Por que o Brasil precisa de uma reforma agrária
09/08/2003
- Opinión
O Brasil foi o último país das três Américas a abolir a
escravidão. Infelizmente, ainda não abolimos a
discriminação, pois, dissociada da reforma agrária, ela
não assegurou aos escravos libertos o acesso à terra,
condenando-os à dupla discriminação: por serem negros e
por serem pobres. Aliás, as melhores terras do nosso
país foram entregues aos desempregados europeus. Mais
de cem anos depois da Abolição, também não realizamos a
nossa reforma agrária, o que é mais um entre tantos
paradoxos neste território de dimensões continentais,
que abriga cerca de um terço de sua população vivendo
abaixo da linha da pobreza, entre os quais mais de 4
milhões de famílias expulsas da terra nos últimos anos,
devido à expansão do latifúndio, à alta dos juros
bancários e à construção de barragens.
Este país possui 600 milhões de hectares cultiváveis,
dos quais 250 milhões são áreas devolutas e 285
milhões, latifúndios, em sua maior parte improdutivos.
Basta dizer que 138 milhões de hectares estão em mãos
de apenas 28 mil proprietários, e 85 milhões de
hectares em poder de apenas 4.236 proprietários.
Desde os anos 70, quando houve um intenso movimento
migratório do Sul para o Centro-Norte do país, o nosso
território encontra-se loteado. Não há mais "terra de
ninguém". Pelo contrário, como ocorre no Pontal do
Paranapanema, há inúmeros espaços ilegalmente ocupados
por grileiros. Hoje, cerca de 113 mil famílias
sobrevivem em acampamentos, suportando condições
desumanas, à espera de serem assentadas.
O governo Sarney, que se propôs dar acesso à terra a
1,4 milhão de famílias, beneficiou apenas 90 mil, menos
de 6% do previsto. Collor acenou com a mesma proposta a
500 mil famílias, mas só concedeu título de propriedade
a 23 mil. Itamar Franco, que pretendia beneficiar 20
mil famílias em 1993 e 60 mil em 1996, atendeu a apenas
12.600 famílias. O governo FHC promoveu um simulacro de
reforma agrária, assentando famílias em localidades sem
nenhuma infra-estrutura e despertando, via postal, uma
ilusão de acesso à terra que frustrou a esperança de
milhões que nunca obtiveram a resposta esperada.
A reforma agrária é uma exigência de modernização do
capitalismo brasileiro, a começar por sua capacidade de
absorção da mão-de-obra desempregada. Ainda é o campo
que mais absorve trabalhadores, mas nem sempre
permitindo que se tornem também produtores. O governo
Lula considera a reforma agrária estratégica para
superar a crise social, através da ampliação da
política de crédito fundiário, da formação de
cooperativas e da intensificação da economia solidária.
O Programa Fome Zero, que visa a assegurar alimentos em
quantidade e qualidade suficientes a cerca de 44
milhões de pessoas, só terá êxito se respaldado pela
reforma agrária. Ela é um compromisso de campanha e de
governo do presidente Lula. A obtenção de terras para a
sua efetivação deverá passar, necessariamente, pela
desapropriação social, nos termos estabelecidos pela
Constituição Federal.
É importante que a reforma agrária assegure a geração
de emprego e renda no campo. E um dos pólos para
iniciá-la são os atuais assentamentos, que estão a
exigir todo tipo de suporte técnico e científico. É
inútil debater se vem primeiro o ovo ou a galinha, ou
seja, se o que deve prevalecer é a cooperativa ou o
agronegócio, a pequena ou a grande propriedade
produtiva. Trata-se de combinar diferentes alternativas
de produção, adequadas às condições regionais e
voltadas tanto ao mercado interno, quanto à exportação.
O importante é superar a miséria e assegurar a inclusão
social dessas milhares de famílias que querem também
obter um lugar ao sol, motivadas por um dos pilares do
capitalismo: o direito à propriedade. Sem a reforma
agrária nem sequer se pode garantir a elas o direito à
vida, como fenômeno biológico, e à cidadania, como
conquista política. Deus criou a Terra para que todos
os seus filhos tirem dela os frutos da existência.
Frei Betto é assessor especial do Presidente da
República, coordenador da Mobilização Social do
Programa Fome Zero e escritor, autor de "Alfabetto
Autobiografia Escolar" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/active/4232
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