Análise de Conjuntura – setembro 2006
26/09/2006
- Opinión
— Não é documento oficial da CNBB —
Apresentação
Esta análise está quase toda voltada para o tema das eleições, realçando sua importância para os destinos do Brasil, apesar do clima de despolitização que as envolve. Por isso, sintetizamos aqui temas já abordados nos dois últimos anos, para contextualizar o momento presente dentro da trajetória histórica dos Movimentos Sociais. Completam essa análise uma apreciação da Assembléia Geral da ONU, uma observação sobre a cultura da corrupção e as notícias do Congresso, praticamente em recesso nos dois últimos meses.
O Mundo em Assembléia
A Assembléia geral da ONU (que vai até o dia 29) foi até aqui dominada pelos temas do Irã, do Oriente médio, do Darfur e pela homenagem ao seu Secretário geral, Kofi Annan.
No discurso de abertura, Kofi Annan lembrou os três maiores desafios indicados na Assembléia de dez anos atrás: uma economia mundial injusta, as desordens mundiais e o desprezo dos Direitos Humanos. Constatando que não foram resolvidos, mas aguçados, concluiu: “estamos encarando um mundo cujas divisões ameaçam a noção mesma de comunidade internacional, sobre a qual esta instituição está fundamentada”. Considerando que as relações internacionais não são o terreno só dos Estados mas também dos povos e dos atores não estatais, Kofi Annan afirmou que “todos devem assumir seu papel numa verdadeira ordem mundial multilateral, com uma ONU dinâmica e renovada no seu centro”. Foi saudado longamente por toda a Assembléia.
Kofi Annan qualificou o conflito no Oriente Médio como o maior desafio à segurança e à paz mundiais: “Enquanto os palestinos viverem com o país ocupado, expostos a frustrações e humilhações cotidianas, e israelenses forem recortados por bombas nos ônibus e salas de dança, as paixões continuarão inflamadas em todas partes”. Alertou para a necessidade de respeito às resoluções do Conselho de Segurança, cuja imparcialidade não pode ser posta em questão. Para ele, a guerra no Darfur, que desde fevereiro de 2003 já fez mais de 200.000 mil mortos e 2 milhões de deslocados, é o maior desafio humanitário atual. O presidente sudanês, Omar Al-Bachir, tem até agora recusado uma indispensável força de paz da ONU. Quanto ao Irã, a maioria dos 182 países membros reafirmou que “o diálogo deve prevalecer”. “A confiança foi alterada pela existência de programas clandestinos, mas nosso objetivo não é de pôr os regimes em questão. É de confirmar a segurança no respeito do direito internacional e da soberania de cada um”.
Enfim, vários chefes de Estado, entre os quais o presidente Lula, insistiram no tema da desigualdade: “Em um tempo onde a riqueza do mundo cresce como nunca, o fosso que separa pobres e ricos se torna insuportável”. Também foi pedida a criação de uma organização da ONU para o meio ambiente, para combater “o lento suicídio coletivo da humanidade”.
O Brasil às vésperas das eleições
Estas eleições são muito mais importantes do que deixa transparecer o clima predominante de continuidade dos poderes, como indicam as pesquisas: a provável reeleição do presidente e de vários governadores e só pequenas mudanças na proporção dos partidos no Senado e na Câmara. Ou seja, mudarão as pessoas, mas os prováveis futuros ocupantes dos cargos não farão muita diferença em relação aos atuais. No entanto, estão em jogo pelo menos dois projetos de grande interesse para os excluídos e excluídas do banquete do mercado globalizado: o avanço da solidariedade latino-americana e o projeto brasileiro de construção da Nação. Não é por acaso que, sentindo-se ameaçadas por esses processos de mudanças estruturais, as forças conservadoras estejam usando todos os meios para esvaziar o conteúdo político destas eleições e fustigando Lula e o PT para debilitá-los ao máximo(1).
Embora em análises anteriores já tenhamos tratado o que significa o processo de construção da Nação Brasileira, convém fazermos aqui uma nova síntese que incorpore uma visão mais atual tanto dos seus traços mais relevantes, quanto dos Movimentos Sociais que o conduzem.
O processo de construção da Nação
Mais que um projeto idealizado e acabado, trata-se de colocar em marcha um processo de elaboração e implementação de um projeto capaz de superar o antigo projeto colonial escravista, em execução desde o século 16 e que ainda hoje dá aos modernos herdeiros da casa-grande o controle da terra, dos capitais, do poder político e da cultura oficial, desde que nunca contrariem os interesses da metrópole - que deixou de ser Portugal para ser os EUA e as grandes empresas transnacionais, principalmente as financeiras e comerciais. A desigualdade estrutural entre a elite privilegiada e uma enorme massa despossuída, oriunda das senzalas (hoje nas favelas e periferias urbanas), é como uma fratura social – a solidariedade nacional só é efetiva em eventos esportivos mundiais – que impede a existência de um povo de cidadãos e cidadãs igualmente sujeitos de direitos e deveres.
Para se superar essa fratura e construir-se verdadeiramente uma Nação, vem sendo elaborado um projeto de Desenvolvimento Nacional. Sua formulação inicial, na primeira metade do século 20, é fruto do trabalho de intelectuais que buscavam a democratização do País com a redução das desigualdades sociais e regionais, a eliminação da fome e do analfabetismo, e a soberania nacional. O golpe militar de 1964 abortou aquele movimento, preservando apenas sua dimensão desenvolvimentista. As sementes, contudo, estavam num chão fértil e criaram raízes na sociedade, por meio das Comunidades Eclesiais de Base, Associações de Moradores, núcleos de movimentos sindicais, variados Movimentos Sociais e nas organizações que mais tarde adotaram a sigla ONGs. Ali se deu a kenosis social do projeto elaborado por grandes pensadores nacionais, enraizando-se nas camadas populares que a partir de então se tornam suas principais propulsoras.
Esse projeto se dá em sintonia com o de outros povos latino-americanos, que - apesar dos esforços em contrário dos EUA – buscam a integração econômica e cultural apoiada numa estratégia de longo prazo para o controle dos recursos energéticos e não apenas interesses comerciais imediatos. O entendimento entre Chávez, Kirchner, Morales e Lula forma o núcleo desse plano de integração regional, do qual o Chile de M. Bachelet e o Uruguai de T. Vásquez - e talvez outros países - pouco a pouco começam a participar.
Os Movimentos Sociais
As origens mais remotas dos atuais movimentos de construção nacional podem ser encontradas nas revoltas contra o colonialismo e o escravismo, mas é no século 20 que emergem com força no cenário nacional os Movimentos Sociais. Podem-se distinguir quatro etapas nesse processo: (i) nas décadas de 1940 e 50, o movimento popular vem embutido na aliança populista de Vargas; (ii) nas décadas de 1960 a 80, consolidam-se os movimentos com reivindicações contra a carestia, pela Reforma Agrária, por melhores condições de infra-estrutura, melhores salários e condições de trabalho, e em defesa dos Direitos Humanos. Esse florescimento recebe o apoio da Igreja Católica e outras Igrejas cristãs, aliadas na reação da sociedade contra a ditadura militar; (iii) na década de 1990 os movimentos sociais atravessam a crise imposta pelo modelo neoliberal do Estado mínimo, que os obriga a se prestarem a substituir órgãos governamentais em funções assistenciais, esvaziando-os em sua capacidade política de reivindicarem direitos de cidadania; e (iv) após a eleição presidencial de 2002, retomam a iniciativa sócio-política da construção nacional, embora o respaldo esperado do governo Lula e dos partidos aliados.
Os avanços e recuos dos dois últimos momentos (de 1990 até hoje) merecem ser examinados mais de perto. O impulso adquirido na luta contra a ditadura militar resultou nas conquistas inscritas na Constituição de 1988 que, apesar de suas ambigüidades, alicerçou a cidadania nacional conforme o anseio democrático de universalização dos Direitos Sociais(2). O governo Itamar procurou efetivar aqueles preceitos, mas Collor e FHC imprimiram outro rumo político ao País, conforme o ideário neoliberal. Aquele período despolitizou os conflitos referentes à ampliação da cidadania, substituindo a noção de política pelas noções de colaboração, parceria, ou civismo. A reação dos movimentos sociais contra o esvaziamento do Estado fez reverter o projeto do Estado-mínimo com suas privatizações e levou à eleição de Lula. Nesses últimos anos, sua relação com governo Lula e os partidos que formam sua base de apoio tem sido marcada pelas tensões. É verdade que encontraram no governo Lula um interlocutor que respeita as diferenças, mas, por sua fragilidade no enfrentamento com os “donos do poder”, demora em atender suas reivindicações, ainda que tenham todo respaldo legal(3).
Sendo hoje os principais portadores do projeto de construção nacional a partir da efetiva extensão da cidadania a toda a população brasileira, os Movimentos Sociais vêm buscando formas de expressão capazes de envolver também as grandes massas na perspectiva de um Projeto de Nação para o Brasil, pois só assim terão força bastante para dobrar as oligarquias e seu o projeto conservador. Nesse contexto, é imprescindível a mediação do campo político, pois ali se pode inverter a “ordem” de uma sociedade regida pelo mercado e que prioriza o capital, e construir um projeto de sociedade onde o povo é sujeito político da sua história. Para um novo projeto de sociedade, é necessário um conduto político adequado, mas aí reside hoje a questão do “Lulismo”.
O conduto político partidário e o risco do “Lulismo”
Nosso sistema constitucional estabelece o partido político como conduto normal para o exercício do poder da sociedade sobre o Estado. É por meio dele que um setor da sociedade torna-se capaz de influir nos rumos do governo e dar as diretrizes das políticas econômica, social, externa, de segurança, energética e outras. Foi justamente por não se sentirem bem representado pelos partidos políticos existentes, que muitos movimentos sociais, sindicais, pastorais e intelectuais se uniram para criar seu próprio partido, o PT. Sua diferença em relação aos outros estava não só em seu programa de cunho democrático e socialista, mas na sua ligação em mão-dupla com os movimentos sociais: diferentemente dos partidos de esquerda de origem leninista ou trotskista, o PT não via os movimentos sociais como “correias de transmissão” do partido, mas entendia que ambos visavam os mesmos objetivos atuando em campos distintos: o partido na esfera do Estado, e os movimentos na esfera da sociedade.
Assim, o PT tornou-se parte fundamental do processo de democratização do Brasil, trazendo os pobres à vida política ativa e valorizando as bases populares. Seu papel na construção de um projeto de cidadania para todos, ficou evidente no processo constituinte de 1988, quando o PT aglutinou o campo democrático em torno a medidas de resgate da dívida social e de construção de uma autêntica nação brasileira, capaz de incluir na sua Cidadania as diversas nações indígenas, em vez de dissolvê-las na massa popular. Esse novo modelo de sociedade brasileira, que exige um conjunto de virtudes éticas e civis que embasem o ethos de uma sociedade solidária, deixou de ser um sonho impossível para tornar-se um projeto que – a duras penas – pode realizar-se, malgrado a ferrenha oposição dos antigos “donos do poder”.
O PT atravessou, com mais acertos do que erros, diferentes experiências de poder legislativo e executivo de âmbito municipal e estadual, mas ao enfrentar a experiência do Palácio do Planalto, está correndo o risco de perder sua identidade como expressão política dos Movimentos Sociais. Não tanto por ter entrado no jogo clientelista corruptor e por ter caído nas tentações do poder, mas sim de ter permitido o enfraquecimento de seu vínculo orgânico com os Movimentos Sociais e deixado de ser o espaço no qual os setores historicamente marginalizados conseguiam ter vez e se fazerem ouvir. Ao tornar-se partido do governo o PT adotou também o pragmatismo político – agora chamado de “governabilidade” – que coloca a estabilidade do governo acima dos interesses populares.
Cabe aqui uma apreciação sobre o recente escândalo da compra do dossiê sobre o envolvimento de J. Serra com os “sanguessugas”. Dada a incerteza quanto às informações, reproduzimos dois trechos do artigo de Mauro Santayana, publicado em 21/09/2006.(4)
“O episódio do dossiê é gravíssimo, e não adianta escondê-lo. Tive o cuidado de não escrever com a poeira nos olhos, esperando que as coisas começassem a fazer algum sentido. Mesmo assim, os fatos ainda continuam nebulosos. Várias são as hipóteses, mas, enquanto a Polícia Federal não descobrir exatamente a origem do dinheiro, todas elas necessitam de mais provas e menos indícios. O fato real é que, seja por terem caído em uma arapuca, ou por dolo real, se encontram envolvidos no episódio homens do PT. Do PT paulista, bem se entenda. O núcleo sindicalista do partido – envolvido no episódio pelas relações políticas e familiares de seus protagonistas – pensa com a estreiteza dos comitês de fábrica.”
“De qualquer forma é estranho que a grande imprensa se dedique a comprometer o presidente da República no episódio e se esqueça de averiguar se as denúncias contra os tucanos têm ou não têm consistência. É possível que as fotos sejam de atos públicos normais. Comprar uma coleção de fotografias, que podem ser obtidas em qualquer banco de imagens, como dossiê de corrupção, é rematada tolice. Mas que o processo de superfaturamento de ambulâncias remonta a um passado tucano, disso parece não haver dúvidas. Sendo antigo o esquema dos sanguessugas, é preciso investigar como começou e quais foram seus criadores. A Polícia Federal, que tem agido com independência republicana, naturalmente seguirá o caminho da meada e chegará ao fuso que a fiou.”
Houve, com certeza, abuso de poder entre dirigentes do PT que, julgando-se muito espertos, caíram num buraco arrastando consigo a imagem do seu Partido e de seus candidatos. Mas, independentemente desses erros, o PT deixa um vazio em sua representação na esfera do Estado na medida em que se distancia dos Movimentos Sociais. Em seu lugar, cresceu a figura de Lula como uma liderança pessoal, capaz de atender os anseios da grande massa popular por uma ligação direta. O resultado é que sua candidatura cresceu enormemente nos setores menos politizados do eleitorado, mas não empolga os setores organizados da sociedade e nem dá mostras de carrear votos para o PT, na medida em que deixa em segundo plano sua imagem de tradição de lutas. É o que vem sendo chamado de “Lulismo” (5).
O “Lulismo” vai contra a inspiração fundamental do PT e enfraquece sobremaneira os Movimentos Sociais, que perdem o conduto político-partidário que tanto lhes custou construir. Se não for corrigida essa tendência caudilhista de Lula, os Movimentos Sociais perderão definitivamente seu conduto preferencial para a ação na esfera do Estado e estarão colocados diante de um dilema: ou buscar um refúgio em outros partidos de esquerda – seja numa coligação de pequenas correntes, seja no PSOL, que até agora é pouco mais do que uma promessa de fidelidade às causas populares -, ou refundar, sobre novas bases, um partido que os represente, tomando como lição a experiência do PT. Tanto uma quanto a outra representam um desgastante esforço político, que desviariam energias voltadas para atividades-fins dos Movimentos para atividades-meio. Daí as tensas relações entre os Movimentos Sociais e a candidatura Lula.
Os Movimentos e Lula
Tudo indica que Lula será reeleito, mas com menos força política do que em 2002. Há quatro anos, ele tinha consigo um Partido forte e coeso mais o apoio irrestrito dos setores sociais organizados em Movimentos. Ele usou aquela força política para sair da crise financeira que então eclodia. Agora ele provavelmente terá maior votação, mas dificilmente o PT, o PRB e o PCdoB terão maior número de cadeiras no Congresso. Ora, a força eleitoral se esgota no momento em que terminam as eleições e, para governar é preciso ter o apoio de partidos políticos e da sociedade organizada. Nesse panorama, desenham-se hoje dois cenários.
O primeiro, parte da hipótese que os setores modernos da oligarquia oferecerão a Lula o apoio necessário, na forma de um “entendimento nacional” de molde conservador(6). Sua tática é o de mantê-lo acuado pela mídia – as atuais denúncias sobre a compra do dossiê contra Serra são mais um passo nessa estratégia de enfraquecimento de Lula e do PT – para depois assegurarem a governabilidade em troca da manutenção da política econômica e dos privilégios do agronegócio, que é o que de fato lhes interessa, enquanto Lula poderia prosseguir com o “Fome Zero” e outras políticas sociais. Os atores políticos desse “entendimento” seriam recompensados por ministérios, postos no segundo e terceiro escalões – conforme á praxe clientelista – e já iniciariam o ano de 2007 mirando nas eleições de 2010.
O segundo cenário é o que vê o segundo mandato de Lula como oportunidade para democratizar a sociedade brasileira, operando mudanças também nas suas bases econômicas e no seu sistema de poder. É evidente que isso não depende apenas do Presidente da República, mas sim do apoio que ele tiver na sociedade (pois pouco se poderá esperar do futuro Congresso) para enfrentar os “donos do poder”. Este é o cenário desejado pelos Movimentos Sociais, que mais apoiaram do que criticaram o primeiro governo Lula(7). Resta saber quais serão as condições objetivas para a realização desse cenário. Não se trata apenas do já mencionado apoio político, mas também da conjuntura econômica. Nos três últimos anos, o grande crescimento do PIB mundial favoreceu as exportações brasileiras, mas não evitou que o PIB brasileiro fosse medíocre. Como esperar melhor desempenho da economia brasileira, numa conjuntura mundial provavelmente desfavorável?
Os movimentos sociais terão papel decisivo nos próximos quatro anos. Por isso, reproduzimos aqui trechos da análise de conjuntura apresentada na última reunião da 4ª Semana Social Brasileira, que caracteriza o governo Lula como “híbrido”, porque “possui uma matriz social-democrata, corrente política que se adaptou ao capitalismo neoliberal desde os anos 80, mas seu histórico, sua trajetória na sociedade brasileira, seus quadros e sua base social exigiram políticas diferentes daquelas da social-democracia”. Assim, “o governo Lula se notabilizou mais pelo que não fez, do que pelo que fez da agenda conservadora neoliberal: não continuou a construção da ALCA; não deu continuidade às privatizações apressadas e radicais; não deu sequência à redução do Estado.
“Este governo híbrido deixa flancos abertos às críticas da direita, como às críticas da esquerda. Estas críticas estão tendo grande visibilidade na disputa eleitoral, as de direita com o apoio da grande mídia; as de esquerda com o apoio de uma parcela dos movimentos populares.”
“Os setores hegemônicos do capital financeiro e do neoliberalismo pretendem retomar a plenitude deste modelo para o Brasil. Atualmente, o neoliberalismo tem se aprofundado no mundo, inclusive nos EUA, com as seguintes características: perda acelerada de direitos individuais (em função também da propalada luta antiterrorista); perda de direitos coletivos e aplicação de políticas neoliberais em áreas antes inimagináveis, por exemplo, na condução da guerra contra o Iraque(8). Se o governo Lula foi um relativo intervalo nesta pressa radical, a eleição de Geraldo Alckmin significará sua retomada, inclusive porque sua vitória será vista como uma derrota dos setores populares, uma derrota de ‘toda essa raça por 30 anos’, no dizer do senador do PFL, Jorge Bornhausen.”
A análise conclui afirmando que, “do ponto de vista estratégico, o campo popular precisa:
• avaliar a experiência do governo Lula, identificando onde acumulamos política, econômica e socialmente, assim como onde perdemos em todas essas esferas;
• fortalecer processos autônomos de formulação política; de articulação; de unidade e de construção coletivas: a Assembléia Popular; a Campanha contra a ALCA, a Dívida e a Militarização; a Via Campesina; os diversos fóruns ( Fórum da Reforma Agrária, Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas), a Semana Social Brasileira etc;
• planejar uma ‘pressão e acompanhamento popular sistemáticos’, já durante o início do próximo governo, apresentando nossas propostas para o Estado, governo e políticas públicas; pressionando com eficiência e eficácia o futuro governo; buscando ganhar a batalha da opinião pública e buscando construir uma nova hegemonia, de cunho democrático e popular, sintonizada e articulada com os processos populares mais avançados que estão ocorrendo atualmente na América Latina;
• explorar mais as possibilidades de constituirmos um amplo tecido social, baseado numa aliança de organizações, movimentos, pastorais sociais, frentes e entidades, que tenha solidariedade interna; consistência política; base social; unidade estratégica; multiplicidade de quadros e dirigentes; capilaridade social; agenda comum e solidária etc.
Todas essas iniciativas são importantes para irmos constituindo uma ‘rede social’, mais forte do que qualquer governo de turno, na defesa e no aprofundamento das conquistas populares das últimas décadas.”
Enfim, o Brasil está diante de uma decisão histórica: ou caminha para efetivar a Democracia transferindo riqueza e renda dos mais ricos para os pobres (isso implica não só prioridade às políticas sociais, mas também reforma agrária e reforma tributária), ou a eleição presidencial de 2010 terá como marca o desespero dos pobres: se Lula não der conta de atender seus anseios por equidade e justiça social, quem o fará? Terá ainda credibilidade o projeto de se construir uma Nação justa, pacífica, ecologicamente harmoniosa, dentro dos parâmetros da Democracia? Este é o desafio da realidade atual a todos os que anunciamos um outro mundo possível.
Uma cultura de corrupção?
Páginas inteiras dos jornais relatam “novelas” de corrupção, como se fosse pão quotidiano da vida do povo brasileiro. Escândalos se seguem com o seu quinhão de acusações atingindo quem exerce funções públicas. Fala-se de inquéritos isentos e de punições rigorosas, mas a sociedade desconfia... A mídia foca os corruptos e intermediários da corrupção, mas omite as práticas de corrupção ativa de atores econômicos e financeiros protegidos pelos direitos da privacidade, como se houvesse corruptos sem corruptores. Em outras palavras, reina uma cultura da corrupção, como outra face da cultura da impunidade já denunciada pela CNBB.
No contexto eleitoral, a discussão sobre a corrupção suscita uma pergunta técnico-política sobre a elegibilidade de candidatos processados mas ainda não julgados em última instância. Além disso, o próprio sistema eleitoral favorece o de clientelismo e a corrupção, apesar dos esforços da sociedade e da justiça eleitoral para aplicação da Lei 9840. Nas campanhas eleitorais a mentira tornou-se uma prática habitual, já que ninguém confia em promessa de políticos.
Mais grave é o fato de que este não é um problema apenas brasileiro. A sociedade latino-americana convive com a corrupção, que só é considerada como problema dos mais importantes em nossos países por 10 % da população. Tudo se passa como se a corrupção fosse normal no exercício do serviço público.
No entanto, a corrupção corrói o tecido social, destruindo o senso do bem-comum na sociedade e desmoralizando a vida pública até o ponto de marginalizar e eliminar os que denunciam suas mazelas. A separação entre ética e religião, de um lado, política e economia, do outro, pesa sobre a sociedade e explica em parte o fato de que o Brasil, um dos maiores países católicos, está entre os que sofrem mais malefícios da corrupção. Escapam, de fato, ao juízo ético as decisões no campo econômico e político, pois estas obedecem à lógica do lucro e do poder (cf. documentos da CNBB 42, nº 98).
A sociedade brasileira foi marcada pela desigualdade geradora de um dualismo ético. A elite dominante explora o trabalho, usa de violência, ostenta luxo, despreza as culturas populares, porque receberam como herança, o ethos da Casa Grande com sua arrogância do poder. Este ethos atribui aos poderosos privilégios e mordomias, contra os quais os pobres nada podem. Assim, a corrupção se institucionaliza na aceitação da sonegação de impostos, do trabalho informal, das fraudes contra a Previdência Social, e tantas práticas de “engenharia tributária” que burlam os preceitos da Justiça sem transgredir as normas legais(9)... Elas erodem a confiança nas instituições públicas e despertam nos setores populares uma indignação que, se não for satisfeita, poderá desembocar na violência da revolta contra toda e qualquer instituição. A alternativa consiste na autêntica república e na verdadeira democracia, colocando o bem comum do povo acima dos interesses particulares, inclusive de famílias, partidos, igrejas, empresas, ONGs e corporações.
Notícias do Congresso Nacional
O Parlamento está com trabalho muito limitado nestes meses que precedem as eleições. Só na primeira semana de agosto e de setembro houve votação em plenário. A última sessão de votação da Câmara limpou a pauta das Medidas Provisórias e chegou a votar alguns projetos de interesse imediato. Estão funcionando apenas os Conselhos de Ética, da Câmara e do Senado, embora de forma precária.
Fim do voto secreto
O plenário da Câmara aprovou, no início de setembro, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que põe fim ao voto secreto em todas as sessões no Congresso. A medida vale para todas as votações: as eleições da Mesa Diretora da Câmara e do Senado, derrubada de veto presidencial, cassação de mandato e indicação de embaixadores. Se o texto for aprovado tal como está, os “sanguessugas” já poderão ser julgados sob as novas regras, isto é, com voto aberto no plenário. Ela ainda deve ser votada no Senado, que seguramente não aceitará o texto tal como está. Entre as questões a serem aprovadas por voto aberto, estão competências exclusivas do Senado, como a aprovação de nomes indicados pelo presidente da República, e os deputados não podem extinguir prerrogativas de senadores. Assim sendo, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado pôs em votação uma PEC que já tramitava por lá, também propondo a extinção do voto secreto em processos de cassação de mandatos. Quando a PEC da Câmara chegar ao Senado, será juntada a esta e imediatamente levada a plenário. Os senadores aprovam esta parte das emendas, promulgam, e ela entra imediatamente em vigor. A Eleição das Mesas, apreciação dos vetos do Executivo e aprovação de nomes indicados pelo presidente da República, temas mais polêmicos, poderão ser discutidos com mais calma. Tudo correndo bem, os “sanguessugas” já serão julgados pelo voto aberto.
Novamente salva a Lei 9.840
O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), atualmente composto por 30 organizações da sociedade civil brasileira, denunciou, no dia 13 de setembro, a tendência do Congresso Nacional de acolher o relatório do Deputado João Almeida (PSDB/BA), que reduzia para apenas 5 dias o prazo disponível para a abertura de representações contra atos de compra de votos e uso eleitoral da máquina administrativa, com base na Lei nº 9.840/99.
A imprensa deu intensa repercussão à denúncia, reconhecendo que a medida, se adotada pelo Parlamento, poderia de fato implicar em aumento da impunidade.
Felizmente, já no dia 14/09, após diálogo com o Deputado relator, encontrou-se solução para o impasse. O deputado assumiu o compromisso de retirar imediatamente de tramitação o projeto para revisão do parecer, reconhecendo que o prazo de cinco dias proposto não se mostra adequado, conforme o entendimento vigente no próprio Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Já no dia 15/09 o relatório foi retirado pelo parlamentar. No dia 3 de outubro será realizada audiência na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC), com participação de representantes do MCCE, para definir por consenso o prazo adequado, já que a falta de fixação em lei de prazo para o ajuizamento de representações tem provocado decisões divergentes nos tribunais.
É a segunda vez que é salva a Lei 9840/99. A primeira foi em 2004, quando o Senador César Borges tentou alterá-la para que as decisões de cassação só fossem executadas após o esgotamento de todos os recursos. Naquela oportunidade, também após muita luta, o projeto foi arquivado.
Projeto que regulamenta a profissão de Capelão cristão
Esse Projeto de Lei já assinalado em análises anteriores, é de autoria do deputado Ademir Camilo-PDT-MG. Constatamos várias ambigüidades no projeto, entre as quais a suposição de um Conselho Federal de Capelania Cristã do Brasil (CFCB), do qual ficariam dependentes muitas das decisões. Acontece que este Conselho não existe.
Para analisar todas estas questões, fizemos uma reunião com a presença do secretário geral da CNBB, de capelães militares, de hospitais e de presídios onde levantamos muitas questões ao projeto inclusive de cunho constitucional. Estes elementos foram apresentados pelo próprio grupo ao relator do projeto, deputado Walter Barelli, que os acolheu para estudo, dizendo que faria o possível para evitar que ele fosse adiante; ou, se não o conseguisse, buscaria nossa assessoria para encaminhá-lo.
O impacto da cláusula de barreira
A eleição deste ano para a Câmara dos Deputados terá um impacto inédito no cenário político brasileiro. Pela primeira vez entrará em vigor a cláusula de barreira – dispositivo criado por lei em 1995 com a finalidade de garantir que os partidos que disputam as eleições tenham um mínimo de representatividade. A nova regra estabelece, entre outras coisas, que: 1) só terão direito a representação na Câmara os partidos que conquistarem, pelo menos, 5% do total de votos válidos na eleição para deputado federal – hoje, esse índice é de 2% ; e 2) as legendas terão de eleger representantes em pelo menos nove estados, com um mínimo de 2% de votos em cada estado.
Os partidos que não conseguirem cumprir essas exigências perderão o acesso a dois instrumentos fundamentais para a sua sobrevivência: tempo na propaganda gratuita de rádio e TV e dinheiro do fundo partidário, recurso que sai dos cofres públicos.
- Pedro A. Ribeiro de Oliveira, Membro da Equipe de ISER-Assessoria. Contribuíram para esta análise Pe. Ernanne Pinheiro, Pe. Thierry Linard, Bernard Lestienne SJ e Ir. Delci Franzen.
Notas:
(1) A expressão usada por um senador do PFL é “sangrá-los em praça pública”.
(2) Inscrevem-se na Constituição de 1988 direitos como a demarcação das terras indígenas e de quilombos, o controle social de políticas públicas, a função social da propriedade e a universalização da assistência e previdência social. Aí reside o cerne do atual debate entre focalização e universalização dos serviços de saúde, previdência, educação, e outros da área social, pois a orientação neoliberal atribui ao mercado o atendimento “normal” das necessidades sociais, enquanto ao Estado caberia apenas o atendimento aos mais pobres.
(3) Basta lembrar que os índices de produtividade rural, que possibilitam a desapropriação para fins de reforma agrária, ainda se referem aos dados de 1976. Os índices já foram atualizados pelo Ministério da Agricultura, mas a portaria ministerial não foi assinada até hoje. Tampouco os “arrozeiros” que ocupam a Terra Indígena de Raposa-Sera do Sol foram desalojados, como prevê o decreto de homologação.
(4) Cfr. http://cartamaior.uol.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3319
(5) O provável cenário de Lula reeleito em primeiro turno e um congresso medíocre e desacreditado, poderá resultar num arriscado caudilhismo lulista ou num deslavado clientelismo.
(6) As alianças do PT nos Estados sinalizam que Lula não se furtaria a um entendimento – fala-se até na criação de um novo Partido, que formaria a base de sustentação do governo e garantiria sua sucessão em 2010.
(7) Podemos lembrar medidas como o fim do processo de estatizações, da ALCA e da base dos EUA em Alcântara, a política externa orientada pela soberania e solidariedade com os povos pobres, o PRONAF, mas também as críticas à subserviência da política econômica ao capital financeiro, à lentidão da Reforma Agrária, à timidez da política indigenista, à regulamentação dos transgênicos, ao descaso com o desmatamento da Amazônia.
(8) Foram privatizadas as investigações, prisões, segurança dos edifícios, alimentação, uniformes e contratação dos soldados, agora mercenários, transformando-se a guerra num lucrativo empreendimento empresarial.
(9) Basta lembrar o “Refis”, que prolonga enormemente e a juros baixos as dívidas de pessoas jurídicas com a Previdência Social e a Receita Federal, favorecendo os maus pagadores.
https://www.alainet.org/pt/active/13579?language=es
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