E agora, que teoria?
16/11/2002
- Opinión
Estamos saindo de uma década miserável para a política e para a
vida intelectual. Ao invés da elevação do debate teórico, a eleição de um
presidente de origem intelectual, ao adotar uma teoria já elaborada – o
Consenso de Washington -, implicou na renúncia a teorizar o que fazia,
porque tudo já estava escrito. A desqualificação dos adversários e da
própria possibilidade de divergência e de debate correspondia à
impossibilidade de se escrever o que se fez – no fundo resumido ao filtro
financeiro do ajuste fiscal, que dizia o que podia e não podia ser feito,
o que era bom e mau para o país.
O fracasso e a derrota desse governo e dessa forma de encarar a
prática política e o debate teórico representam uma nova possibilidade de
valorizar a vida intelectual. Não apenas uma possibilidade, mas uma
necessidade urgente já que, pela primeira vez nos últimos grandes
projetos históricos do Brasil, entramos num novo período político sem uma
elaboração teórica à altura dos desafios colocados. O governo de João
Goulart podia se fundamentar no Plano de Metas elaborado por Celso
Furtado. A ditadura militar se inspirava na Doutrina de Segurança
Nacional. A transição democrática se apoiava na teoria do autoritarismo.
Quando o Brasil inova politicamente e se lança ao primeiro governo
posneoliberal, se colocam desafios enormes para a recuperação do atraso
na análise e nas proposições teóricas entre nós.
Entre suas características específicas, o Brasil dispõem de uma
extensa gama de intelectuais que têm revelado uma extraordinária
capacidade de produção teórica. No entanto, desqualificada pelo governo e
pouco mobilizada pela oposição, essa intelectualidade, em sua grande
maioria, viveu o período negro de que saímos refluída na universidade,
mais ou menos prisioneira da divisão técnica do trabalho, sem se
aventurar aos grandes desafios teóricos contemporâneos.
Justamente quando se deram as maiores transformações globais na
sociedade brasileira – e no mundo e geral -, grassaram as teses de
renúncia aos que passaram a ser chamados de "grandes relatos", que
acabaram deixando lugar ao reinado do economicismo com essa renúncia. É
hora de recuperar esse atraso.
Quais são os principais desafios teóricos atuais, quando os
brasileiros votaram majoritariamente por um novo governo, anti-
neoliberal? Em primeiro lugar, avaliar devidamente as transformações que
o neoliberalismo – com suas doutrinas e com as transformações reais que
operou – introduziu na sociedade brasileira. Em outras palavras, nos
reapropriarmos do que é hoje o capitalismo no Brasil, com seus processos
de acumulação de capital, de reprodução social, de representação
política, de expressão cultural, de dependência externa – para alimentar
nossa luta por um outro Brasil possível. Sem isso não seremos
contemporâneos do nosso presente, não estamos pisando com graus mínimos
de certeza no chão da sociedade brasileira realmente existente. Disto
depende nossa capacidade de avaliação das reais relações de forças
existentes, da definição de adversários e aliados, dos obstáculos e dos
elementos favoráveis com que contar, das forças a derrotar e daquelas a
conquistar, daquelas a que é preciso apoiar para que se constituam como
sujeitos sociais, políticos e culturais.
Promover e participar ativamente de um grande mutirão intelectual e
cultural, de debates, propostas, seminários, de produção teórica e de
discussão ampla, que recupere o prestígio e o costume da leitura, do
debate, da produção teórica, fortalecendo a idéia de que sem compreensão
teórica não há transformação consciente da realidade, que a realidade
cobra muito caro o preço dos erros teóricos cometidos – torna-se
indispensável. Para tanto será necessário criar e ampliar órgãos e
espaços escritos e visuais de debate e de divulgação que possam
materializar esse mutirão e contribuir para a construção de uma hegemonia
alternativa no Brasil.
Nesse processo, será preciso fortalecer e disseminar a cultura e a
formação histórica e política das novas gerações, tanto dos seus setores
que estão nas escolas, quanto daqueles – majoritários – que estão
excluídos, através de cursos, seminários, de todas as formas de capacitar
a maior quantidade de pessoas para que a nova etapa histórica a que o
Brasil ingresse represente não apenas um passo na democratização
econômica, política e social do Brasil, mas também na sua democratização
intelectual e cultural.
Necessitamos de uma teoria da saída do neoliberalismo e do tipo de
sociedade que o subsituirá. Sabemos que a mercantilização – marca do
capitalismo na sua fase atual – tem que ser combatida frontalmente e, com
ela, a exploração, a dominação política, a discriminação, mas também a
alienação, em todas suas formas. Mas precisamos propor as formas que
assumirá esse Brasil posneoliberal. Para tanto, os intelectuais – no
sentido amplo, gramsciano da palavra, de todos os que trabalham com as
palavras e com as idéias, de todos os que se propõem a construir de um
outro mundo possível – têm um papel essencial, indispensável. As
condições políticas estão dadas: através de uma campanha eleitoral
memorável, em que desembocou a acumulação de forças das décadas
anteriores, derrotamos ao neoliberalismo. Trata-se agora de consolidar
esses avanços contribuindo para dar-lhe consistência teórica e
massificando a participação intelectual, cultural, social e política do
enorme caudal de gente que votou pela esperança e pela mudança.
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