Religião e política

09/04/2002
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Este jornal anunciou, em sua edição de 23 de março último, que o cardeal Giovanni Batista Re, prefeito da Sagrada Congregação dos Bispos, no Vaticano, virá ao Brasil a fim de abrir oficialmente os trabalhos da próxima Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil ("Vaticano pedirá que CNBB se afaste de temas políticos", Brasil). Nessa ocasião, ele pedirá (o jornal diz "ordenará") aos bispos brasileiros que se abstenham, doravante, de pronunciamentos e iniciativas em matéria política e econômica. Todos os que conhecem minimamente a história da Igreja Católica Romana não podem deixar de sorrir diante dessa notícia. Em fins de 1864, alarmado com os progressos do liberalismo na política européia e assediado pelo movimento de unificação da Itália, liderado pelo rei da Sardenha e do Piemonte, o papa Pio 9º dirigiu aos bispos do mundo inteiro a carta encíclica "Quanta Cura". Ela apresentava, como anexo, um sumário dos erros do mundo moderno ("Syllabus Errorum"), composto de 80 proposições condenáveis. Uma delas era, justamente, a afirmação da necessidade de se separar doravante a Igreja do Estado. Se um fiel católico sustentasse publicamente que "na época atual, já não é útil que a religião católica seja considerada como a única religião do Estado, com a exclusão de todos os outros cultos" (proposição 77), podia ser legitimamente excomungado. Em 1864, portanto, o chefe da Igreja Católica Romana, ao julgar ímpia e escandalosa a proposta de separar a política da religião, ordenou aos bispos que atuassem, junto aos governantes dos países onde oficiavam, a fim de fazerem cumprir as diretrizes emanadas de Roma, não só nos assuntos de Estado, mas também em matéria de economia, educação e vida familiar. Agora, porém, a se confirmar a notícia estampada neste jornal, a Igreja de Roma toma, sobre o mesmo assunto, uma posição diametralmente oposta. Como explicar essa reviravolta? Os mais condescendentes dirão, talvez, que a Igreja Católica, enquanto instituição pública, não podia deixar de se adaptar à mentalidade moderna, sob pena de perder toda credibilidade em seu diálogo permanente com os chefes de Estado do mundo inteiro. A explicação seria aceitável, não fora o fato desalentador de que a última e conclusiva proposição, condenada como grave erro doutrinário pelo "Syllabus" de Pio 9º, foi justamente esta: "O pontífice romano pode e deve se reconciliar e transigir com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna". Já não é possível ignorar que, desde o término da Segunda Guerra Mundial, a diplomacia vaticana tem apoiado integralmente a política externa dos Estados Unidos. Enquanto perdurava a Guerra Fria e subsistia o império soviético, ainda era possível dizer que esse alinhamento completo com os ianques se explicava pelo fato de que o comunismo (já condenado, aliás, no mesmo "Syllabus" de 1864) seria o anticristo, anunciador do fim dos tempos. Acontece, porém, que, a partir dos anos 90 do século 20, instaurou-se uma nova ordem mundial, fundada explicitamente no espírito de modernidade e no liberalismo. Os partidos e movimentos políticos que não aceitam a dominação capitalista e a hegemonia norte-americana são, como se sabe, tachados de dinossauros e inimigos do progresso. Estaria a cúpula da Igreja de Roma empenhada em apoiar os EUA também nessa campanha ideológica mundial? A notícia divulgada na Folha alimenta seriamente essa interpretação, quando registra que o Vaticano estaria descontente com a iniciativa, tomada pela direção da CNBB, de organizar um plebiscito nacional, na Semana da Pátria, sobre o ingresso do nosso país na Alca. É preciso entender, de uma vez por todas, que política se faz tanto pela ação quanto pela omissão; tanto pelo protesto público quanto pelo silêncio obsequioso. Por acaso, os bispos católicos alemães, que se recusaram a condenar em público o anti-semitismo nazista, não ajudaram politicamente o governo de Adolf Hitler? Numa ocasião em que os seus discípulos disputavam entre si para saber quem seria o maior no Reino de Deus, Jesus lhes disse, conforme o relato de Mateus (20, 25-27): "Sabeis que os chefes das nações as dominam e os grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim. Ao contrário, aquele dentre vós que quiser se tornar grande seja vosso servo, e o que quiser ser o primeiro seja vosso servo ("doulos", na versão mais antiga do texto, na língua grega)". Os católicos no Brasil têm o direito de saber se os seus bispos são realmente servos do povo de Deus ou funcionários do Vaticano. Os católicos do mundo inteiro têm o direito de saber se as autoridades eclesiásticas de Roma são efetivamente servas de Cristo, ou vassalas de Washington. * Fábio Konder Comparato, 64, jurista, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Faculdade de Direito de Coimbra. É autor de "A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos" (Saraiva), entre outros. Folha de Sao Paulo, 10 de abril de 2002
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