Transposição de teólogos e quetais
- Opinión
Uma das conquistas do movimento que se expressou em torno do jejum
de Dom Frei Luiz Cappio é esta do debate, mesmo enviesado. E
como este tem feito caírem as máscaras! É
impressionante como os chegados agora ao debate sobre a transposição,
que já rola pelo menos há uns 10 anos, expressam
incongruências, desinformação e o velho
preconceito em mal pensar, a partir do Sul/Sudeste, o que se
generalizou chamar "Nordeste", tudo por tudo, uma
construção histórica, e ideológica. Não
ignorassem a revolução silenciosa que aqui se opera â-
falo do paradigma da Convivência com o Semi-árido e
sugiro lerem, entre outros, a tese de Roberto Marinho Alves da Silva,
da UNB ("Entre o combate à seca e a convivência
com o semi-árido - transições paradigmáticas
e sustentabilidade do desenvolvimento") â - estariam
falando menos besteiras. E estariam com mais razão nas
questões pertinentes que levantam.
Não há
como não notar que, de Kucinski a Gómez de Souza,
passando por Mo Sung, esses "chegados agora" foram
acionados pelo governismo â- a necessidade de defender o
governo de Lula que ainda julgam "de esquerda" ou "popular"
e perigosamente ameaçado por jejuadores... Isso fica tão
mais escancarado, quanto mais atrasados chegaram, e mais pressurosos,
para não dizer presunçosos. Aplicar aqui o dito "é
um governo de merda, mas é nosso" não só
está a anos-luz do governo de Allende no Chile de 1973, como
quer esconder que faz tempo esse "governo de merda" não
é mais nosso, que há muito deixou de pretender ser de
fato...
"Nosso" de quem cara-pálida? Dos
banqueiros locupletados, dos Geddéis e Renans fisiológicos
do PMDB, dos descamisados do "bolsa-esmola" e dos
empreiteiros do PAC? Em breve também dos patrões
felizes com a idéia de não precisar mais de contratos
formais para trabalho temporário... Nosso seria se tivesse
acatado o "paradigma da convivência com o semi-árido",
optado pelas alternativas sustentáveis de fornecimento hídrico
para o consumo humano e produção agropecuária
apropriada no Semi-árido brasileiro. O que impede? Os
interesses poderosos sobre esta região, os da "novela
indústria da seca", aos quais se rendeu, para uma
sobrevida no poder, ao qual tudo fez (e entregou) para conquistar e
manter.
"Fundamentalistas", "principistas",
"integristas", "voluntaristas", "utopistas"...
são os nomes que nos têm sido empregados. Interessante
que não éramos isso quando, juntos (?), combatíamos
as mesmas causas com os mesmos argumentos, em questões como
essa da transposição, só que nos governos Itamar
e Fernando Henrique... Tivessem há mais tempo aprofundado o
assunto da transposição, teriam se dado conta de que
estamos muito além de uma questão técnica da
política, à qual a cidadania por leiga, e cristãos
por desafeição, teriam apenas que respeitar, dada a
autonomia da esfera governamental legal e legitimamente eleita e
judicialmente respaldada... Teriam topado com a tese cada vez mais
plausível do professor da UFRN João Abner Guimarães
Júnior, de que a transposição, existente há
200 anos, tornou-se um vírus inoculado por poderoso lobby
no Estado brasileiro e quanto mais fraco é o governo de
plantão mais o vírus toma conta do organismo debilitado
do Estado e o condiciona, obriga e submete.Ou acham que a nossa
pungente democracia, à frente esse "governo de coalizão
de esquerda", "de fortes bases populares", está
infensa a esses quartos poderes?
Além de atrasados,
apressados. Tomam do noticiário enviesado da grande mídia
em geral aquilo que corroboram suas linhas de raciocínio, não
duvidam, não checam, e se equivocam. Por exemplo, sobre o
encerramento do jejum. Todos â- médico, familiares,
amigos, assessores e lideranças populares â- foram
unânimes em prestar socorro a Frei Luiz quando desmaiou e que
ao recuperar-se na UTI do Hospital, em Petrolina, deveria suspender o
jejum. Mas a decisão era dele e ele decidiu que continuaria o
jejum pelo menos até a noite do 24º dia, quando de volta
a Sobradinho, junto ao povo com quem começou, decidisse
finalmente o que faria.
Outro exemplo, a decisão
recente do STF - Supremo Tribunal Federal - sobre o projeto da
transposição favorável ao governo por seis a
três (não deviam estar os 11 ministros numa decisão
dessas?), ainda sobre tecnicalidades jurídicas, não
sobre o mérito, estas tendentes a tardar o suficiente para se
darem sobre o fato consumado de obras tão avançadas que
irreversíveis (com todos os sintomas de novo "elefante
branco")... Chamam a isso de Justiça republicana?
Só
mais um exemplo: o tal "cristão paciente" Gilberto
Carvalho, chefe de gabinete do Presidente Lula, só entrou
informalmente no circuito da "negociação" com
a CNBB sobre o jejum em 13/12/2007, no 18º dia, e informou no
23º, após a decisão no STF, que as "negociações"
estavam encerradas. Na verdade, desde o acordo que encerrou o
primeiro jejum, em 2005, o governo nunca se dispôs realmente ao
diálogo, técnico ou político, nunca se colocou à
possibilidade de "ser levado democraticamente" a optar pela
não implementação já sacramentada nos
gabinetes da "grande obra do governo".
Na pressa de
achar o que os neo-poderosos acham, os "chegantes", sejam
teológicos ou sociológicos, não fazem nem pálida
idéia do que foi Sobradinho nesses 24 dias de jejum, em termos
de conexão direta e vivencial entre fé e vida, a
política sendo apenas uma dimensão dessa vida, nem a
mais importante. Quantas cartas, emails, telefonemas, dos
quatro cantos do mundo, antenados e solidários... A idéia
do "jejum solidário" ganhou conotações
até certo ponto surpreendentes de crítica a uma
sociedade da abundância de comida e do aumento da fome.
Sobretudo, quantas pessoas Frei Luiz ouviu, aconselhou, confessou,
abraçou, beijou, ou simplesmente olhou com carinho... Quantas
vieram dizer de seus sofrimentos, lutas, pequenas e grandes alegrias,
esperanças, das materiais às mais espirituais, se é
que isso existe separadamente... Identidade imediata, mais real e
concreta que a de um imaginado, mal reciclado e frágil "pai
dos pobres"! Ou mesmo mais que de uma teologia que perdeu no
caminho seu chão e seu objeto.
É o "Nordeste",
cara-pálida, como a academia daqui convencionou chamar; a daí,
mesmo a teológica, chama mas não entende. Para
comprovar suas teses é mais fácil pensar em ayatolás,
já que Ibiapina, Conselheiro, Padre Cícero, Pedro
Batista, Frei Damião estão muito próximos para
serem inteligíveis... E o Brasil, de bom grado neo-colônia,
é melhor não decifrar. Até o duro cotidiano do
povo, essencialmente vivido na fé, está difícil
para esse pessoal entender, apesar de ser esse seu ofício,
ensinado pela impreterível Teologia da Libertação,
para a qual "a cabeça pensa a partir de onde os pés
pisam". Ou será que o cotidiano do povo melhorou
substancialmente com o "bolsa-esmola"?
Quanto ao
divisor de águas em que se tornaram a transposição
e o jejum do bispo (e o próprio jejum como arma dos
desarmados), os acadêmicos vão de achar que se trata de
forma "pré-política" de fazer política
(José de Souza Martins) a forma "pós-moderna"
do mesmo fazer (Instituto Humanitas / Unisinos - RS).
Quanto à
questão de fundo, prefiro ficar com Dom Aloísio
Lorscheider. Guardo até hoje uma entrevista dele nas páginas
amarelas da revista Veja, menos direitista naqueles tempos
militarizados (ou as tropas e canhões em Cabrobó,
Petrolândia e Sobradinho de hoje nos desautorizam?). Dizia que
o capitalismo é estruturalmente pecaminoso, anti-evangélico.
Parece que não é mais... Mesmo com os Dom Aloísios
que ainda restam e ficam (Dom Tomás Balduíno foi
porta-voz, Dom Paulo Evaristo e Dom Pedro Casaldáliga ligaram
várias vezes para Dom Luiz e ele se fortaleceu com essas
ligações), não deveria estar misturando tanto fé
e política, religião e vida, no contexto histórico
vivido pelos pobres, pois parece que estas voltaram a ser esferas
distintas, teórica e praticamente, não mais
interpenetráveis e influenciáveis... afinal, não
se deve ignorar que há sobre o Ocidente cristão (?),
vindo do Norte, como o ecologismo condenável porque contra o
desenvolvimento do Sul, o risco fundamentalista-islâmico! O que
não faz o poder, mesmo parcial e só para gerenciar o
aprofundamento da desgraça dos pobres de Iahwé e de
Jesus! Como carecemos de Freis Luizes â- "luzes" como
disse José Celso Martinez â-, com ou sem batinas, jejuns
ou greves de fome! E de teólogos como já tivemos! A
carência é tanta que cega, ao ponto de não
enxergarmos quando um se acende. Ou, como dizia Frei Luiz, não
olhem para o dedo, mas para o que ele aponta.
- Ruben
Siqueira é Agente da CPT â- Comissão Pastoral
da Terra / Bahia, coordenador do projeto Articulação
Popular pela Revitalização da Bacia do Rio São
Francisco CPT/CPP - Conselho Pastoral dos Pescadores, graduado em
Filosofia e Pedagogia, com Mestrado em Ciências Sociais.
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