, que seria a empresa encarregada de instalar todos os campos e realizaria o movimentos de solos.
De tal maneira que o investimento usado para comprar todo esse tipo de infra-estrutura, não seria usado, como não foi usado em todos estes anos, no desenvolvimento de Cajamarca. Porque o Peru, como economia primário-exportadora não tem a força, não tem a capacidade para fortalecer a gestão dos seus recursos naturais. Que dizer, vão entregar tudo isso para as empresas transnacionais.
Para nós, esses 4,800 milhões de dólares seriam importantes se fossem investidos em energia limpa. Por exemplo, no rio Marañón, poderiam construir 20 hidrelétricas. Mas apenas construíram duas. Para fins de substituição deste tipo de investimento, seriam necessários mais ou menos 4,900 milhões de dólares para os projetos hidrelétricos de Cumba 4 e Chadin 2. Estas são duas grandes centrais que poderiam, inclusive, substituir toda a energia térmica que temos no Perú.
Não se quer ver a necessidade desteinvestimento, e o que se está fazendo é destruir oecossistema.Está claro que com essas centrais hidroelétricas poderíamos começar a geraruma nova matriz energética,a matriz hidroenergética e dar lugar a uma mudança do modelo econômico,de um modeloprimário-exportador a um modelo de valor agregado, de industrialização. De tal maneira que o dinheiro que será investido,é apenas uma proposta de marketingdas corporações transnacionais.Nem mesmo o governoOllantaHumala poderiausar essesrecursos, porque o estudo de impacto ambiental ainda está incompleto. Apenas no Peru podem passar estudos incompletos, pois o estudo de impacto ambiental, diz que Yanacocha teria que apresentar um estudo hidrogeológicoem 2013para determinar o impactode suas operações.
MB: Depois que o projeto estivesse em andamento?
GS: Depois que estivesse começado. Em nenhum lugar do mundo ocorre que os estudos de impacto ambiental autorizam o início da obra e a informação que falta é inserida anos depois. Porque o maior problema do projeto Conga é o enorme impacto sobre a água subterrânea. O Peru não tem informação sobre isso nas zonas de bacia hidrográfica, ainda mais quando 60% das concessões minerais dadas no Peru estão localizadas nas cabeceiras de bacia.
A grande contradição é que se declaramos o uso da água como sendo necessidade pública e se declaramos intangíveis as cabeceiras das bacias hidrográfica, 60% das concessões de mineração no Peru seriam inviáveis, não poderiam ser executadas. É por isso que a legislação pela água é abandonada aqui, e não a declaram como recurso estratégico para a nação, bem como são dadas às empresas de mineração todas as oportunidades para avançar os seus projectos ...
Fala-se apenas de investimentos, mas nunca falou-se até agora do altíssimo custo humano e ambiental. Por exemplo, ninguém menciona os 6 mil passivos ambientais. Ninguém diz quanto custaria para Cajamarca mitigar os passivos ambientais que Yanacocha deixará nos próximos anos.
MB: Mas Cajamarca já tem quase 20 anos de mineração intensiva. Qual é o balanço de todo esse tempo de exploração mineira?
GS: Cajamarca, com Yanacochal tem 18 anos de mineração a céu aberto, com enormes lagoas de oxidação. O maior impacto é a mudança radical do clima e da água, basicamente. Porque Yanacocha teve que construir duas plantas de tratamento de água, que fornecem água para Cajamarca. Os rios que antes nasciam de fontes naturais agora nascem de quatro tubos. A empresa prestadora do serviço de água potável está falida, porque você tem que converter a água de tipo 3 em água para consumo humano, o que custa milhões de soles. Por quê?Porque a lei peruana é tão permissível, que tolerou que essas empresas fizessem o que elas bem entenderem.
O outro grande problemaque temos comaempresaNewmonté que nós emCajamarcasomos oacampamento deYanacocha. Somos, neste momento, o acampamento de seis mineradoras, das quais quatro já estão operando plenamente, e duas delas estão prestes a iniciar suas operações. Essas empresas nunca construíram um acampamento, elas não construíram suas estradas ou suas áreas de instalação. Isso fez com que entrasse em colapso o sistema de saúde pública, de educação pública e o crescimento e expansão urbana da cidade.
Oenorme impacto ambiental, impacto social e o impacto sobre a população não são medidos, quantificados ou não são valorizados. As pessoas estão doentes e a violência social tem crescido em uma cidade que há 20 anos não estava preparada para a mineração nas condições em que esta ocorreu. Os estrangeiros foram impondo a cultura do consumismo extremo em contraste com o que era a economia agrária, campesina, comunal e solidária.
As conseqüências da atividade mineira em Cajamarca são enormes. Oxalá que algum dia sejam estudados estes temas e, seguramente, terminaremos demonstrando que as enfermidades do século XXI são as enfermidades causadas pela enorme evaporação das grandes reservas de água, ou das grandes poças que ficam com água contaminada de cianuretoe que terminarão se evaporando e gerando chuvas ácidas em todo esse espaço territorial onde está Yanacocha. Não temos até agora um fundo de compensação ambiental. Cajamarca não tem saneamento básico concluído, a própria cidade tem problemas de água e de esgoto, de saneamento e plantas de tratamento de água. Estes problemas recém-começaram a explodir e seguramente isso contribui para o enorme conflito que CONGA também originou, porque Cajamarca não está disposta a permitir a expansão mineira de um projeto como Conga, nas mãos da mesma empresa que tratou tão mal a toda a população.
MB: A empresa estadounidense Newmont Mining tem participação de 51% das ações de Yanacocha. Para os Estados Unidos, garantir o abastecimento de recursos naturais estratégicos para o que eles chama de “bem estar da nação” é uma questão se segurança nacional. Assim, o estabelecem em sua Estratégia de Defesa de 2006 e de 2010, e em seu Plano de Desenvolvimento Científico para o período 2007-2017, elaborado pelo Serviço Geológico do Ministério do Interior, igual a todos os documentos oficiais que orientam sua política externa. Ao declarar-se um problema de “segurança nacional” o acesso a recursos naturais estratégicos, que estão, fundamentalmente, fora de seu território continental e de ultramar, os Estados Unidos colocam em tensão sua força e estratégia militar para garantir o domínio desses recursos no mundo. É possível perceber a presença militar dos Estados Unidos na região de Cajamarca?
GS: Veja, a região Cajamarca teve bastante presença de norte-americanos. Estiveram em 2005, quando explodiu o conflito em Majaz, na fronteira peruano-equatoriana, lançando uma ofensiva por toda a bacia do Marañón, a bacia do Chinchipe, entre Peru e Equador e na fronteira entre Peru e Colômbia, sob o pretexto de buscar novos assentamentos do narcotráfico. A DEA (Drug Enforcement Administration) se fez presente e logo começaram as declarações de que quem se opunha à mineradora estávamos ligados às FARC de Colômbia ou estávamos ligados ao narcotráfico internacional. Eu fui julgado em Piura e em Lima por estas acusações e por “ter financiamento do terrorismo internacional”. Há toda uma estratégia coordenada.
Logo, vimos a transferência permanente do Comando Sul dos Estados Unidos (Southcom) para Cajamarca, para fins de construir, segundo eles diziam, um centro de operações especiais para ajuda humanitária. Este centro de operações especiais para ajuda humanitária consiste um ter uma área importante, onde se construiriam instalações para manejar informação meteorológica, satelital e também para detectar,em tempo real, segundo a proposta dos Estados Unidos, fenômenos naturais que podem afetar à população cajamarquina.
Existe uma relação muito grande entre o cumprimento do prazo para que as tropas norte-americanas se retirem de Manta, Equador, e a proposta, durante o governo de Alejandro Toledo, de que esta base militar passe à comunidade campesina de Yanta, em Ayabaca, Cajamarca. A região de Ayabaca, San Ignacio, Huancabamba, Condorcanqui, forma parte do enorme corredor do ouro, do cobre e da prata e, além disso, é uma região que possui uma grande biodiversidade, na fronteira peruana-equatoriana.
No entanto, a correlação de forças políticas no Equador mudou, e a ideia de se instalar em Yanta, em Ayabaca, desapareceu. Então, se intensificou a presença de tropas norte-americanas e do Comando Sul dos Estados Unidos em Cajamarca, Lambayeque e Piura. A explicação que nos dão é que isso seria um centro de operações especiais para defesa civil, para ajuda humanitária, para fazer frente a qualquer desastre. Mas entendendo o enorme interesse norte-americano em torno do Marañón, do Amazonas e do que temos na fronteira com Equador, podemos entender o movimento de militares norte-americanos entre Bagua, Utcubamba, Moyobamba, Piura e Cajamarca, que se foi permanente desde 2005. Hoje, mais do que nunca, é evidente o afã de construir este centro de operações em Cajamarca.
MB: O Comando Sul dos Estados Unidos, ou alguma outra instância militar deste país, buscou realizar reuniões oficiais com o governo de Cajamarca?
GS: Tivemos uma reunião para ver onde se localizará este centro de operações especiais, fundamentalmente o contato com o prefeito de Cajamarca a quem corresponderia entregar o terreno e o Comando Sul dos Estados Unidos colocaria os recursos para construir as instalações. Teria um heliporto e equipes satelitais. É o único que ocorreu, não houve maiores reuniões.
Durante estes anos de governo, os conflitos sociais foram permanentes, e nós tomamos uma posição de defesa dos recursos naturais e de recuperação da soberania sobre os mesmos. Quando colocamos a necessidade de modificação da Constituição Política do Estado, e o retorno à Constituição de 1979, estamos propondo a recuperação da soberania das fronteiras. Porque na Constituição de 1979, nenhum estrangeiro pode ter propriedades a menos de 50 km da fronteira. Por outro lado, com a Constituição de 1993, os estrangeiros puderam ter propriedades nesta franja fronteiriça, previa promulgação de um Decreto Supremo que declarasse de necessidade pública esta propriedade, e os governos de Alejandro Toledo y e Alan García deram estes dois decretos às empresas mineiras, declarando que a propriedade territorial ligada ao projeto mineiro Majaz, ou Río Blanco, é uma necessidade pública para o Peru. O mesmo ocorreu na região de Condorcanqui e San Ignacio.
MB: Amparado na legislação peruana vigente, o Goverrno Regional de Cajamarca promulgou a Portaria 036, que declara inviável o Projeto Conga. A Procuradoriada Nação está pedindo a revogação desta portaria e inclusive uma revisão da Constituição vigente com relação à autonomia das regiões. Ao mesmo tempo, foi tornada pública, através da imprensa local, a possibilidade de um processo penal contra o senhor por “usurpação de funções”. Que estratégia de defesa está sendo projetada pelo governo regional de Cajamarca?
GS: A legislação peruana, a Constituição de 1993, que foi feita na medida do neoliberalismo de Alberto Fujimori, conseguiu incluir os governo regionais na estrutura do Estado, estabelecendo funções que deveriam ser transferidas aos governos regionais. No entanto, sobre o tema ambiental e o tema dos recursos hídricos, a legislação é bastante imprecisa e somos o único governo regional que legislou sobre a água e a proteção das bacias hidrográficas da região. Num primeiro momento o governo de Ollanta Humala nos apoiou para avançar na criação de instrumentos como o zoneamento ecológico e econômico, o que nos dá um critério técnico de como deve ser usado e gerido o território. Mas logo nos chocamos com as propriedades das empresas mineiras que foram adquiridas muito antes e que foram beneficiadas pelo governo anterior de Alan García, através do Decreto Supremo 020. Este é um regulamentoque temuma classificação mais baixa, mas disse que se os governos querem ordenar o território, devem pedir permissão para as empresas privadas. Isso, evidentemente, constitui uma violação às normas dos governos regionais.
As bandeiras que o governo de Cajamarca está encabeçando significam a recuperação, ampliação e conquista de competências regionais. Então, esta Portaria Regional 036 está orientada para este objetivo, e declara de necessidade pública a proteção das cabeceiras de bacia da região. Mas baseia-se em uma Portaria Municipal que já foi promulgada pelo governo provincial de Celendín, que já protegia todas as bacias do projeto Conga e impedia a atividade mineira por considerá-la alheia aos interesses da população e altamente predadora e, portanto, priorizava a agricultura.
Tudo está resumido na Portaria 036. Yanacocha, ao não encontrar um colégio profissional, ou um cidadão honorável no país, que quisesse comprar a ação de nos denunciar ante o Tribunal Constitucional, conseguiu que fosse o Fiscal da Nação[3] quem nos denuncia e que apresenta uma ação de inconstitucionalidade da Portaria 036 ante o Tribunal. No Peru o Tribunal Constitucional. No Peru este tribunal é um órgão autônomo que tem a ver com a constitucionalidade das normas.
A estratégia, neste momento, é que os colégios de advogados do Peru, os colégios profissionais, as organizações civis e os governos regionais, contribuam para a defesa da Portaria 036, que está centrada na recuperação das competências dos governos regionais para legislar no território das regiões ante o iminente perigo de impacto sobre a água, o perigo iminente de destruição de fontes de água e dos ecossistemas frágeis. Tudo isso é reconhecido também pelos acordos internacionais sobre a água, sobre os ecossistemas e sobre temas ambientais, como o Convênio do Rio de Janeiro sobre a Diversidade Biológica, ou o Tratado de Kyoto.
Esta é uma dura batalha, porque nesta guerra para recuperar os recursos naturais, é provável que eles não apenas continuem a declarar inconstitucional a norma, mas vão querer nos denunciar penalmente e com essa denuncia penal por “usurpação de funções” pretendem que o Jurado Nacional de Eleições[4] declare o cargo vago. Este é o custo que temos que pagar, mas que também significaria um enorme problema para o neoliberalismo e para os representantes do governo, porque terminaria gerando uma reação social enorme, que provavelmente resultará, se tiver força suficiente, numa Assembleia Constituinte e numa nova Constituição.
A população votou por mudanças estruturais profundas e o presidente Ollanta Humala não pode seguir silenciando ou dizendo que se esqueceu do “Programa da Grande Trasformação” e que agora não é viável. Eu sei que a população poderá perdoar esta atitude por alguns dias mais, contudo mais adiante, as pessoas vão fazer valer seu voto exigindo coerência com o programa de mudanças pelo que votaram.
Nós, como Governo Regional de Cajamarca, estamos buscando uma correlação de forças favorável, convocando a todos governos regionais, aos coletivos de profissionais e aos coletivos sociais através de mobilizações nacionais, como por exemplo, a Marcha em Defesa da Portaria Regional 036, que resume a defensa da água e que alguns estão chamando a “Marcha pela água”. No fundo, esta marcha que se iniciou em Cajamarca, em 1º de fevereiro passado, é a marcha em defesa da Portaria 036 que protege a água e as cabeceiras de bacia, mas também é a marcha da dignidade dos povos pra recuperar a soberania sobre os recursos naturais, especialmente os recursos hídricos.
MB: Esta marcha é o início de uma estratégia política e de mobilização nacional mais ampla?
GS: Esta marcha foi uma convocatória a todos os setores patriotas, democráticos e progressistas.
Foi convocada também a partir do Governo Regional, as Frentes de Defesa, as Rondas Campesinas e outros coletivos. A ideia é chamar a atenção e contribuir para que este tema dos recursos estratégicos como a água, e os recursos hídricos, sejam parte do debate nacional.
Esta mobilização marca o início da tomada de consciência do povo peruano, para que desperte. Sobre os recursos hídricos, há toda uma estrutura legal que privilegia interesses das grandes corporações e que, portanto, sugere a necessidade de recuperar a soberania sobre estes recursos. Em Conga, em Cajamarca, não trata-se apenas da defesa de algumas lagoas, mas, digamos que é a gota no oceano de uma enorme demanda nacional em defesa dos recursos naturais, especialmente dos recursos hídricos. Esta marcha é o primeiro passo de uma campanha nacional sob debates técnicos, discussões científicas, debates políticos, debates jurídicos, que vão contribuindo para o acúmulo de forças e ‘vertebrando’ a grande unidade das forças progressistas para uma nova Constituição e também para a regionalização do país, uma regionalização patriótica, ao mesmo tempo que descentralizada e integradora das economias regionais. Isso vai além de apenas uma questão ecológica e ambiental. É também uma questão política e estratégica para a defesa dos recursos naturais
MB: Qual é a proposta do Governo Regional em relação ao uso dos mineiras estratégicos que o território de Cajamarca possui?
GS: Em primeiro lugar, que sejam aplicados os princípios da equidade, racionalidade e justiça no governo e na visão do país. Que prevaleça a visão de um Estado unitário, que os recursos naturais pertencem a todos os peruanos e que, portanto, Cajamarca, que tem quatro projetos de mineração em operação, não pode ser irracionalmente aniquilada para satisfazer a voracidade do grande capital ou das empresas ou multinacionais, especialmente americanas.
Assim,propomosque os quatroprojetos de mineraçãosão suficientespara os próximos30 anosse a legislação forrevista, se houveruma reforma tributária, a fim de alavancar o desenvolvimento sustentável da região e gerar as bases de um modelo de desenvolvimento transformador, produtivo e inclusivo. Um projeto que passe a utilizar e reflorestar 5 milhões de hectares, com especial ênfase na energia eólica, na energia alternativa e na energia com o recurso hídrico da bacia do Marañon, e então concentremos aí os grandes investimentos. Mas que não seja mais a exploração irracional da mineração, e isso será acompanhado da necessidade de elaborar uma nova Constituição para recuperar a soberania sobre os recursos naturais em Cajamarca e do Peru.
Quer dizer, a soberania sobre o gás natural, o petróleo e os minerais, especialmente os mais importantes, como o cobre. Não se pode ceder facilmente, como ocorre neste momento, com uma normatividade que privilegia o grande capital.
Temos um modelo de desenvolvimento que consiste em investir 300 milhões de soles[5] em agricultura. A recuperação da soberania dos recursos hídricos é imprescindível porque as mineradoras podem obter o uso da água perpetuamente, enquanto que os campesinos não podem fazê-lo para regar seus cultivos. As empresas mineradoras ganharam, de mão beijada, o uso da água. Por isso a luta pela água em Cajamarca, e no Peru, vai ser o tema dos conflitos e a grande confrontação que alguns poderão ver como anti-investimento, anti-mineração, o antiextrativista. Mas no fundo, trata-se do confronto de um modelo econômico neoliberal, primário-exportador extrativista, irracional e, de outro lado, um modelo de desenvolvimento que privilegie a racionalidade que deve existir em um Estado com visão estratégica, que possa ser capaz de gerar as bases de um desenvolvimento mais sustentável e de uma economia mais solidária.
MB: A comunidade latino-americana, os ambientalistas, os movimentos sociais na região, os governos progressistas, estão profundamente preocupados com os desdobramentos que terá este conflito em relação ao projeto Conga em Cajamarca. Gostaria de finalizar esta entrevista dirigindo-se a eles?
GS: Considero que é estratégico para o futuro da América Latina que os cajamarquinos nos escutem, que pensemos como latino-americanos, como peruanos provenientes dessa grande cultura do Tahuantinsuyo[6]. Necessitamos que se entenda que esta luta é parte da luta latino-americana e, diríamos, que é parte da luta pela soberania dos recursos naturais a favor da região e a favor dos que habitamos as bacias do Amazonas, do Marañón ou nas grandes Cordilheiras dos Andes. É necessário que os presidentes progressistas e de esquerda na América Latina considerem colocar na agenda política regional o tema da soberania sobre os recursos naturais estratégicos das nações. Considero urgente e necessário que se opine, e melhor ainda se for possível ajudar, desde os coletivos de intelectuais, de científicos de todas as universidades de Latino-américa e do mundo. Que visitem as diversas regiões do Peru, Cerro de Pasco, Moquegua, Las Bambas, Puno, Cuzco, Cajamarca ou a Amazônia mesmo, e possam ser testemunhas do enorme potencial da biodiversidade que temos, e que poderia nos converter numa potência farmacêutica no contexto de outro modelo de desenvolvimento.
Creio que essa consigna de que “outro mundo é possível” segue tendo vigência e nesse sentido, desde Cajamarca, este pedido para que o tema da soberania dos recursos naturais seja posto na agenda, que não os abandonemos pela pressão da imprensa, das forças midiáticas que temos no Peru e que o único que fazem é ocultar a informação, ou não publicá-la, para impedir que se conheça tudo o que o povo peruano vem reivindicando neste momento. Compartilhamos essa ideia, um abraço de latino-americano desde a segunda capital de Tahuantinsuyo, desde Cajamarca, onde justiçaramAtahualpa apenas por cumprir sua palavra de pagar o resgate que lhe exigiam os espanhóis e encher os quartos de ouro e prata. Um abraço!…
- Mônica Bruckmann é Socióloga, Doutora em Ciência Política, professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Rio de Janeiro (Brasil) e pesquisadora da Cátedra e Rede Unesco/Universidade das Nações Unidas sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentável – REGGEN.
- Texto traduzido por Maria Luiza de Castro Muniz
[1] Nota da tradutora (N.T.): Atahualpa foi o décimo terceiro e último governante do Império Inca.
[2] N.T.: Sigla em inglês para Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico
[3] N.T.: Procurador
[4] N.T.: Correspondente de Tribunal Superior Eleitoral Peruano
[5] N.T.: Moeda peruana
[6] N.T.: Estado Inca, pré-colombiano, situado na América do Sul, cuja nomenclatura advém do quechua Tawantin Suyu ou “as quatro regiões ou divisões”
https://www.alainet.org/pt/active/52979
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