A "ideologia parlamentarista" na América Latina
12/07/2011
- Opinión
I
A desorientação e frustração de uma boa parte das forças opositoras a respeito de certos governos progressistas latino-americanos apelam, com maior ou menor sofisticação argumentativa, para um recurso de contrapeso aos processos em curso: insistir em uma “parlamentarização da política”. Insiste-se na necessidade de “parlamentarizar” as decisões políticas, deixar que o Parlamento seja a instância que reorganize o poder da administração. Neste sentido, deve-se entender, por exemplo, as posturas dos setores opositores a Chávez para que fosse o Parlamento que assumisse o governo durante sua convalescência em Cuba; ou então a exagerada repercussão que teve o fato de Dilma não revogar as emendas orçamentárias, que os meios de comunicação conservadores brasileiros se encarregaram de propagandear como um triunfo parlamentar e um “alívio” democrático.
A reivindicação desses setores opositores se reduz a uma posição simples: frente ao “autoritarismo” dos presidentes, é “o tempo do Parlamento”. Revitalizar o Parlamento como instituição é o que permitiria estabelecer um maior “equilíbrio” no jogo político, construindo uma cultura política mais “plural e republicana”. Assim, esta contemporânea “ideologia parlamentarista” aparece no horizonte das elites e das forças opositoras que as expressam – e dos meios de comunicação que articulam sua gramática – como aquele desvio possível que lhes permite superar sua crise de identidade e projeto.
II
Na história latino-americana, o Parlamento tem sido uma figura institucional de variadas conotações: na América hispânica, superposto com as tradições ibéricas dos Cabildos, foi um capítulo repetido nos transplantes constitucionais locais e reorganizou, junto com o exército e outras sociedades de interesses privados, a composição das diferentes facções políticas das elites nacionais. Assim, durante grande parte do século XX, foi o objeto mais imediato da permanente interferência dos militares na política, com sua clausura ou esvaziamento funcional. No Brasil, o mais parlamentar de todos os países latino-americanos, há bastante tempo que o Congresso Nacional se converteu no espaço dos interesses corporativos e setoriais das elites. Não é casualidade que boa parte da historiografia brasileira tem lidado com o binômio Presidente modernizador/Parlamento conservador há décadas.
No entanto, desde um ponto de vista geral, a consolidação do Parlamento como instituição política deve ser situada no marco da adaptação cultural do liberalismo em nossas terras: a assimilação de alguns de seus principais símbolos e sua incorporação a nossas práticas cotidianas possibilitou, também, ir construindo em nossas representações coletivas a mediação da necessidade de que a dominação – exercida pelos donos do poder – contemple mínimos parâmetros de legitimidade enquanto representação plural. Aí está sua genuína força retórica, como fundamento da divisão de poderes. Neste sentido, a relevância do Parlamento resultou – historicamente – numa instância social necessária, construtora da própria noção de sociedade; o caminho de nossos progressos como sociedades também tem que debitar sua parte às implicações da existência do Parlamento.
Mas a questão problemática é que hoje há uma exaltação do Parlamento como instância definidora, com outras significações. No atual contexto latino-americano sua evocação faz parte de uma encruzilhada diferente. A “construção” de sua relevância tem um objetivo preciso: deslegitimar a autoridade dos presidentes. Isso ocorreu na Venezuela de um modo extremo logo depois da última eleição do ano passado. Teve efeitos práticos, como em Honduras, que terminou colocando um parlamentar – Micheletti- na chefia do governo após o golpe. E ocorre inclusive no Brasil, onde o Parlamento se erige como um permanente fator de instabilidade para o presidente: ocorreu com Lula em 2005 e voltou a acontecer com Dilma que, por essa mesma pressão, já teve que substituir vários ministros.
III
Políticos, intelectuais e todo tipo de mediadores sócio-culturais apostam em ativar essa “ideologia parlamentarista” que “parlamentarize” toda a esfera política, tentando anular a atuação de outros setores. Tudo deve ser debatido no Parlamento, âmbito emblemático de uma potencial “harmonia social”. As ações do governo devem “passar” pelo Parlamento e quanto mais “discutidas” sejam as leis mais democráticas elas serão. Isso ocorreu com a polêmica Lei de Retenções na Argentina, em 2008, que desencadeou um extenso conflito entre o governo e as patronais ruralistas, e é um hábito no Brasil, ou seja, colocar exageradamente como um problema na esfera pública que sejam respeitados os mecanismos da tramitação legislativa. No fundo, trata-se de recriar uma imagem alternativa a dos presidentes atuais. Não é casualidade que essa “exaltação” do Parlamento apareça em uma etapa da história latino-americana na qual diferentes poderes executivos conseguiram estabelecer agendas públicas em conflito com interesses setoriais específicos. O lugar no qual estes interesses encontram refúgio político é precisamente o parlamento: a “ideologia parlamentarista” não é outra coisa que a fundamentação de suas ações, tentando converter o que é uma necessidade particular em um interesse universal.
Estava faltando um elemento nas ideologias das elites para contrapor os tempos atuais; uma matriz, um símbolo, que fosse suficientemente tradicional e, ao mesmo tempo, renovado. Estava claro que, sem um rodeio desse tipo, os interesses particulares das lideranças corporativas/empresariais – De Narváez, Piñera, Noboa, entre outros – não podem prosperar. O Parlamento já não como poder do Estado, mas sim como alteridade do governo presente e reorganizador eventual do governo futuro. Neste sentido, a atuação do vice-presidente argentino tem sido emblemática: longe de identificar-se com o Poder Executivo, seu papel se reduziu a ser um primus inter pares no jogo político do Congresso.
IV
De um lado, a denominada “desmedida” dos presidentes; de outro, a “medida” e o “equilíbrio” que traz consigo a ingerência do Parlamento da dinâmica política. Por trás do simbolismo deste equilíbrio há reacomodações mais estruturais, próprias da dialética social (capitalista). Entre os porta-vozes das “bondades” parlamentares, há os mais ou menos comprometidos com a reprodução da acumulação do capital, mas todos, a sua maneira, terminam funcionando como facilitadores para a recriação ficcional e ideológica de uma possível “harmonia” dos interesses sociais.
Para dizê-lo em termos mais clássicos: os setores dominantes devem, por todos meios, frear essa onda de presidentes que não têm feito outra coisa que iluminar conflitos internos do sistema social, a maioria destes ainda sem resolver.
Como não podem “decretar” o fim dos conflitos, agora se empenham em construir imaginários sociais que os desarticulem, que os dissolvam. Sabe-se que as ilusões desconflituadas, as evasões, as fugas são todos elementos inerentes de construção social da realidade no capitalismo.
Neste sentido, o “debate parlamentar” é a imagem reflexa do “equilíbrio” social. Além disso, a história deixa suas lições: esse debate se dá mal no capitalismo periférico – e os capitalistas de todo o mundo que fizeram/fazem negócios em seus territórios – quando os governos decidem iluminar e verbalizar os termos e elementos dos conflitos sociais, despertando atores, reconstruindo sujeitos coletivos e estabelecendo limites para as apropriações. Daí a necessidade de “parlamentarizar” a ordem social, voltar a um suposto estado de “harmonia natural”, tarefa que não é simples e que requer mediadores socioculturais que preparem o terreno e estejam cotidianamente construindo os moldes das linguagens circulantes. Por essa razão, o papel dos meios de comunicação resulta imprescindível para a etapa. (Tradução: Marco Aurélio Weissheimer)
Amílcar Salas Oroño
A desorientação e frustração de uma boa parte das forças opositoras a respeito de certos governos progressistas latino-americanos apelam, com maior ou menor sofisticação argumentativa, para um recurso de contrapeso aos processos em curso: insistir em uma “parlamentarização da política”. Insiste-se na necessidade de “parlamentarizar” as decisões políticas, deixar que o Parlamento seja a instância que reorganize o poder da administração. Neste sentido, deve-se entender, por exemplo, as posturas dos setores opositores a Chávez para que fosse o Parlamento que assumisse o governo durante sua convalescência em Cuba; ou então a exagerada repercussão que teve o fato de Dilma não revogar as emendas orçamentárias, que os meios de comunicação conservadores brasileiros se encarregaram de propagandear como um triunfo parlamentar e um “alívio” democrático.
A reivindicação desses setores opositores se reduz a uma posição simples: frente ao “autoritarismo” dos presidentes, é “o tempo do Parlamento”. Revitalizar o Parlamento como instituição é o que permitiria estabelecer um maior “equilíbrio” no jogo político, construindo uma cultura política mais “plural e republicana”. Assim, esta contemporânea “ideologia parlamentarista” aparece no horizonte das elites e das forças opositoras que as expressam – e dos meios de comunicação que articulam sua gramática – como aquele desvio possível que lhes permite superar sua crise de identidade e projeto.
II
Na história latino-americana, o Parlamento tem sido uma figura institucional de variadas conotações: na América hispânica, superposto com as tradições ibéricas dos Cabildos, foi um capítulo repetido nos transplantes constitucionais locais e reorganizou, junto com o exército e outras sociedades de interesses privados, a composição das diferentes facções políticas das elites nacionais. Assim, durante grande parte do século XX, foi o objeto mais imediato da permanente interferência dos militares na política, com sua clausura ou esvaziamento funcional. No Brasil, o mais parlamentar de todos os países latino-americanos, há bastante tempo que o Congresso Nacional se converteu no espaço dos interesses corporativos e setoriais das elites. Não é casualidade que boa parte da historiografia brasileira tem lidado com o binômio Presidente modernizador/Parlamento conservador há décadas.
No entanto, desde um ponto de vista geral, a consolidação do Parlamento como instituição política deve ser situada no marco da adaptação cultural do liberalismo em nossas terras: a assimilação de alguns de seus principais símbolos e sua incorporação a nossas práticas cotidianas possibilitou, também, ir construindo em nossas representações coletivas a mediação da necessidade de que a dominação – exercida pelos donos do poder – contemple mínimos parâmetros de legitimidade enquanto representação plural. Aí está sua genuína força retórica, como fundamento da divisão de poderes. Neste sentido, a relevância do Parlamento resultou – historicamente – numa instância social necessária, construtora da própria noção de sociedade; o caminho de nossos progressos como sociedades também tem que debitar sua parte às implicações da existência do Parlamento.
Mas a questão problemática é que hoje há uma exaltação do Parlamento como instância definidora, com outras significações. No atual contexto latino-americano sua evocação faz parte de uma encruzilhada diferente. A “construção” de sua relevância tem um objetivo preciso: deslegitimar a autoridade dos presidentes. Isso ocorreu na Venezuela de um modo extremo logo depois da última eleição do ano passado. Teve efeitos práticos, como em Honduras, que terminou colocando um parlamentar – Micheletti- na chefia do governo após o golpe. E ocorre inclusive no Brasil, onde o Parlamento se erige como um permanente fator de instabilidade para o presidente: ocorreu com Lula em 2005 e voltou a acontecer com Dilma que, por essa mesma pressão, já teve que substituir vários ministros.
III
Políticos, intelectuais e todo tipo de mediadores sócio-culturais apostam em ativar essa “ideologia parlamentarista” que “parlamentarize” toda a esfera política, tentando anular a atuação de outros setores. Tudo deve ser debatido no Parlamento, âmbito emblemático de uma potencial “harmonia social”. As ações do governo devem “passar” pelo Parlamento e quanto mais “discutidas” sejam as leis mais democráticas elas serão. Isso ocorreu com a polêmica Lei de Retenções na Argentina, em 2008, que desencadeou um extenso conflito entre o governo e as patronais ruralistas, e é um hábito no Brasil, ou seja, colocar exageradamente como um problema na esfera pública que sejam respeitados os mecanismos da tramitação legislativa. No fundo, trata-se de recriar uma imagem alternativa a dos presidentes atuais. Não é casualidade que essa “exaltação” do Parlamento apareça em uma etapa da história latino-americana na qual diferentes poderes executivos conseguiram estabelecer agendas públicas em conflito com interesses setoriais específicos. O lugar no qual estes interesses encontram refúgio político é precisamente o parlamento: a “ideologia parlamentarista” não é outra coisa que a fundamentação de suas ações, tentando converter o que é uma necessidade particular em um interesse universal.
Estava faltando um elemento nas ideologias das elites para contrapor os tempos atuais; uma matriz, um símbolo, que fosse suficientemente tradicional e, ao mesmo tempo, renovado. Estava claro que, sem um rodeio desse tipo, os interesses particulares das lideranças corporativas/empresariais – De Narváez, Piñera, Noboa, entre outros – não podem prosperar. O Parlamento já não como poder do Estado, mas sim como alteridade do governo presente e reorganizador eventual do governo futuro. Neste sentido, a atuação do vice-presidente argentino tem sido emblemática: longe de identificar-se com o Poder Executivo, seu papel se reduziu a ser um primus inter pares no jogo político do Congresso.
IV
De um lado, a denominada “desmedida” dos presidentes; de outro, a “medida” e o “equilíbrio” que traz consigo a ingerência do Parlamento da dinâmica política. Por trás do simbolismo deste equilíbrio há reacomodações mais estruturais, próprias da dialética social (capitalista). Entre os porta-vozes das “bondades” parlamentares, há os mais ou menos comprometidos com a reprodução da acumulação do capital, mas todos, a sua maneira, terminam funcionando como facilitadores para a recriação ficcional e ideológica de uma possível “harmonia” dos interesses sociais.
Para dizê-lo em termos mais clássicos: os setores dominantes devem, por todos meios, frear essa onda de presidentes que não têm feito outra coisa que iluminar conflitos internos do sistema social, a maioria destes ainda sem resolver.
Como não podem “decretar” o fim dos conflitos, agora se empenham em construir imaginários sociais que os desarticulem, que os dissolvam. Sabe-se que as ilusões desconflituadas, as evasões, as fugas são todos elementos inerentes de construção social da realidade no capitalismo.
Neste sentido, o “debate parlamentar” é a imagem reflexa do “equilíbrio” social. Além disso, a história deixa suas lições: esse debate se dá mal no capitalismo periférico – e os capitalistas de todo o mundo que fizeram/fazem negócios em seus territórios – quando os governos decidem iluminar e verbalizar os termos e elementos dos conflitos sociais, despertando atores, reconstruindo sujeitos coletivos e estabelecendo limites para as apropriações. Daí a necessidade de “parlamentarizar” a ordem social, voltar a um suposto estado de “harmonia natural”, tarefa que não é simples e que requer mediadores socioculturais que preparem o terreno e estejam cotidianamente construindo os moldes das linguagens circulantes. Por essa razão, o papel dos meios de comunicação resulta imprescindível para a etapa. (Tradução: Marco Aurélio Weissheimer)
Amílcar Salas Oroño
Instituto de Estudos da América Latina e Caribe (Universidade de Buenos Aires)
https://www.alainet.org/pt/active/48011
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