O golpe invisível
16/04/2002
- Opinión
Há cerca de 30 dias a TV Globo apresentou uma série de reportagens no Jornal
Nacional sobre um "país dividido", a Venezuela. Era o sinal de que estava em
curso uma campanha internacional, mais precisamente um golpe, para derrubar o
presidente venezuelano Hugo Chávez. Numa das matérias especiais, Chávez era
comparado a Fidel Castro, e o seu governo estaria tentando - para infelicidade
do povo - igualar-se ao "comunismo" cubano.
Quando, na semana passada, ocorreu o anunciado golpe militar e ninguém sabia do
paradeiro do presidente deposto, salvo exceções, esta mesma imprensa não afirmou
que houve um golpe, mas "a destituição" de Chávez. E espalhou que ele havia
renunciado. Mentira.
Mas antes de avaliar o comportamento da imprensa, vale analisar porque Hugo
Chávez precisava ser derrubado. Ele passou a incomodar a nova ordem mundial, e
em especial os Estados Unidos, quando promoveu as reformas que privilegiavam os
venezuelanos e não a elite caquética que, a exemplo de outros países, sustentam-
se à custa da miséria do seu povo (o Brasil é um bom exemplo disso). Faz parte
das mudanças anunciadas a reforma agrária, com limitação da propriedade. Foi
isto que, segundo a TV Globo, deflagrou uma "reação popular" encabeçada pelos
empresários e ricos proprietários do país. O paradoxo, esta aberração histórica,
uma "reação popular" liderada pelos ricos, não foi destacada.
Os Estados Unidos tiveram que engolir Chávez porque ele foi eleito num processo
limpo, em eleições com observadores internacionais. Tiveram que engolir e não
puderam escancaradamente invadir como fizeram na Colômbia, em nome do
narcotráfico; ou, como fizeram em outros países, por "agressões aos direitos
humanos". A única acusação que sobrou para Chávez foi a de impedir o exercício
da "liberdade de imprensa". Mas isso não dá invasão. Daí, não havendo meios mais
claros de se promover um ato dessa natureza, patrocinaram o golpe de direita,
juntando os militares com os empresários. Os Estados Unidos foi o único país a
felicitar os militares pelo golpe. E o FMI imediatamente se ofereceu para ajudar
o governo dos golpistas.
A grande imprensa venezuelana, em especial as televisões, que alardeiam para o
mundo que estão sendo censuradas, fizeram e fazem ainda hoje campanha pelo
golpe. Feridos nos seus interesses empresariais, esta imprensa omitiu
informações, distorceu fatos, e censurou a opinião do povo venezuelano.
O último capítulo dessa novela, as manifestações do povo nas ruas que resultaram
na volta de Hugo Chávez ao poder, foi boicotada, censurada por elas. Milhões de
pessoas foram as ruas, ocuparam o palácio presidencial e colocaram Chávez de
volta ao poder. Essa gente impediu que se repetisse um novo Chile de Allende. A
mesma imprensa venezuelana que não deu nada disso porque não quis, porque
preferiu boicotar o povo, reclama ao mundo haver "impedimento em suas
atividades".
O boicote da imprensa as manifestações populares no Brasil é comum. Um dos casos
mais célebres ocorreu no início dos anos 80. Na época houve uma manifestação com
mais de 1 milhão de pessoas nas ruas de São Paulo pedindo a volta das eleições
para presidente, a campanha das "Diretas já", e a Globo mostrou imagens do povo,
mas disse que era apenas comemoração do aniversário da cidade!
Afora esta "barriga" histórica da imprensa brasileira - em especial da Rede
Globo - pergunta-se ainda pelos outros elementos envolvidos no conflito. Ora,
todos os golpes de direita ocorridos no mundo têm o dedo da CIA.
Por que não se tocou no assunto? Porque esta imprensa não tenta levantar quem
foram os reais autores do golpe, limitando-se a dizer que o presidente Hugo
Chávez foi "destituído" e tomou posse o presidente da Federação do Comércio? Por
que essa mentira? A resposta é evidente: os interesses são os mesmos.
Chávez está fazendo da Venezuela um país independente, soberano, e isto não
agrada aos interesses norte-americanos. Além do mais, além da questão política,
a Venezuela é rica em petróleo.
A Globo tem um tom sem adjetivos (como reza a boa escola de jornalismo!) que
aparenta a imparcialidade. Quem assiste ao jornalismo da Globo, com seu tom
imparcial, sua pretensa defesa do país, não sabe dos seus verdadeiros
interesses. Foi com esse mesmo tom, com essa sistemática defesa da moralidade e
da família, que a TV Globo, e a grande imprensa de um modo geral, fez a campanha
e elegeu Fernando Collor e, depois, Fernando Henrique Cardoso. É o mesmo tom que
transforma o seqüestro de um menino cubano pelos Estados Unidos numa disputa
judiciária; e, agora, um golpe de estado, numa "destituição". O golpe era
invisível.
Cabe observar, entre as exceções da imprensa nacional na cobertura do golpe, a
coragem do Correio Braziliense. Na edição de segunda-feira, 15/04/02, o jornal
do DF foi mais longe ainda e fez severas críticas aos jornais e TVs
venezuelanos. A página 10 desta edição do Correio é dedicada ao tema, com o
título "Imprensa esfarrapada". Dosaram o adjetivo, poderia ser "imprensa
vagabunda". Infelizmente o Correio não criticou a imprensa brasileira - uma
omissão imperdoável.
Por fim, Hugo Chávez, reconduzido ao poder pelo povo, resumiu: "Os meios de
comunicação são a maior corrupção do mundo. É preciso fazer alguma coisa, pois
eles funcionam com licenças que são do povo, desse povo que deu uma lição
histórica a essa elite. Há dois mundos na Venezuela, o real e o que aparece nas
TVs privadas. Hoje o mundo real deu uma lição ao mundo de fantasia".
O fato nos deixa três lições:
1) Um sociedade que almeja mudanças que sejam do interesse do povo brasileiro, e
não de uma elite empresarial que domina o país há 500 anos, não pode confiar
neste jornalismo. Jamais eles vão trair os seus verdadeiros interesses e
defender o povo. Jamais vão aceitar mudar essa estrutura para uma que seja do
interesse popular.
2) Precisamos construir as nossas fontes, os nossos meios de comunicação.
Precisamos de veículos populares, estatais. Precisamos fazer a reforma agrária
do ar. Não podemos ficar reféns do que eles dizem.
3) Precisamos estabelecer regras, limites, para a radiodifusão brasileira. Não
bastasse a má qualidade dos programas de entretenimento, o jornalismo eletrônico
(que virou entretenimento) não pode continuar manipulando o povo brasileiro. A
manipulação inclui a censura sistemática de informações e a exclusão do povo. Se
eles tem uma concessão do povo, então que o povo determine o que deve ser feito,
e puna aqueles que utilizam este espaço para manipular ou omitir informações,
produzir e fomentar a violência, a desagregação da sociedade.
* Dioclécio Luz, jornalista/escritor - Brasília/DF
https://www.alainet.org/pt/active/1918
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