De renuncias e tradições.
A propósito de Maria da Conceição Tavares
23/11/2010
- Opinión
A influência de Maria da Conceição Tavares na formação de parte dos economistas brasileiros é compreensível. Em uma profissão marcada pela falta de originalidade, carreira em que os estudantes são obrigados por semestres a fio à leitura de manuais estadunidenses de duvidosa qualidade intelectual, Conceição Tavares foi durante anos a voz da indignação contra o “papagaísmo”, ou seja, este estranho hábito de divulgar no Brasil as “teorias” emanadas dos centros metropolitanos a despeito das sandices ou das hipóteses convencionais e falsas que são divulgadas como se fossem verdades científicas. Além disso, numa profissão marcada pela astúcia e o “bom mocismo” interesseiro, Conceição Tavares tinha – e mantém – um “temperamento” absolutamente indispensável tanto na política quanto na lúgubre academia. Todos nós sabemos que apesar da pompa com que é anunciada e repetida pelos meios de comunicação, a maior parte das hipóteses difundidas pelos economistas no país está destinada apenas e tão somente a justificação do subdesenvolvimento em nome de um futuro que jamais chegará. Maria da Conceição Tavares, matemática de formação, professora de várias gerações de economistas figurou voz destoante, especialmente durante os anos da oposição progressista à ditadura. É justificável que tenha o reconhecimento que muitos, com freqüência, expressam; mas este reconhecimento não a torna, obviamente, imune a graves erros.
O ambiente atual no Brasil é um cenário excelente para os apologéticos de sempre. Há, de fato, um otimismo ingênuo muito propício para que os economistas convencionais sigam repetindo as consignas que retiram dos manuais de micro e macro economia sem ruborizar-se. Estes economistas ignoram o fato de que em todos os demais países do mundo, o pensamento dominante, ou seja, a neoclássica, recebeu um duro golpe com a erupção da crise capitalista em setembro de 2008. Incapaz de prever a crise mundial do capitalismo e atônita diante de seu desenrolar, os economistas neoclássicos se limitam a repetir suas verdades eternas ou simplesmente fazem de conta que não possuem responsabilidades sobre a crise global que queima riqueza e gera crescente desigualdade social. Mas não nos enganemos: a despeito da catástrofe, ainda estamos longe de um acerto de contas teórico e político com o pensamento dominante. A crise mundial, é verdade, não arrefeceu minimamente as convicções dos neoclássicos embora tenha vitalizado antigas ilusões keynesianas que em grande medida também alimentam o otimismo ingênuo sobre as possibilidades brasileiras na economia mundial.
Neste contexto, não deixa de ser uma surpresa a declaração recente de Conceição Tavares sobre as possibilidades do Brasil: “não tem centro e periferia como antes. Há países de desenvolvimento intermediário, entre os quais estamos.” Para aqueles que não perderam a memória, percebe-se logo que se trata de uma ruptura com um dos pilares de sua formação, especialmente quando é anunciado por uma economista que sempre rendeu merecido tributo ao economista chileno Aníbal Pinto, um dos ícones do estruturalismo cepalino na América Latina. Na mesma linha e ainda com mais ousadia, Conceição Tavares chama atenção de todos nós para outra novidade que julgo ainda mais importante: “você não pode deixar de levar em conta que mudou a divisão internacional do trabalho. Paradoxalmente, não vejo muito gente mencionar isso. Houve uma mudança radical da divisão internacional do trabalho, na qual nós estamos bem colocados porque a gente exporta para todo mundo. E, em particular, no que diz respeito a matérias-primas, exportamos mais para a China do que para a Europa, por exemplo. Nunca exportamos matérias-primas para os EUA.” (Folha de São Paulo, 12/09/2010). O Brasil está realmente bem colocado nesta mudança radical na divisão internacional do trabalho?
A elaboração teórica do chamado “sistema centro-periferia” foi uma das principais conquista do pensamento cepalino na América Latina. Na prática, significou colocar por terra as teses ricardianas do famoso capítulo VII dos Princípios de Economia Política e Tributação, mais tarde resgatadas convenientemente pelos economistas universitários sob a mistificação da denominada “teoria das vantagens comparativas”. De fato, a original contribuição do economista argentino Raul Prebisch sobre a “deteriorização dos termos de troca” representou um passo adiante do pensamento crítico sob a apologética dos economistas da ordem que repetiam na periferia capitalista a mencionada “teoria da vantagem comparativa”, destinada a consagrar a posição dos países latino-americanos na economia mundial como meros exportadores de matérias-primas e produtos agrícolas. Contudo, se Prebisch foi brilhante na identificação do fenômeno constatando a diferença entre os preços dos produtos que a América Latina importava e a tendência de baixa dos produtos que exportava, seu esforço intelectual foi insuficiente na explicação do problema e apenas convencional na solução: a industrialização da periferia terminaria por fechar a brecha entre os preços, acreditava. Os marxistas latino-americanos descobriram logo que a saída cepalina era não somente falsa, mas, sobretudo, que terminaria por também contribuir para a justificação do subdesenvolvimento em que ainda estamos afundados. Foi neste terreno que surgiu a “teoria do intercambio desigual”, em que André Gunder Frank (1964), Ruy Mauro Marini (1968), Arghiri Emannuel (1968) revelaram originalmente que a industrialização não seria capaz de tirar os países latino-americanos do subdesenvolvimento e da dependência. Mesmo assim, é preciso recordar que antes deles, um desconhecido polaco, membro da Escola de Frankfurt, “economista” entre filósofos, escreveu importante livro em 1929 em que o tema do intercambio desigual aparecia magistralmente estabelecido na tradição marxiana: La ley de la acumulación y el derrumbe del sistema capitalista”, lamentavelmente sem tradução ao brasileiro.
A questão fundamental na formação intelectual do economista latino-americano residia neste ponto crucial, onde os críticos (marxistas ou não) indicavam o caráter polarizante do capitalismo, inexoravelmente dividido entre um centro desenvolvido e uma vasta periferia cuja característica fundamental era o nível de pobreza de sua população. O pensamento crítico buscava, obviamente, amparo em Marx e Engels. Foi Marx, ainda em 1848, quem se burlou dos defensores da ideologia do livre comércio afirmando que “se os defensores do livre comércio são incapazes de compreender como pode um país enriquecer-se a custa de outro, não necessitamos nos assombrar-nos de que os mesmos senhores compreendam ainda menos que, dentro de um país, uma classe se enriqueça a custa de outra.” Seu inseparável amigo Engels, também tocou no assunto muitos anos depois, quando Marx já não existia (1888); criticando a força ainda mais intensa da ideologia do livre comércio sob impulso do imperialismo inglês, Engels escreveu que “a consigna era agora, o livre comércio. A tarefa imediata dos fabricantes ingleses e de seus porta-vozes, os economistas, era difundir a fé no evangélio do livre-comércio e criar um mundo em que Inglaterra fosse o centro industrial e os demais uma periferia agrícola dependente.” (Cursivas minhas, NDO).
Desde então, a crítica entre os economistas latino-americanos se dividiu: de um lado aqueles que, seguindo a tradição cepalina, indicavam a industrialização como o único caminho para superar a indesejável polarização existente no sistema capitalista. No Brasil, Celso Furtado foi indiscutivelmente o mais criativo e insistente defensor desta perspectiva (Brasil, construção interrompida, 1992). De outro lado, os marxistas indicavam que a dependência e o subdesenvolvimento somente poderiam ser superados com a revolução socialista e a ruptura com o sistema capitalista. Eram, em grande medida, alternativas radicalmente distintas ainda que muitos observadores identificassem certas coincidências entre as opções.
Este “programa de pesquisa”, esta esgotado, foi superado pela realidade? Ignoravam os críticos do passado a possibilidade de uma “mudança radical na divisão internacional do trabalho” como anuncia agora Conceição Tavares? Definitivamente não! No posfácio (1971) a sua importante obra, La acumulación a escala mundial. Crítica a teoria del subdesarrollo, o egípcio Samir Amim reconhecia explicitamente os méritos do debate iniciado na América Latina e perguntava: o sistema mundial “caminha em direção a dicotomia cada vez mais crescente entre centro-periferia?, ou não é mais que uma etapa da evolução do sistema, e neste caso tende em direção a uma sorte de formação capitalista mundial homogênea.” Nos termos atuais: a existência de uma suposta “semi-periferia” teria dado por concluído a antiga polarização centro-periferia?
O sistema centro-periferia pode admitir a existência de um país “semi-periférico”? Esta hipótese tampouco é rigorosamente nova; foi aventada insistentemente por Immanuel Wallerstein, mas ele próprio tem consciência da dificuldade ou, creio, debilidade do conceito. Na sua obra, O moderno sistema mundial, Wallerstein (1980) indica que o elemento constante no que denomina “economia-mundo capitalista” é a divisão do trabalho hierárquica, na qual existe uma igualmente “constante variável localização da atividade econômica”. O caso historicamente relevante para a “análise do sistema-mundo” é o sueco, no século XVII, que segundo esta interpretação logrou sair da periferia sistêmica e acomodar-se a condição razoavelmente confortável de semi-periferia. Contudo, as condições suecas eram reconhecidamente excepcionais e de impossível generalização para todo o sistema, especialmente para os países latino-americanos. Ademais, enquanto Suécia praticou o mercantilismo para sair da periferia as classes dominantes dos países latino-americanos se curvam diante da lei do valor apostando na “liberalização”.
Finalmente, nunca é demais recordar: a Suécia é um país europeu, ou seja, situado no centro da “economia-mundo”. Muitos anos após a publicação de sua trilogia iniciada em 1974, é o mesmo Wallerstein quem em entrevista realizada em 1999 reconhece que as condições necessárias para um país avançar em direção à semi-periferia – conceito que incluiria tanto o Brasil quanto o México e, talvez mais surpreendente, a China! – são muitas e não são fáceis. Na mesma oportunidade Wallerstein indica que “dentro da lógica do sistema” e para manter a condição de semi-periferia, o Brasil teria que investir recursos significativos no âmbito militar e claro, assegurar, durante décadas, superioridade na produção de mercadorias em relação aos seus competidores. É claro que os defensores desta linha de interpretação podem também alegar aos que insistem na dicotomia centro-periferia que acomodar Brasil e Honduras como “países periféricos” tampouco oferece a precisão conceitual necessária para captar a especificidade brasileira, posto que o “gigante do sul” possui extraordinárias vantagens em relação ao pequeno país centro-americano na economia mundial. Como estabelecer uma linha divisória mais sólida?
Os marxistas identificaram o ponto decisivo do sistema centro-periferia: a transferência de valor. Ao longo da história do capitalismo se pode observar que a característica essencial do sistema é a reprodução da desigualdade que impede qualquer desejo de homogeneização no capitalismo. A ruralizarão da indústria no interior do país, o deslocamento de atividades produtivas sob controle das empresas multinacionais para a zona periférica são exemplos de mecanismos que foram essenciais para o processo ininterrupto de acumulação. São movimentos necessários para manter a troca desigual. Até mesmo Wallerstein reconheceu que embora a troca desigual represente uma prática antiga, somente quinhentos anos após a consolidação do que ele denomina “capitalismo histórico” foi desvelada de forma sistemática pelos oponentes do sistema. Foi o pensamento crítico latino-americano o responsável por esta conquista teórica, indiscutivelmente. Em termos marxianos: a transferência de valor mantém a vitalidade do sistema, para a qual requer não somente deslocamentos espaciais da produção, mas, sobretudo, níveis elevados de exploração da força de trabalho e, especialmente, a superexploração da força de trabalho. É aqui que Honduras e Brasil se encontram. Enfim, o esforço para captar a especificidade de um país qualquer ou os movimentos inerentes a acumulação mundializada não pode ignorar a lógica totalizante inerente ao sistema capitalista.
A possibilidade de uma nova configuração da divisão internacional de trabalho é também uma novidade como anuncia Conceição Tavares? Esta efetivamente ocorrendo? O Brasil está “bem colocado” nesta nova situação?
O tema tampouco é novo se recordamos um texto não tão antigo de Ruy Mauro Marini (2000), publicado logo após seu precoce desaparecimento. Marini reflexiona sobre as tendências da chamada globalização, indicando a possibilidade ou o projeto de uma nova divisão internacional do trabalho aberta pela plena vigência da lei do valor em escala planetária. O texto escrito na década de noventa, se insurgia contra a hegemonia então absoluta do “neoliberalismo” na América Latina, e indicava que os países centrais apostavam na nova reconfiguração da divisão internacional de trabalho necessária para aproveitar duas vantagens estratégicas que possuíam na economia mundial. A primeira vantagem decorria da “superioridade em matéria de pesquisa e desenvolvimento” em que as potencias exercem o monopólio tecnológico. A segunda estaria dada pelo controle que os países centrais possuem no processo de transferência das atividades industriais para a periferia capitalista, especialmente aquelas menos intensivas em conhecimento. Em qualquer caso, afirmou Marini, o conserto estaria construído de tal forma que as economias nacionais periféricas não lograriam jamais a condição de uma economia nacional integrada. É fácil supor que nem mesmo o mais otimista dos economistas brasileiros se atreveria a afirmar que estamos caminhando na direção de uma economia nacionalmente integrada, capaz de sair da periferia.
Esta é a razão pela qual verificamos o elogio à economia exportadora, tão recorrente mesmo entre economistas de boa formação. Assim como a economia política inglesa sabe desde William Petty que um país pode exportar muito e empobrecer, o pensamento crítico sabe que um país pode destinar suas exportações para muitos países e não mudar um milímetro sua posição na divisão internacional do trabalho. O fato de o Brasil destinar aos Estados Unidos apenas uma parte pequena de suas exportações não muda em absolutamente nada a posição do país na adversa divisão internacional do trabalho. De fato, o Brasil exporta produtos agrícolas e minerais para muitos países do mundo sem que supere o subdesenvolvimento e a dependência; ao contrário, se pode afirmar que esta é uma das razoes pelas quais seguimos no atoleiro do subdesenvolvimento.
Portanto, a existência de países de “desenvolvimento intermediário”, situação na qual o Brasil – segundo a opinião de Conceição Tavares – ocuparia, não figura precisamente como novidade histórica e/ou teórica. Porém, anunciado fora de uma explicação totalizante (sistema centro-periferia), pode parecer simples apologia do subdesenvolvimento e tentativa de dar legitimidade teórica (base científica) para o otimismo ingênuo que segue inibindo a reflexão crítica necessária para mudar radicalmente o país. Após a grande crise mundial de setembro de 2008, ocorreu importante mudança na correlação de forças em escala planetária que permite reformas mais avançadas em favor das classes subalternas, inclusive no Brasil. Mas para aqueles que pensam de outra maneira – que as condições políticas para lutas mais avançadas não existem – o que ganharemos com a renúncia no terreno teórico?
É sedutor – e talvez parte do otimismo que se abateu sobre o Brasil – pensar como José Luis Fiori, para quem estamos vivendo momentos de uma “revolução intelectual”, em que “algumas idéias e teorias de esquerda e direita... já não dão conta das transformações do continente” latino-americano (Valor, 29/09/2010). No que se refere à esquerda, quiçá seria então necessário admitir que a antiga concepção centro-periferia foi finalmente superada pela realidade, pelo menos para nós, brasileiros. Neste acaso, também é necessário reconhecer que não há originalidade no movimento. Enfim, no propósito de legitimar um dos bandos na luta política eleitoral (conjuntural) que o país atravessa, cada um dirá, com forma própria e no tempo adequado, um brado já conhecido: “esqueçam o que escrevi”.
- Nildo Ouriques es Professor do Departamento de Economia da UFSC
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