41ª Assembléia Geral Itaicí – Indaiatuba - SP, 30 de abril a 09 de maio de 2003

Análise de Conjuntura / Abril 2003

29/04/2003
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Apresentação

A Análise de conjuntura tem por finalidade oferecer ao Episcopado católico do Brasil uma visão dos fatos políticos ocorridos desde a última Assembléia Geral, focalizando os mais relevantes para sua ação evangelizadora em diálogo com a Sociedade e a partir da evangélica opção preferencial pelos pobres. A presente Análise tem a peculiaridade de ser apresentada na véspera da visita do Presidente da República à Assembléia da CNBB, o que inevitavelmente lhe confere o caráter de preâmbulo a esse importante diálogo. Vale realçar, mais uma vez, que este não é um documento da CNBB, mas a contribuição de uma equipe de assessores, tendo em vista subsidiar os Bispos em sua reflexão e suas orientações pastorais.

Esta Análise tem dois grandes focos: a situação mundial após o ataque militar dos EUA ao Iraque, com ênfase na nova conjuntura da América Latina e o papel de liderança do Brasil, e as tensões estruturais na sociedade brasileira após as eleições de 2002. Esta segunda parte ganha especial importância, pois este é o momento em que o Brasil começa a debater seu Plano Plurianual de desenvolvimento para 2004-2007, enquanto a Igreja Católica prepara as Diretrizes Gerais para sua Ação Evangelizadora para o mesmo quadriênio.

I. O Contexto mundial de unipolaridade militar

A guerra contra o Iraque

A invasão do Iraque e a destituição de Saddam Hussein representa um dramático e grave recuo no equilíbrio (já tão frágil e injusto) das relações internacionais, confirmando o poderio militar dos EUA. Essa guerra é a negação de 50 anos de esforços diplomáticos para construir relações mais estáveis entre os povos. Esta foi a terceira guerra (ou o terceiro episódio duma só guerra) do presidente Bush em dois anos: na Palestina, no Afeganistão e agora no Iraque. Bush marginalizou e humilhou a ONU. Não podendo alegar “legítima defesa” nem “ultimo recurso”, a guerra foi ilegítima e imoral, contrariando a opinião pública mundial, que nunca foi tão unânime para se opor à guerra e pedir a paz.

Podemos apontar, como suas conseqüências:

– As vítimas: pessoas inocentes – soldados sem defesa ou civis – feridas, amputadas, mortas, famílias chorando os pais ou os filhos, ou que perderam tudo. O país está arruinado.

– A generalização da “lei do mais forte”: a doutrina da “guerra preventiva” leva à lógica do conflito potencial contra muitos ou todos, sendo o terrorismo apenas pretexto para a dominação mundial.

– Tempos de incerteza e insegurança: o desprezo pelo direito internacional leva a uma desestabilização do frágil equilíbrio mundial, dificultando projetos de paz, a luta contra a miséria, o desenvolvimento e a preservação do meio ambiente.

– Uma guerra global: A militarização está a serviço do domínio econômico. Os EUA, que já controlam em grande parte as principais instituições internacionais econômicas e financeiras (OMC, FMI e Banco Mundial), tentarão forçar acordos de ‘livre comércio’ regionais que lhes sejam favoráveis (ALCA).

– Tensões crescentes entre o mundo ocidental e o mundo árabe-muçulmano: a tensão é antiga, pois os Árabes e muçulmanos se sentem humilhados pelo Ocidente ‘cristão’, principal sustentáculo da guerra de Israel contra o povo palestino.

– Maior desestabilização do Oriente Médio: a região já instável, está agora mais exposta aos conflitos e guerras. As perspectivas de paz entre Israel e a Palestina desaparecem do horizonte.

– Aumento dos sofrimentos dos mais pobres: os orçamentos militares vão aumentar, consumindo os investimentos produtivos, que deveriam ser utilizados para a superação da pobreza.

A Mídia: instrumento de paz, ou de guerra?

A guerra deixa amargura e desilusão, levando à revolta, à vingança, ou ao desânimo. As estratégias da paz e da vida para todos devem ser outras. Muitas vozes já se fazem ouvir em favor da paz, da justiça e da solidariedade. O adversário ameaça, mostra suas armas, grita que é o mais forte, cria um clima de medo e terror. Fundamenta sua estratégia na mentira. Os artesãos da paz constroem os caminhos da não violência ativa: denunciam as mentiras e propagandas falsas e se juntam com todos os homens e mulheres de boa vontade com a convicção que outro mundo é possível.

Aqui deveria ser fundamental o apoio da imprensa como um órgão prestador de serviço para a sociedade. Mas grande parte da Mídia, fugindo ao dever de imparcialidade, omitiu informação e distorceu deliberadamente as notícias. Assistimos a uma cobertura ideológica, com a exibição bélica dos mais sofisticados aparatos de guerra reforçando a propaganda militar dos EUA. Foi como uma cobertura oficial, dada a partir do centro de imprensa armado pelo Pentágono no Kuait. Fertilizantes descobertos próximo a Karbala, por um dia viraram gás mostarda, enquanto as armas de destruição em massa, pretexto para a invasão, foram esquecidas.

Enquanto as TVs norte-americanas tentavam mostrar um conflito com o mínimo de imagens sangrentas[1], a Al-jazira dava ênfase à tragédia das vítimas civis. Para Bush, não contavam as debilitadas forças armadas iraquianas, mas a opinião pública interna, para a qual era preciso passar a imagem de legitimidade da guerra. Por sua vez, o regime de Saddam Hussein buscava sensibilizar o mundo com imagens de civis, alterando fotos para tornar a guerra ainda mais dramática. Isso não tira o heroísmo de jornalistas, que, buscando oferecer as melhores imagens, terminaram por perder a vida (ao todo, 12 jornalistas foram mortos).

Por outro lado, a imprensa mundial globalizou o sentimento de indignação que levou milhões de pessoas às ruas, nos cinco continentes. Menos de três horas depois de os primeiros mísseis atingirem Bagdá, na “madrugada da vergonha” uma onda de protestos começou na Ásia e na Austrália e rapidamente alcançou o Oriente médio, a Europa e as Américas. As mensagens do Papa tiveram grande repercussão na Mídia, principalmente o discurso na Praça São Pedro, às vésperas do bombardeio “Eu pertenço àquela geração que viveu a segunda Guerra Mundial e sobreviveu. Tenho o dever de dizer a todos os jovens, àqueles mais jovens do que eu, que não tiveram esta experiência: Nunca mais a Guerra“.

Reações à unipolaridade na América Latina

O posicionamento firme, público e corajoso do Presidente Lula a favor da paz, contra a guerra ao Iraque e pelo respeito das decisões da ONU, influenciou o posicionamento independente da AL, respaldando a posição do México e Chile, membros do Conselho de Segurança, que se opuseram à guerra. O Brasil está costurando alianças na América Latina, e exercendo um papel de liderança que não é de oposição aos EUA, mas de independência. Lembremos alguns fatos:

– A viagem de Lula ao Equador, para a posse do presidente Gutierrez, foi a oportunidade para criar o ‘Grupo dos Amigos da Venezuela’. O Brasil atuou como mediador para superar a greve que durante 113 dias paralisou o país. O ‘grupo de amigos’ não deixou assim o campo livre aos EUA apoiar a oposição por meio da OEA.

– O governo descartou a demanda do presidente Uribe, da Colômbia, de denunciar as FARCs como grupo terrorista, e assim apoiar o plano militar dos EUA na Região Andina. Isso lhe permitirá atuar como mediador de paz no país, quando necessário.

– A nomeação para Londres do embaixador José Maurício Bustani, que, por pressões estadunidenses, fora destituído da secretaria geral da Organização para a Proscrição de Armas Químicas, por favorecer o ingresso do Iraque na Organização.

– Em Davos, Lula repetiu aos ‘dirigentes’ do mundo o que tinha dito no III Fórum Social Mundial: o crescimento econômico deve estar a serviço do desenvolvimento social.

– Ao abster-se de votar sobre a inspeção dos Direitos Humanos em Cuba, o Brasil não respaldou Cuba, mas tampouco deixou de protestar contra o abandono dos presos políticos na Base de Guantanamo.

– A determinação (ainda a ser confirmada) de retirar do Congresso o projeto de concessão aos EUA da base de lançamento de Alcântara. Gesto importante, estratégica e simbolicamente, porque afirma a soberania nacional, ameaçada nos planos geopolítico (base de Alcântara), econômico (ALCA) e financeiro (dívida externa).

Assim, no campo da política externa o Governo tem mostrado sua determinação de promover mudanças, cumprindo o que foi dito no discurso de posse: o Brasil deve estabelecer relações mais cordiais com os países de América Latina, e reencontrar seu papel de liderança na integração da região.

A Questão da ALCA

Talvez seja no sensível campo das negociações comerciais, que governo Lula esteja deixando mais claramente a marca da mudança. O Brasil continuará participando das negociações para a implantação da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), entre outros motivos porque, juntamente com os EUA, ele preside esse processo e seria um erro diplomático abandonar o cargo. A mudança reside numa série de medidas aparentemente pequenas, mas de impacto na defesa da soberania nacional.

– O governo prioriza o fortalecimento do Mercosul e a aliança com outros países latino-americanos, superando ressentimentos de países vizinhos que se sentiam menosprezados. Assim, reforça a posição do bloco tanto frente à ALCA como frente à União Européia.

– A rearticulação do MercoSul para atuar como um só bloco nas negociações da ALCA revitaliza o organismo, moribundo desde 1999. A tarefa é delicada, pois os EUA querem controlar toda a região e preferem negociações bilaterais.

– A nomeação do Embaixador Samuel Guimarães, para a Secretaria Geral do Itamaraty, é uma decisão muito significativa, pois ele havia sido demitido pelo ministro anterior, por ter expressado em público críticas contundentes à ALCA.

– Diante de temas estratégicos, delicados e abrangentes, os negociadores brasileiros propõem sua discussão no âmbito da Organização Mundial do Comércio, onde são maiores as possibilidades de aliança, com países de peso como a China, Índia, Rússia e África do Sul.

– O Brasil não apresentou propostas nos setores de agricultura, compras governamentais e serviços, e conseguiu que os outros países do Mercosul fizessem o mesmo. Foram assim defendidos os seus instrumentos de desenvolvimento econômico.

Enfim, cresce na sociedade a consciência da necessidade de um grande debate sobre a ALCA, para fortalecer as posições brasileiras, sinalizando que propostas prejudiciais ao Brasil não seriam aceitas.

II. O Brasil após as eleições presidenciais de 2002

Antecedentes históricos

Uma visão histórica da estrutura social brasileira pode ajudar a apreendermos a real dimensão dos resultados das eleições de 2002. As categorias paradigmáticas do binômio casa grande / senzala, criadas por Gilberto Freyre e utilizadas por Pe. Fernando Ávila numa de suas Análises de Conjuntura, ainda são úteis para explicar a gênese e a estrutura da ordem social brasileira até hoje vigente.

Portugal criou aqui uma classe de proprietários de terra e escravos, capaz de comandar a produção de mercadorias (açúcar, ouro, café e outras) e servir ao comércio com a metrópole. Para compor a força de trabalho, os povos indígenas foram desestruturados enquanto nações, e incorporados, enquanto indivíduos, ao estrato inferior de sociedade, muitos deles escravizados. Os africanos, todos escravizados, sofreram um processo ainda mais forte de desestruturação política, social, familiar e cultural. Formou-se, então, uma sociedade onde uma elite submete a enorme massa de indivíduos que, mesmo quando livres, foram destituídos de meios de subsistência e dos direitos de cidadania. Em pelo menos 4 momentos cruciais de nossa formação econômico-social a elite jogou politicamente contra a mudança:

– 1822: a Independência política não muda a distribuição da terra nem abole a escravatura[2];

– 1850: a Lei de Terras[3] substitui a doação de sesmarias pelo regime da compra de glebas;

– 1888: a Lei Áurea abole o trabalho escravo mas não redistribui a terra[4]

– 1930: a Revolução só altera o regime de trabalho urbano[5].

A estratégia da elite tem sido de evitar que a massa venha a se tornar um povo, no sentido de cidadãos em igualdade de direitos e deveres. As reações e revoltas em favor de uma cidadania nacional, foram sempre frustradas pela implacável repressão.

As eleições de 2002 marcam um novo momento de anseio por mudanças estruturais. Mais que uma vitória da Oposição, elas representam o desembocar de um processo histórico que vem desde os anos 1950, propondo a democratização do País, a redução das desigualdades sociais e regionais, a eliminação da fome e do analfabetismo, enfim, uma sociedade mais justa, desenvolvida e democrática, com um nacionalismo sem xenofobia que bem se expressa no surto cultural da época. O golpe de 1964 abortou aquele movimento, resgatando apenas sua dimensão desenvolvimentista. As sementes, contudo, estavam num chão fértil e criaram raízes na sociedade, por meio das Comunidades Eclesiais de Base, Associações de Moradores, núcleos de movimentos sindicais, variados Movimentos Sociais e nas organizações que mais tarde adotaram a sigla ONGs. Ali se deu a kenosis popular do movimento oriundo de grandes pensadores nacionais[6], criando raízes nas camadas socialmente desfavorecidas[7].

No final do Regime de Segurança Nacional aquele movimento forçou a Campanha das Diretas e, logo depois, a grande mobilização social para a elaboração da Constituição cidadã de 1988. Apesar de muitas ambigüidades, aquela Constituição lançou os alicerces para a construção da cidadania nacional em novas bases, parecendo realizar o sonho democrático dos anos 1960 pela universalização dos Direitos Sociais[8]. Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, porém, imprimiram outro rumo político ao País, buscando a integração do Brasil no mundo globalizado conforme o preceito neoliberal. Foi então que as lutas por cidadania desdobraram-se em duas vertentes: a primeira enfatizando o político, a outra insistindo no social e incorporando elementos até então pouco presentes, como o confronto entre as dívidas sociais e a dívida financeira, questões étnicas, de gênero e culturais, tornando-se mais aberto e pluralista. O Fórum Social Mundial figura como momento emblemático dessa visão mais abrangente, ao anunciar Outro Mundo é Possível.

Não se trata, evidentemente, de aplicar hoje um projeto de 50 anos atrás, mas de retomar as grandes intuições do passado como inspiração para a construção de uma autêntica nação brasileira, capaz de incluir na sua Cidadania as diversas nações indígenas, em vez de dissolvê-las na massa popular. Superar assim a antiga estrutura social na qual os herdeiros da casa-grande (agora modernizada) conduzem a massa popular oriunda das senzalas (hoje nas favelas e periferias urbanas), e constitua um povo no qual todos sejam sujeitos de direitos e deveres.

A grande festa nacional no dia da posse de Luís Inácio Lula da Silva, bem como sua repercussão mundial, expressaram a esperança na concretização daquele antigo projeto. Os primeiros 100 dias de governo, contudo, mostram que as resistências estruturais são bem maiores do que imaginavam os 52,7 milhões de eleitores que o conduziram à Presidência da República. A análise dessas tensões entre o desejo nacional por mudanças e as resistências estruturais, pode abrir pistas sobre as reais possibilidades da concretização daquele projeto e a contribuição da sociedade civil e da Igreja Católica nesse processo.

Focos de tensão nas decisões políticas

Desde que se firmou como candidato com reais possibilidades de vitória, Lula viu seu projeto de governo ameaçado pela especulação financeira. Os capitais fugiram, o real perdeu seu valor cambial, a bolsa afundou, o risco-país estourou. A resposta veio em forma de carta ao povo brasileiro, onde Lula expressava o desejo de mudança, mas prometia também estabilidade cambial, luta contra a inflação, controle do déficit público com superávit primário, apoio às exportações, respeito aos acordos com o FMI, pagamento em dia das dívidas, e autonomia do Banco Central. Para ganhar a eleição, era preciso convencer o povo e os donos do capital da viabilidade de seu governo. Também para governar, Lula terá que contar com essas duas forças: 52,7 milhões de eleitores, já desmobilizados e pouco organizados, contra um pequeno mas poderoso grupo que, com alguns telefonemas, pode provocar uma crise econômica de grandes proporções. Para estes, a legitimidade de um governo não vem das urnas nem das políticas que respondam às necessidades básicas da população, mas sim do cumprimento dos contratos e obrigações fiscais. Quem os desrespeitar, será chamado de “populista” e “irresponsável”, criando-se um clima de confronto com os detentores do capital, da mídia e do apoio dos EUA.

O rumo do Governo Lula depende da adesão da grande massa popular à sua proposta. Mas aqui vem um complicador: o clima de violência urbana. Com taxa de crescimento anual abaixo de 2% na última década, a economia brasileira decresceu em termos de renda per capita. Isso teria sido absorvido sem maiores danos sociais, se o preço da estagnação tivesse sido pago pelos mais ricos, ou, pelo menos, proporcionalmente distribuído. Mas a renda continuou se concentrando nas mãos de uma minoria, hoje vivendo numa opulência que nada deixa a desejar em relação aos ricos do primeiro mundo, exceto, talvez, pela constante insegurança por medo de assalto, seqüestro ou violência gratuita. De fato, aumentou muito o número de pessoas hoje vivendo de atividades criminosas, geralmente associadas ao narcotráfico. Adolescentes e até crianças optaram, por assim dizer, por uma vida recheada de emoções que só a marginalidade pode dar. Sabem que cedo serão mortos pela polícia ou por bandidos rivais, mas, enquanto viverem terão um padrão de consumo muito superior àquele que o mercado oferece a trabalhadores como seus pais. Para se protegerem da repressão policial cada vez mais impiedosa, organizam-se em gangues e associações de proteção mútua, como os comandos. Hoje, é patente o poder do crime organizado, que se infiltrou no Estado e a ele se opõe. E assim vai-se formando no Brasil uma população socialmente marginal, com uma cultura peculiar, que sobrevive predando as riquezas concentradas nas mãos de poucos, ou, pior, roubando de quem pouco tem. Nesse jogo de vida e morte, esgarça-se o tecido social e perdem-se dezenas de milhares de vidas humanas. Não seria mais adequado pensar o Brasil como um país em guerra civil?

Enfim, o êxito do projeto popular depende de sua capacidade de mobilizar, para a conquista da plena cidadania, aquela massa que nunca foi organizada nem politizada, que é desprezada e despreza-se a si mesma, que só tem uma consciência política imediata. A eleição foi um passo importante no processo, mas sem a efetiva participação popular não se constitui um povo no sentido autêntico de conjunto de cidadãos e cidadãs.

O encaminhamento político das Reformas

A análise das propostas de Reformas pode sinalizar os rumos até agora imprimidos pelo Governo no atendimento das necessidades dos setores excluídos. Das informações veiculadas pela imprensa e órgãos de comunicação do governo, bem como pelas visitas de Ministros à CNBB, pode-se depreender a seguinte análise.

1. Reforma agrária. A concentração da grande propriedade rural é, historicamente, uma característica permanente da sociedade brasileira. Por isso, a Reforma Agrária significa mais do que a redistribuição de terras: ela abala a própria estrutura da casa grande. O Governo deu uma sinalização positiva ao nomear para postos-chaves do setor pessoas comprometidas com Reforma, mas ainda não apresentou resultados palpáveis. É possível que a complexidade do problema esteja exigindo mais tempo, mas o certo é que as reformas tributária e da previdência, também complexas, já estão encaminhadas.

2. Reforma tributária: as informações sobre o projeto falam de mudanças de ordem técnica que favorecem as regiões menos industrializadas, bem como desoneram a folha de pagamentos; mas 3 pontos socialmente decisivos ficaram em segundo plano: a progressividade dos impostos (de modo que os mais ricos paguem mais impostos em relação ao que ganham), o Imposto Territorial Rural (que hoje significa menos de 0,5% do total dos impostos recolhidos) e o Imposto sobre as grandes fortunas, que embora inscrito na Constituição até hoje não foi regulamentado por lei.

3. Reforma da Previdência: embora esteja provocando muita discussão, o projeto não vai ao grande desafio social, que é a inclusão previdenciária de 57% da População Economicamente Ativa, hoje na informalidade. Sabemos que o Regime Geral da Previdência Social, que foi autuariamente equilibrado até o ano 2000, tende a ser cada vez mais oneroso ao Estado, e mais ainda o seria com a inclusão de todos os que hoje estão sem cobertura previdenciária. O projeto de reforma trata de quem tem mais capacidade contributiva e representa um novo aporte de recursos. No entanto, deixa de lado os que mais necessitam e não podem contribuir. Tendo a Previdência a finalidade de assegurar a estabilidade econômica a todas as famílias brasileiras cujo chefe esteja incapacitado de prover seu sustento, este é um problema a ser resolvido, e não esquecido num projeto de Reformas. O atual projeto está centrado no Regime Especial dos servidores públicos, que foi onerado por direitos concedidos ao longo do tempo e pela inclusão de novos servidores pela Constituinte de 1988. Embora suas despesas sejam altas, sua efetividade depende da derrubada de privilégios protegidos pelos direitos adquiridos. Caso não haja mudanças aí, a Reforma da Previdência significará pouco mais do que a transferência da aposentadoria de servidores públicos com vencimentos acima do teto, para Fundos de Pensão públicos ou privados[9].

Estes dois projetos estão sendo encaminhados ao Congresso com o respaldo de 27 Governadores. É possível que o governo conquiste também o apoio da sociedade civil por meio do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e por uma campanha de educação política. Mas está faltando melhor informação sobre as Reformas: fala-se das altas despesas com aposentadorias e pensões de servidores públicos, mas não se fala da universalização da Seguridade Social (Previdência, Saúde e Assistência Social), com recursos constitucionalmente previstos nos impostos para fins sociais. Por isso, muitos ainda percebem o problema da Previdência Social como um problema contábil, sem se dar conta que só há déficit na Previdência devido à desvinculação dos recursos da União para pagamento de juros da dívida pública. Essa forma da mídia e dos órgãos de comunicação governamentais conduzirem o debate, não favorece a educação política nem a mobilização cidadã.

A política econômica e seus riscos.

A coligação vitoriosa nas eleições quer retomar o crescimento econômico, pois sair da estagnação é condição necessária (embora não suficiente) para uma efetiva mudança social. Ocorre que, diante da ameaça de explosão inflacionária, que traria a desarticulação da economia e a ingovernabilidade, as primeiras medidas do Governo priorizaram neutralizar aquela ameaça e conquistar a confiança do mercado. Para isso, foi mantido o câmbio flutuante, o regime de metas de inflação com o Banco Central autônomo e estabelecida uma nova meta de superávit primário: 4,25% do PIB (estimativa de R$68 bilhões). Para assegurar a entrada de capitais e controlar a inflação, a taxa básica de juros (selic) foi elevada para 26,5% ao ano.

Esse conjunto de medidas, sabidamente recessivas, foi apresentado como sendo um plano emergencial, de transição, já que essa política favorece mais os capitais financeiros do que os produtivos. O caso dos bancos, com lucros extraordinários, bem ilustra o tipo de capitais atraídos pelo Brasil. Para continuar recebendo capitais externos e cobrir o déficit nas transações correntes, o governo aumenta a dívida pública[10]. O serviço dessas dívidas retirou dos cofres públicos, em 2002, R$113 bilhões, o que significa R$215.000 por minuto, 24 horas por dia, 365 dias no ano. Pouco mais da metade desse desembolso veio de novos empréstimos, enquanto R$54 bilhões vieram do aumento de impostos e de cortes nas despesas.

Nos últimos meses, o Brasil tem tido superávits na balança comercial, em boa parte pela própria estagnação da economia: redução de importações de consumo e, sobretudo, das empresas que importam menos por não estarem investindo. Além disso, voltaram os capitais especulativos, que, aproveitando a diferença entre os juros pagos no Brasil e no Exterior, tomam empréstimos fora e adquirem títulos públicos de curto prazo (6 meses).

Tudo isso fez baixar a cotação do dólar e o “risco país”. Significa que o Brasil já conquistou a credibilidade junto ao mercado e está prestes a receber um fluxo de capitais produtivos? O Governo parece apostar que sim. Está cumprindo rigorosamente as promessas feitas ao mercado durante a campanha, e tem o direito de esperar sua contrapartida, mesmo porque o Brasil propicia excelentes condições ao investimento produtivo. Esta posição, contudo, vem sendo contestada por vozes que manifestam suas dúvidas e críticas. Elas podem ser resumidas em dois pontos: o caráter transitório das medidas econômicas tomadas até aqui[11], e o inevitável confronto com os credores externos e internos, o FMI e o Banco Mundial, se o governo Lula substituir o modelo econômico vigente por um novo projeto de sociedade.

A exemplaridade do Projeto Fome Zero.

Lançado no primeiro discurso do Presidente eleito, o projeto Fome Zero tem uma característica emergencial (a fome não pode esperar), mas não se limita a ações pontuais: busca soluções permanentes para um problema que, no Brasil, decorre quase unicamente de sua estrutura social excludente. Acabar com a fome e propiciar segurança alimentar e nutricional a toda população brasileira, requer a efetivação de políticas públicas em diversas áreas: Reforma agrária, apoio à agricultura familiar, aprimoramento da rede de transportes e armazenagem, política de complementação alimentar nos centro urbanos (restaurantes populares, merenda escolar...) e, a mais longo prazo, verdadeira redistribuição de renda, para que toda família possa ter acesso ao mercado de alimentos. Ao fazer isso, o Estado estará intervindo na economia, o que contraria as orientações da atual política econômica.

Para produzir essa inflexão na política econômica, o governo precisa contar com muita mobilização interna e apoio externo, na difícil passagem para toda uma lógica diversa de organização da economia (sem contudo deixar os quadros do capitalismo). Aqui entra a participação da chamada Sociedade Civil, isto é, o conjunto de instituições e movimentos sociais capazes de se fazerem representar. O segredo da força do PT está na sua relação com os Movimentos Sociais. Tendo a mesma inspiração e utopia, cada um atua em seu campo próprio: os Movimentos, na sociedade civil por uma causa específica; o Partido, na esfera política para exercer o poder de Estado. Até agora, a relação entre eles tem sido de respeito mútuo: os Movimentos Sociais não se integraram no governo, nem se puseram à margem do processo político. Entre essas duas posturas extremas, os Movimentos Sociais estão encontrando o lugar que lhes é próprio, isto é, onde sua autonomia e sua conhecida capacidade crítica sejam colocadas a serviço de um novo projeto para o Brasil.

Neste contexto atual da sociedade civil e suas relações com o Estado, cabe uma observação sobre o papel da Igreja Católica. Já nos anos 50 a CNBB levantava a questão da Reforma Agrária e, pouco depois, ampliava para as Reformas de Base; durante o regime militar assumiu a defesa dos Direitos Humanos e mobilizou suas forças para garantir a cidadania na Constituição de 1988, sempre se colocando ao lado, senão na linha de frente das grandes causas populares, inclusive aquelas que pareciam perdidas, como a causa dos povos indígenas, até hoje esperando que se cumpra o preceito constitucional de demarcação de suas terras. Desde suas bases, nas comunidades eclesiais, nos grupos de jovens, nos núcleos de pastorais sociais, até a cúpula nacional, passando pelas Dioceses e Regionais, ela tem sido a principal parceira (por vezes também a parteira) dos Movimentos Sociais envolvidos nesse grande projeto de Construção Nacional[12]. Durante o governo de F.H. Cardoso, sua postura crítica lhe valeu ser chamada de defensora do atraso. Agora é outra a conjuntura, marcada pela conquista da Presidência da República por um Partido nascido dos Movimentos Sociais. Torna-se então necessária uma forma de colaboração no plano da Ética, colaboração que pode implicar críticas, mas implica também em uma parceria que, respeitando a autonomia de cada esfera, reúna e multiplique as energias sociais e políticas para a consecução desse projeto nacional de universalização da cidadania.

Contribuíram para esta análise Pe. Ernanne Pinheiro, Pe. Alfredo Gonçalves, Pe. Bernard Lestienne, Pe. Antônio Abreu, Pe. Thierry Linard, Guilherme Delgado e Lurdinha Nunes.

Pedro A. Ribeiro de Oliveira. Assessor da CNBB para o Setor CEBs e Professor na Universidade Católica de Brasília



[1] As sirenes alertando para um ataque e as explosões de bombas, transmitidas ao vivo, pareciam ser efeitos especiais, embora atingindo locais públicos e causando mortes e mutilações.

[2] A exceção foi a colonização européia no Sul, quando foram distribuídas terras a colonos alemães e italianos, criando um moderno sistema de produção agrícola.

[3] A Lei de Terras reconheceu os direitos das sesmarias preexistentes, registrados nas Paróquias e Comarcas do interior e preceituou o critério da compra e venda como meio para obtenção de novos direitos de propriedade, além - evidentemente - da herança.

[4] Surgem relações de trabalho profundamente dependentes de relações pessoais e patrimoniais, como sejam a “moradia”, a parceria e o colonato no mundo rural, e os múltiplos arranjos dos serviços pessoais, auto-ocupações, trabalho doméstico, “agregados” etc. No mundo urbano, essas relações se reproduzem, adaptativamente, nas franjas das relações de mercado.

[5] O processo de Consolidação das Leis do Trabalho tem início em 1941, com Vargas. Mas dirigidas ao mundo urbano e a categorias estratégicas da economia de então. Esse processo sócio-político, que acompanha em ritmo retardado a incorporação da força de trabalho às atividades industriais e urbanas, terá atingido seu ponto máximo (algo como 60% da PEA) no final dos anos 1970 ou início dos anos 80, quando se exaure o modelo de crescimento industrial do pós-guerra. Desde então, passados 20 anos de quase estagnação econômica, somente têm crescido o setor informal do mundo do trabalho e suas formas precárias de relação de trabalho, e o desemprego aberto ou disfarçado.

[6] Basta citar Josué de Castro, Celso Furtado, D. Helder Câmara, Juscelino Kubitschek, Werneck Sodré, Alceu de Amoroso Lima, Luiz Carlos Prestes, Raimundo Faoro, Caio Prado Jr., entre outros.

[7] Podem-se distinguir 3 etapas nesse processo:

1. Nas décadas de 1940 e 50, o movimento popular vem embutido na aliança populista de Vargas.

2. Nas décadas de 1960 a 80, consolidam-se os movimentos sociais com reivindicações contra a carestia, pela Reforma Agrária, por melhores condições de infra-estrutura, por melhores salários e condições de trabalho, e em defesa dos Direitos Humanos. Esse florescimento recebe o apoio da Igreja Católica e alia-se à reação da sociedade contra a ditadura militar.

3. Na década de 1990 os movimentos sociais enfrentam uma forte crise, devido ao modelo neoliberal do Estado, que faz políticas compensatórias para fugir das responsabilidades sociais. O confronto com instâncias governamentais - em nível municipal, estadual ou federal – cede lugar a tentativas de cooptação da organização e das bandeiras do movimento social, fazendo que este se preste a substituir órgãos governamentais em tarefas de assistência. Sua resistência, contudo, ficou clara com a vitória eleitoral de 2002.

[8] Inscrevem-se na Constituição de 1988 Direitos como a demarcação das terras indígenas e de quilombos, o controle social de políticas públicas, a função social da propriedade e a universalização da assistência e previdência social. Aí reside o cerne do atual debate entre focalização e universalização dos serviços de saúde, previdência, educação, e outros da área social, pois a orientação neoliberal atribui ao mercado o atendimento “normal” das necessidades sociais, enquanto ao Estado caberia apenas o atendimento assistencial dos setores mais pobres.

[9] A Reforma da Previdência foi o tema da Análise de Conjuntura de março (cfr. www.cnbb.org.br)

[10] A dívida interna passou de R$56 bilhões, em dezembro de 1994, para cerca de R$800 bilhões no final de 2002. No mesmo período, o Brasil pagou aos credores externos, como serviço da dívida, US$ 330 bilhões, com empréstimos no valor de US$ 273 bilhões. É o que se chama rolar a dívida.

[11] É o que diz João Sicsú, da UFRJ, ao argumentar que o atual conjunto de medidas dificulta a intervenção do Estado na economia, pois confia os investimentos à iniciativa privada. Além disso, a credibilidade é um estoque que só se forma com o tempo, na medida em que as promessas são fielmente cumpridas. Quanto mais tempo passa, menos possibilidade terá o Estado de intervir na economia e imprimir-lhe outro rumo.

[12] O documento da CNBB sobre as Eleições de 2002 deixa clara sua disposição em levar a diante o projeto de Construção Nacional, priorizando a defesa da Dignidade e dos Direitos Humanos e o Desenvolvimento Sustentável. Digna de nota é a posição assumida pelo Episcopado no Mutirão Nacional pela Superação da Miséria e da Fome, ali colocada como uma questão de Política Pública prioritária, e não apenas de Assistência Social.

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