Ricardo Canese avalia acordo energético entre Brasil e Paraguai

Que ganhem os povos

19/08/2009
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Depois de um mês do acordo assinado em 25 de julho por Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Lugo, Brasil e Paraguai começam aos poucos as negociações para regulamentar e concretizar os pontos acordados pelos presidentes sobre a energia produzida pela Usina de Itaipu, controlada pelos dois países.
 
Histórico para o Paraguai, o acordo garantiu não apenas um melhor preço pela energia cedida ao Brasil – o Paraguai receberá, no mínimo, US$ 360 milhões anuais. Pela primeira vez, o Brasil reconhece o direito de o Paraguai vender sua energia diretamente no mercado brasileiro, com possibilidade de vender a outros países a partir de 2023, quando o Tratado de Itaipu será renegociado.
 
É o reconhecimento da soberania paraguaia sobre sua energia, na avaliação do engenheiro Ricardo Canese, em entrevista ao *Brasil de Fato*. Para o negociador paraguaio, esta possibilidade para uma integração mais vantajosa para os países pobres da região.
 
Nesta entrevista, Canese garante que a postura do governo paraguaio é procurar uma forma de venda direta da energia ao mercado brasileiro, sem intermediários. A idéia é que os preços ao consumidor final possam inclusive baixar, com a entrada de mais uma empresa. “O que queremos com este acordo, em particular no caso da venda ao Brasil, é que ganhemos os povos”, resume.
 
- Brasil de Fato - No Brasil não se tem a dimensão da importância de Itaipu para o Paraguai e do tempo que leva esta luta por rever o Tratado. Por que vocês consideram histórico o acordo assinado por Lula e Lugo?
 
Ricardo Canese: É histórico porque, de fato, para o Paraguai o tema de Itaipu foi um dos temas mais importantes em política externa nas últimas décadas. Mais além da importância para a geração de energia no país, há uma questão importante em relação à integração do Mercosul, que tinha como déficit a integração energética. Na Europa, a integração energética foi um motor da integração. Por isso, não era apenas um tema importante na relação entre Paraguai e Brasil, mas também para a integração regional. Na declaração assinada pelos presidentes, há uma menção clara à integração regional. Mais além desta menção, há fatos importantes, como a possibilidade de o Paraguai vender sua energia a terceiros países, pelo menos a partir de 2023. Isso já abre uma perspectiva de integração concreta. A rede de 500 kw que se anuncia neste acordo é uma obra de infra-estrutura para a integração, pois poderá se integrar com Argentina e Bolívia. Ademais, esta negociação de Itaipu posiciona muito bem o Paraguai para negociar agora com Argentina, em Yaciretá.
 
- Por que a comparação com a recuperação do Canal de Panamá?
 
Porque, para o Panamá, o canal é sua principal fonte de ingresso. E para o Paraguai a principal fonte de ingressos é Itaipu. E o fato de que não tenhamos soberania sobre nossa energia nos limita seriamente em quanto a nossos ingressos. Hoje, o Chile está oferecendo muito mais pela nossa energia do que oferece o mercado brasileiro. O Panamá tampouco recuperou sua soberania de forma imediata. Quando Carter e Torrijo [/Jimmy Carter e Omar Torrijos, presidentes dos Estados Unidos e do Panamá em 1977/] assinam um acordo, depois de sete anos de negociações, o Panamá recupera 22 anos depois. Então, o fato de que o governo brasileiro tenha acordado que o Paraguai possa recuperar sua soberania dentro de 14 anos, é altamente significativo para nós. Acreditamos inclusive que vamos poder chegar a uma integração energética muito antes, porque isso convém a todos. Brasil e Argentina tiveram crises por apagões de energia. Este acordo abre as portas para um processo de integração baseado na equidade e no benefício pra os povos. A opinião pública do Paraguai tem uma visão muito negativa do Mercosul porque não vê os benefícios. Então, com esta mudança, que para mim é histórica, poderemos começar a ver os benefícios.
 
- E quais são as reivindicações do Paraguai com a Argentina, em relação à usina de Yaciretá?
 
São muito similares com os de Itaipu, porém ainda não começamos as negociações. Depois do acordo com o Brasil, as possibilidades são melhores. No próprio tratado de Yaciretá, se estabelece que a Argentina tem apenas a preferência na cessão de energia. Então, a questão da soberania energética do Paraguai está muito melhor posicionada. Queremos concretizar isso, porque, se bem está no tratado, o Paraguai nunca fez uso deste direito. Também temos problemas em relação à dívida, indefinição sobre a tarifa, obras não concluídas. Neste momento estamos fechando uma proposta no governo paraguaio, para então levarmos ao governo argentino. Já existe um princípio de acordo com a Argentina, que temos que buscar que ampliar.
 
- Uma das críticas ao acordo assinado por Lula e Lugo é que não teria um valor de tratado. Como resolver esta questão?
 
Por isso nós dizemos que foi um passo histórico, mas que precisa ser concluído. No mesmo dia da assinatura se concluiu o acordo, então era impossível pensar na redação de outro tipo de instrumento diplomático. Agora, a chancelaria está discutindo que instrumento se deve utilizar, que parte deste acordo tem que ir ao Congresso. Não é dizer que se avançou em tudo, tampouco minimizar o acordo. O que se avançou é muito importante por expressar a vontade dos governos. Agora, nos casos que precisem ir aos Congressos, irão aos Congressos. E nós cremos que o presidente Lula tem uma liderança muito importante no Brasil. E isso vai potencializar as relações entre Brasil e Paraguai e toda a região.
 
- O senhor sabe que este tema é polêmico no Brasil, principalmente no que diz respeito ao aumento de gastos para o Estado e também para o consumidor.
 
Não estou dizendo que não seja polêmico. Mas sim acredito que, primeiro, o presidente Lula tem uma liderança. Segundo, que os benefícios globais são para todos. Creio que esta polêmica será discutida no Brasil e o presidente Lula saberá conduzir. Creio que conduziu bem no caso boliviano, recebendo críticas muito duras. Mas finalmente o acordo seguiu adiante. Creio que nesta ocasião ocorrerá o mesmo. Numa leitura de longo prazo e bem objetiva, o benefício é para todos.
 
- Quais são as possibilidades para o Paraguai vender sua energia no Brasil?
 
Isto está num debate interno no governo. O que posso dizer é que o objetivo do governo paraguaio é buscar que a venda no Brasil reflita os custos reais, e não apontar a mercados especulativos. Não que ganhem empresas que entrem para especular. O que queremos com este acordo, em particular no caso da venda ao Brasil, é que ganhemos os povos. Eu li algumas opiniões no Brasil dizendo que os preços no mercado brasileiro podem inclusive baixar com a entrada do Paraguai para vender no Brasil, pela simples lei da oferta e da demanda. Pode ter este efeito positivo. Não temos nenhuma vontade de favorecer a especuladores. Mas que o Paraguai receba efetivamente o que custa a energia. Também seremos cuidadosos de não inundar o mercado brasileiro de maneira a haver uma baixa artificial. Para nós, interessa que o preço seja justo, que reflita os custos de geração, os custos reais, com a nossa oferta de energia de Itaipu.
 
- Que modalidades de venda o governo está discutindo?
 
Todos estes temas estão em discussão interna. Uma das coisas que está bastante clara é que este deve ser um negócio para o Estado paraguaio, não para nenhuma empresa. Ou seja, que vá com o menor custo possível para o consumidor brasileiro. Buscaremos uma modalidade de venda que seja diretamente o Estado paraguaio que receba a totalidade do preço, que não haja nenhum intermediário. Estamos nesta busca.
 
- O acordo garantirá um aumento no orçamento do Paraguai. Há um debate sobre as prioridades de investimento?
 
Este é um tema que também está em discussão. Eu posso dizer que há um grande consenso em algumas idéias básicas. O importante não é apenas que o Paraguai receba mais recursos, mas que os empregue muito bem. Outro consenso é que se deve utilizar em questões básicas de infra-estrutura, e não em gastos correntes. Estes novos ingressos de recursos não podem substituir os impostos. Discutimos inclusive a possibilidade de um projeto de lei, que transforme numa política de Estado e fixe as pautas de como utilizar este recurso.
 
- No acordo, definiu-se a construção de uma linha de transmissão e uma subestação no Paraguai. O que isso representa para o país?
 
A subestação e a rede de 500 kw é muito importante. Ademais, isso é um financiamento de Itaipu. O Paraguai já tinha comprometido recursos do Banco Mundial, do BID, para esta mesma rede. Então, foi direcionado a outras obras elétricas, de interconexão e fortalecimento da distribuição, da eletrificação rural, para as quais sempre houve poucos recursos.
 
- Um outro debate que se abre é o modelo de desenvolvimento no Paraguai.
 
O debate sobre modelo de desenvolvimento no Paraguai, com ou sem o acordo, está posto. Quiçá este acordo o torne mais urgente. Mas vejamos o caso da soja, e o enfrentamento entre produtores e camponeses. Este é um debate de todos os dias no nosso país. Então, eu creio que este acordo nos coloca numa melhor situação para pensar não somente no desenvolvimento primário, mas também num processo de industrialização, que pode vir de grandes empresas, com as quais teremos que ter muito cuidado com a questão ambiental, e também de pequenas empresas. Pode haver um fundo para a pequena indústria, por exemplo. Vai haver este debate, e é bem vindo. Queremos um desenvolvimento equilibrado, porém não queremos impedir os grandes investimentos, que tenham conteúdo social e ambiental.
 
- Na negociação com o Brasil, parecia haver duas posições no Paraguai. Uma mais vinculada à questão da recuperação da soberania, outra que propunha um negócio com o Brasil. Que posição venceu?
 
Eu creio que o governo finalmente teve uma única postura. Se bem houve opiniões diferentes dentro e fora do governo, a única opinião do governo foram os seis pontos, que incluía a soberania energética, mas também o preço justo. A posição do governo sempre foi equilibrada e o primeiro ponto sempre foi a soberania, que teve um avanço importante. Estamos satisfeitos com este acordo, que teve conquistas econômicas concretas, que era o que algumas pessoas insistiam, mas também tem avanços na soberania energética. Creio que o governo de Lula entendeu muito bem que a reivindicação paraguaia não era só econômica, mas também política. E a partir desta compreensão que Lula teve é que houve o acordo.
 
- Daniel Cassol é Correspondente de Brasil de Fato em Assunção (Paraguai)
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