100 dias de Lula

08/04/2003
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Para entender a administração Lula, devemos partir de duas premissas: 1) não se fez revolução, ganhou-se uma eleição; 2) não se chegou ao poder, mas ao governo. Uma revolução zera não só o caráter do governo, mas também a natureza do poder. Começa por estigmatizar os adversários como inimigos; os críticos, como traidores; e, por vezes — de Robespierre a Mao — calar com a morte os que se opõem ao projeto revolucionário. Ganhar uma eleição é muito diferente. Significa respeitar o jogo democrático, que favorece a disputa entre partidos e candidatos portadores de projetos e ideologias conflitantes. Ainda que não se ignore o peso das estruturas burguesas, sobretudo a discrepância entre candidatos regiamente financiados e os que mendigam voto a voto, a democracia representativa (inconclusa enquanto não se torna participativa) não suporta rupturas bruscas, nem a eliminação sumária de suas próprias regras do jogo. Lula ganhou uma eleição superando preconceitos e a oposição, inclusive financeira, da oligarquia brasileira. Mas não se propôs a fazer revolução, nem a suprimir as regras da legalidade burguesa, desfavoráveis à vitória do PT. Venceu porque o sofrimento da maioria da população engendrou a esperança que ele encarna e representa. Esperança que venceu o medo de um novo golpe militar, de uma interferência direta do pólo imperial (como ocorreu recentemente na Venezuela), de boicote do FMI, de acefalia governamental (à semelhança da Argentina). Venceu, enfim, o receio de que o governo de uma nação como o Brasil não poderia estar em mãos de um homem de esquerda. O PT poderia, há muito, ter radicalizado sua estratégia política, como desejavam certas facções da esquerda. Mas não coube somente a elas nortear os rumos do partido. Dois outros segmentos tiveram forte influência na definição do perfil petista: o sindicalismo combativo, hoje representado pela CUT, e as pastorais da Igreja, em especial as Comunidades Eclesiais de Base. Lula inovou o sindicalismo ao romper com o peleguismo aconchegado nas benesses cooptativas da ditadura, e adotar a negociação como tática política. Mesmo nos períodos mais agudos, como nas greves que deflagrou, Lula jamais implodiu as pontes do diálogo com o empresariado. Por isso, suspeitou-se que ele era monitorado pela CIA ou outros interesses escusos. A história, porém, comprovou que, ao contrário de seus críticos mais sectários, ele era contemporâneo de seu tempo. Não cedeu à nostalgia revolucionária no período de redemocratização do país, nem ao ideologismo frente à nação que, prenhe de ética na política, levou o presidente Collor ao impeachment. Lula manteve os princípios que sedimentaram sua trajetória política. Malgrado três derrotas em eleições presidenciais, tornou-se, ele sim, senhor do tempo, para alavancar seu protagonismo na história. Dos movimentos pastorais, que agem mais por consenso que por disputas (neles não há rachas ou tendências estruturadas) conservou a paciência de costurar apoios e cultivar utopias. Sem compreender essa sua índole política, é difícil sintonizar com o ritmo que ele imprime às reformas que fará. Jamais haverá de ceder àqueles que anseiam ver a casa construída a partir do telhado. Como metalúrgico, aprendeu que as peças só funcionam bem se derivadas de um protótipo que exige precisão e cautela. A segunda premissa para entender a atual administração é a de que se chegou ao governo, e não ao poder. Este se tece de fios vigorosos, tanto na base social quanto no topo das instituições, que não se rompem nem se modificam com a troca de governantes. No topo, costuma extrapolar fronteiras nacionais (vide o capital especulativo), convenções internacionais (vide o ataque ao Iraque) e, por vezes, princípios éticos. Sua face mais visível, do ponto de vista do poder financeiro, é o mercado, cuja lógica não cabe na utopia de Platão, no receituário de Maquiavel, na engenharia política de Montesquieu, nem nas análises de Gramsci. Na base social reside o poder dos movimentos organizados, capazes de mobilizar amplos setores da população e criar consenso em torno de suas propostas estratégicas. A engenharia política do governo Lula depende, sobretudo, da sua capacidade de dar consistência político-administrativa às demandas desse pólo de poder. Seria bom que promessas de campanha se tornassem realidade num passe de mágica. Porém, três ou quatro meses são insuficientes para redirecionar uma máquina administrativa construída para não favorecer a maioria da população. O êxito na condução da política econômica, evitando sobretudo a volta da espiral inflacionária, e as articulações políticas com o Congresso, é que dará o suficiente respaldo aos programas sociais que estão sendo criteriosamente formatados, e que haverão de imprimir ao Brasil mudanças substanciais. * Frei Betto é assessor especial da Presidência da República e coordenador da Mobilização Social do Programa Fome Zero.
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