Entrevista com Gerald Mathurin

A Crise Haitiana de Nação

20/07/2010
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Passados seis meses do terremoto que assolou o Haiti em 12 de Janeiro de 2010, o cenário não mudou. Enquanto Bill Clinton e a comunidade internacional propagandeam uma ajuda financeira de U$ 9,9 bilhões para a reconstrução do país, ruínas e escombros se amontoam pelas ruas e estradas e a única ação visível desta ‘reconstrução’ são acanhados mutirões de limpeza nos quais homens e mulheres haitianos retiram com as próprias mãos ferros, vigas, destroços e corpos.
 
“Já estamos acostumados com as promessas da comunidade internacional. Não é a primeira vez que estamos enfrentando problemas e já temos muitas promessas da comunidade internacional acumuladas. Ela nos oferece seu apoio e o que nos dá é uma ocupação”, afirma Gerald Mathurin, uma das principais lideranças camponesas haitianas, em entrevista exclusiva ao Jornal Brasil de Fato sobre a conjuntura atual do Haiti.
 
Na opinião de Mathurin, “A questão militar acompanha sempre as intenções das potências internacionais quando necessitam fazer algo no país. Os militares que vieram antes, e os que vêm agora, têm sempre a mesma missão, têm sempre o mesmo objetivo, que é aplicar o projeto do imperialismo. Essa é sua missão”. Neste sentido, seu temor é de que essa reconstrução sirva somente “para beneficiar o investimento das empresas capitalistas no Haiti”.
 
Gerald Mathurin também discorre sobre a questão agrária do país, o papel submisso do Estado haitiano e as perspectivas de transformação social para superar o que ele chama de “Crise Haitiana de Nação”.
 
Confira a seguir a íntegra da entrevista.
 
Brasil de Fato: Você poderia fazer uma pequena apresentação sua, um breve resumo da sua trajetória?
 
Gerald Mathurin: Eu me chamo Gerald Mathurin, tenho 56 anos e nasci em Jakmel. Atualmente estou na coordenação de uma organização que se chama KROS [Kòdinasyon Rejyonal Òganizasyon Sidès]. Estou nessa organização há algum tempo, desde 1998, um ano depois que eu deixei o Ministério de Agricultura. Sou engenheiro agrônomo e trabalhei por muito tempo com o Estado. Desde minha juventude eu trabalhei na ODVA [Organização para o Desenvolvimento do Vale de Artibonite], trabalhei no Vale de Latibonit, no Sul, em Grandanse, no Alto Latibonit. Por essa razão, durante esse período, fiz muitas consultas e viagens pelo interior do país, adquirindo uma idéia geral do Haiti, até chegar ao cargo de Ministro da Agricultura durante o período de março de 1996 a outubro de 1997. Trabalhei no setor das ONGs também, por um curto período de tempo, talvez por dois a três anos, onde dei suporte às organizações populares em geral e camponesas. Depois disso, eu vim para o KROS, primeiro como formador, depois como coordenador. Portanto, eu poderia dizer que minha experiência ocorre em três dimensões de organizações, a saber, o Estado, as ONGs e os Movimentos Sociais.
 
BdF: Você poderia nos passar um balanço geral sobre a questão agrária no Haiti?
 
GM: Eu tenho uma maneira de resumir a luta agrária do Haiti. Podemos dizer que existiu no país duas grandes correntes. Uma primeira corrente que defendia o interesse dos latifundiários, que tentou assegurar as grandes propriedades, utilizando grandes superfícies de terra com trabalhadores agrícolas. A outra corrente foi a da pequena propriedade de terra, que se baseava na perspectiva que cada família camponesa deveria ter um pedaço de terra para trabalhar. Essas duas correntes se afrontaram desde o começo do país. Podemos dizer que essas correntes tiveram dois grandes percussores: Toussaint Louverture defendendo a opção pelos grandes latifúndios, e Moïse Louverture se posicionando pelas pequenas propriedades de terra[1]. Essas duas posições nunca se conciliaram e nunca chegaram a um entendimento. É por isso que jamais houve uma política agrária verdadeira no país. Dessalines[2] tentou regular essa situação, mas não teve tempo porque foi assassinado. Era uma pessoa que talvez conseguisse resolver o problema agrário, que queria resolver o problema agrário. Mais tarde, com os governos de Pétion e Boyer[3], tentou-se resolver a situação por meio de doações de terras. É daí que surge a palavra “grandon” [latifundiário em kreyòl]. “Grandon” significa grande [‘gran’] doação [‘don’]. Podemos dizer que a questão agrária jamais foi objeto de reflexão, de definição e de aplicação política. É por isso que sempre houve luta ao redor da questão agrária. Quer se trate dos “Piquets”[4], quer se trate de outras mobilizações sociais, na historia do Haiti os camponeses sempre lutaram para conquistar a terra. Sempre houve luta. Se fizermos um balanço da questão agrária do Haiti hoje em dia, podemos dizer que, se os camponeses não chegaram a conquistar a posse da terra, chegaram ao menos a ter acesso a terra. São os camponeses que controlam a produção de alimentos. Apesar de muitos camponeses não serem proprietários de terra, são eles que têm controle sobre a produção de alimentos. Não existe nenhuma empresa capitalista, nenhuma empresa do agronegócio instalada no campo haitiano. A agricultura é essencialmente camponesa. São os camponeses que controlam a terra, apesar de não serem proprietários dela. O trabalho da terra é muito rudimentar e difícil, pois nunca foi modernizado. E a circulação da produção sempre foi complicada. E é justamente porque os camponeses não possuem a propriedade da terra que a agricultura é pouco produtiva no Haiti. Porque as pessoas que trabalham a terra não têm a propriedade da terra. Têm no máximo pequenos pedaços de terra ou heranças que receberam de seus parentes. Para garantir sua sobrevivência, só lhes resta trabalhar nas terras dos latifundiários. Isso faz com que os camponeses super-explorem as poucas terras que possuem e tenham dificuldades em fazer investimentos – pela ausência de recursos ou porque as terras são de outras pessoas. Por isso a agricultura entra numa etapa de regressão, de degradação, porque não há investimentos. Dessa forma, a questão agrária hoje em dia merece ser discutida de forma mais séria para dar a agricultura uma oportunidade para que ela se desenvolva verdadeiramente.
 
BdF: Você poderia falar um pouco mais sobre a produção nacional de alimentos e a dificuldade para abastecimento interno?
 
GM: Desde os anos 1950, a produção começou a regredir e a situação foi se agravando. Hoje em dia, o déficit na produção de alimentos é muito grande. Fala-se numa cifra de 45% a 50%. Isso quer dizer que metade das nossas necessidades alimentares vem de fora do país. É claro e evidente que se houvesse esforços e políticas desenvolvidas, trabalharíamos 10, 15, 20 anos para resolver esse déficit e retomar nossa auto-suficiência. Mas isso exige esforços importantes e um programa político sério. Para nós, a nível de KROS e de outros grupos que estamos refletindo sobre essa questão, acreditamos que isso é possível, mas será necessário que o Estado, o Governo, se interesse pela produção agrícola. São necessárias reformas importantes sobre a questão agrícola no país. Há muitas pessoas que têm propriedades, mas não possuem nenhuma relação com a terra, seja porque são médicos, profissionais liberais, seja porque vivem em Miami, Canadá, Europa ou em outro país. Isso só é possível porque essas pessoas nasceram em um país em que o sistema agrário permite que eles tenham direito a terra, mesma que não trabalhem nela. Essas pessoas não vão deixar o estrangeiro para trabalhar a terra no Haiti. Creio que é um problema que deve se resolver no marco de um acordo com as pessoas que vivem no estrangeiro e têm terras no Haiti. Um acordo que vai permitir liberar essas terras para aumentar o espaço de produção dos camponeses e que, dessa forma, garanta a viabilidade da agricultura no país. Porque quando uma família camponesa tem somente um pedaço reduzido de terra para produzir, a agricultura se torna inviável. E tampouco podem investir. Nesse sentido, é necessário também liberar as terras que pertencem ao Estado, para aumentar o acesso a terra por parte dos camponeses, bem como ajudá-los a financiar a compra da terra. De toda a maneira, uma coisa deve ficar clara: a agricultura no Haiti é uma atividade que só os camponeses podem fazer. Podem até instalar pequenas empresas agrícolas, mas a agricultura deverá ficar nas mãos dos camponeses. Só assim podemos chegar a transformar realmente a agricultura no país. Isso requer um programa agrário para o Haiti, um verdadeiro programa agrário. Esse é o problema fundamental do país: estabilizar a questão da agricultura, com famílias camponesas envolvidas na produção. De que estamos falando? Estamos falando da transformação da vida dos camponeses. Só a partir daí é que vamos ter a base necessária para falar de outros problemas no país. Infelizmente, não se ouve as autoridades tocarem nesse assunto quando se fala da reconstrução ou refundação do Haiti. Não é disto que estão falando. Falam em milhões e milhões de dólares que virão, mas esses dólares que serão investidos não têm nenhuma relação com esses problemas. Não falam nunca desses problemas no marco da reconstrução.
 
BdF: Quais as conseqüências do terremoto de 12 de Janeiro de 2010 para o país?
 
GM: A maneira com que algumas pessoas estão encarando o terremoto no Haiti não é correto nem justo. É verdade que o terremoto causou muitos danos materiais. É verdade que muitas pessoas morreram. É verdade que há muitos desabrigados. Nós sabemos. Os dados estão aí. Mais de 200 mil mortos, 1 milhão de desabrigados e os danos físicos que até agora não temos o real alcance, mas se falam em bilhões de dólares. Esses são os dados. Mas o terremoto também abriu nossos olhos para ver em que estado nosso país se encontrava. Todo haitiano tem hoje um nível de consciência sobre a situação do Haiti. Uma consciência que não possuía antes. E isso é muito importante. Os haitianos deram-se conta que não estão vivendo em um ‘país’, estão vivendo em uma estrutura na qual o Estado está ausente, o Estado está perdido, o Estado esta impotente. Dão-se conta também de que há uma necessidade imperativa de mudar isso. Essa é a segunda grande conseqüência do terremoto, depois da destruição das vidas e das casas. A terceira grande conseqüência é a constatação de que o Estado não é capaz de intervir, o que mostra a debilidade e fragilidade do país. É um pais muito frágil e necessita que as autoridades dêem resposta concreta a essa fragilidade. Estamos num território frágil, sujeitos a passagem de ciclones e terremotos e não temos capacidade de responder a essa fragilidade. Por fim, a última conseqüência que surge dessa situação é sobre que orientação as pessoas querem dar ao país. Que orientação é essa? Que caminho é esse? Penso que há uma constatação generalizada sobre os entraves à escolha desse caminho, um entrave à soberania do país, representado pelo projeto de ocupação do país. Eu penso que estas são as grandes conseqüências do terremoto.
 
BdF: E as conseqüências para o campo haitiano?
 
GM: As conseqüências para o setor agrícola não foram pequenas. Há uma série de outros atores hoje em dia que estão atuando no setor agrícola, que não estavam atuando antes. Há mais atores, mais pessoas e não há uma capacidade de coordenação desses atores. Outra conseqüência é que as famílias camponesas receberam muitas pessoas refugiadas e tiveram que tirar da sua escassa produção para alimentar essas pessoas. Esses desabrigados migraram para as províncias, para o campo, e buscam agora respostas para sua vida e para sua sobrevivência. E a pressão dessas pessoas recai sobre a agricultura. A terceira questão é que por atrás de todos esses projetos de reconstrução se escondem outros interesses. Não creio que seja por mera causalidade que a Monsanto aparece em cena e começa a doar sementes de milho hibrido. Eu penso que ela está buscando caminhos para ter o controle total sobre o mercado de sementes haitiano. É uma conseqüência bastante importante e nós devemos estar vigilantes.
 
BdF: Sobre o tema da reconstrução nacional, sabemos que o Presidente René Preval tomou várias medidas depois do terremoto e também criou uma Comissão Provisória para a Reconstrução do Haiti, aproveitando para aumentar seu mandato. O que você pensa sobre essas medidas?
 
GM: São ilegítimas e ilegais. São contrárias aos princípios constitucionais. Quando dizemos isso, pode aparecer que se trata de um debate sobre o respeito ou não à Constituição, entretanto é um debate mais profundo. De fato, estamos falamos de um pequeno país que tem sua história, uma história que podemos aprender sem muitas dificuldades. Saímos do fundo das trevas da colonização que repousava sobre a violência, o saque e a exploração do ser humano. Seqüestraram-nos de nossas terras, de maneira que não podíamos falar a mesma língua. Não nos consideravam seres humanos, nos vendiam como animais e nos obrigavam a trabalhos forçados como escravos. Conseguimos resistir ao centro de uma ‘comunidade internacional’ que aceitou o colonialismo. Pois, mesmo que o conceito de ‘comunidade internacional’ não existisse à época, não se pode negar que as potências colonialistas se entendiam sobre o que fazer e como fazer. E o que se chama ‘comunidade internacional’ é na verdade isso: o encontra das potências. Portanto, entendemos o que é colonialismo e o vivemos em nossos corpos, em nosso sangue e em nossa carne. E apesar de tudo, conseguimos superar o colonialismo e construir um país. É isso que as pessoas esquecem. Saímos do nada, de uma condição subumana, de uma massa de gente que não falava a mesma língua, que era açoitada dia e noite. E desta condição conseguimos com destreza e com visão liberar um país e fazer a independência. É um ato maior na história do mundo, porque vamos colocar em cena uma raça, uma qualidade de pessoas que antes se afirmava não serem humanos. Este feito maior é muito importante na história do mundo. Mas isso não é a única coisa importante que construímos como país. Além de tudo isso, inventamos o pan-americanismo. Não se reconhece isso do Haiti. Mas se um dia resolverem falar de um país que decidiu oferecer apoio para a liberação de pessoas e povos, o Haiti deve ser o primeiro da lista. Hoje em dia se fala da ALBA [Aliança Bolivariana para os Povos das Américas]. Pois saibam que Simón Bolívar recebeu apoio do Haiti[5]. Isso é um outro ganho de nosso país, a liberdade e apoio para a libertação de povos no mundo. Porém, depois de nossa independência, persistiu o ostracismo, o isolamento e o saque. Não quero dizer que o povo haitiano não tenha nenhuma responsabilidade sobre a situação atual. Mas há de se reconhecer que a conjuntura internacional sempre foi desfavorável para nós. ‘Desfavorável’ é uma pequeno eufemismo, doce e agressivo. Os EUA só reconheceram nossa independência em 1862. Em 1915, tombamos sob uma ocupação dos mesmos EUA e depois desta ocupação [1915-1934] o país foi completamente transfigurado. Pouco depois, na lógica da Guerra Fria, se instala no país uma ditadura [1957-1986] para resolver os problemas dos ‘comunistas’. Mal saímos desta lógica e entramos na lógica do liberalismo. Nos impuseram um conjunto de medidas de ajuste estrutural que não correspondiam a nossa visão e a nossa economia. Em resumo, Haiti passou todo sua trajetória sobre esse tipo de intervenção. E hoje, depois do terremoto, a ‘comunidade internacional’ nos oferece seu apoio e o que nos dá é uma ocupação. Podemos dizer que vivemos no marco de nossa história somente dois anos de independência real, entre 1804 a 1806. Porque desde que iniciamos o pagamento da Dívida de Independência para a França abandamos a lógica da independência. Desde este período entramos em um espiral de dependência que se aprofunda a cada dia. E agora, após o terremoto, se sacramentou a dependência do país. As ações do presidente Preval estão sacramentando a dependência do país. E é justamente por isso que não estamos de acordo. Não aceitamos esse caminho, porque cremos que esse caminho não vai nos levar a lugar algum. Não estamos contra a ajuda internacional, nem o apoio internacional. Necessitamos de apoio. Que país não precisa de apoio em um domínio ou outro? Reconhecemos essa interdependência, mas acreditamos que ela deve ser construída respeitando a liberdade dos povos. Estamos claros sobre isso, e é por causa disso que há tantos protestos contra o governo atualmente. Porque qualquer governo sério que chegue ao poder não pode estar de acordo com essa situação.
 
BdF: Você poderia falar um pouco mais sobre as conseqüências da ocupação estrangeira, militar e civil, que o país vêm sofrendo nos últimos anos?
 
GM: A questão militar acompanha sempre as intenções das potências internacionais quando necessitam fazer algo no país. Os militares que vieram antes, e os que vêm agora, têm sempre a mesma missão, têm sempre o mesmo objetivo, que é aplicar o projeto do imperialismo. Essa é sua missão. Agora tomemos a MINUSTAH [Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti], que está no país há muito tempo e vem renovando sempre seus mandatos. Se a MINUSTAH estivesse cumprindo sua missão de promover a estabilização do país e acompanhar projetos de desenvolvimento, como então ela não sabia que havia este risco de terremoto no país? Devia saber, porque essa é sua função no país. Devia saber que havia esse risco e propor um conjunto de medidas e soluções para enfrentá-lo. A MINUSTAH deveria ao menos socorrer a população. Mas nem isso pôde fazer: socorrer as pessoas e organizar a alimentação. A questão militar, na verdade, é uma oportunidade para que as autoridades permaneçam na impunidade dentro do poder. As autoridades disseram que não querem o exército do Haiti, mas querem os exércitos estrangeiros. Como uma pessoa pode dizer que não quer o exército de seu país, ter destruído o exército de seu país e depois fazer entrar tantas tropas estrangeiras em seu território[6]? Acontece que essas pessoas têm interesse na permanência das tropas estrangeiras no país. Estão em comum acordo. É assim que eu entendo a situação.
 
BdF: E a atuação estrangeira civil na reconstrução do país?
 
GM: Já estamos acostumados com as promessas da ‘comunidade internacional’. Não é a primeira vez que estamos enfrentando problemas e já temos muitas promessas da ‘comunidade internacional’ acumuladas. Temos sérias dúvidas sobre a capacidade da ‘comunidade internacional’ em realizar o que prometeram e de encontrar recursos para fazer o que propagandearam. De todo modo, não tenho confiança nessa reconstrução. Penso que há grandes empresas que vão lutar para ter grandes contratos. Obviamente vão construir algumas estradas, algumas casas, algumas escolas. Mas o que se esconde por trás desse processo de reconstrução é um projeto de saque de certas potencialidade que existem no país. O que mais temo é que seja uma reconstrução que venha para beneficiar o investimento das empresas capitalistas no Haiti. Porque o que vão dizer sobre a reconstrução é que ela ajudará na criação de empregos. Mas para criar empregos é preciso investir e para investir é preciso facilitar a entrada de empresas capitalistas no país, na criação de hotéis, na expansão das zonas francas. Em outras palavras, colocar o país nos trilhos do liberalismo. Eu penso que este é o projeto que estão apresentando. Há grandes interesses capitalistas em jogo por trás da reconstrução.
 
BdF: Você falou da realidade estrutural e de problemas conjunturais. Poderia agora apontar quais as perspectivas no campo popular para superar esses desafios?
 
GM: Creio que as perspectivas são ao mesmo tempo estruturais e conjunturais. Quer dizer, a maneira com a qual devemos encarar os problemas deve permitir encontrar uma resposta conjuntural enquanto tratamos de encontrar soluções estruturais. Há algumas pessoas que falam da ‘Crise Haitiana de Nação’. É uma maneira de dizer que a crise que estamos vivendo é uma crise muito profunda. Não é uma crise setorial, é a nação mesma que está em crise. Quer dizer, uma crise entre o povo e o Estado que está administrando a nação. E em verdade é esse o problema. Somos um povo abandonado desde a morte de Dessalines. Não houve nunca um entendimento para caminhar o povo rumo ao bem-estar. E essa é a condição fundamental de progresso em todos os países. No passado, Cuba foi um país onde uma pessoa poderia ir jogar nos cassinos ou passar um bom momento com mulheres. Era a característica de Cuba antes da Revolução. Hoje, Cuba está produzindo médicos para todo o mundo. Hoje são médicos, e não prostitutas, que Cuba oferece. É o que se chama construir uma nação. Este esforço não existe no Haiti, quer se trate de revolução ou não. Não se faz esse esforço no país, não há um compromisso para acompanhar o povo na educação, na saúde, no lazer e para criar um espaço no mundo a fim de que o povo haitiano possa dizer: aqui está o que somos. E isso é o que chamamos a “Crise Haitiana de Nação”. Uma crise que somente o povo haitiano pode resolver. Então, temos que fazer as pessoas entenderem que fazem parte de uma coisa que se chama Haiti e que precisam definir juntas suas próprias regras de convivência. Precisam definir juntas o que vão fazer para resolver o problema da desigualdade que existe em nossa sociedade. É inaceitável que a maioria dos haitianos esteja vivendo em condições tão subumanas, enquanto alguns vivem em níveis tão altos de consumo e riqueza que correm o risco de se queimar por estarem tão perto do sol. Temos que resolver esse problema para construir uma sociedade justa. E somente as forças sociais podem acabar com essa exclusão. É por isso que afirmamos que esse processo de reconstrução não vai a lugar algum, porque não é disso que estão falando.
 


[1] Toussaint Louverture e Moïse Louverture foram dois generais do exército de escravos haitianos que levou à cabo a primeira revolução vitoriosa de escravos na história da humanidade, tornando o país independente em 1804. Moïse Louverture foi fuzilado a mando de Toussaint ainda durante a luta pela libertação do país, pelo seu posicionamento a favor da divisão das terras entre os camponeses. Toussaint, que havia liderado e unificado a revolução haitiana, foi preso e assassinado pelo exército francês em 1802.
[2] Jean Jacques Dessalines foi o general do exército revolucionário haitiano que comandou a derrota definitiva das tropas de Napoleão no Haiti, declarando a independência do país em 1804. Foi o primeiro mandatário do Haiti, entre 1804 e 1806, ano em que foi assassinado.
[3] Alexander Pétion também integrou o exército revolucionário haitiano. Foi presidente do Haiti entre os anos de 1806 a 1818. Jean Pierre Boyer foi seu sucessor, 1818-1843.
[4] Movimento insurgente de camponeses haitianos que se deflagrou contra a política discriminatória da elite econômica mulata durante o governo de Boyer e que em 1844 levou a queda de seu sucessor, Charles Rivière-Hérard.
[5] Simon Bolivar esteve no Haiti em 1816 e recebeu do então presidente Alexander Pétion ajuda financeira e militar para o processo de independência da América Espanhola.
[6] O Exército Nacional Haitiano foi dissolvido por Aristide quando voltou ao poder em 1995.
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