Morrer jovem

18/09/2006
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Que mundo é esse em que a juventude, eterna e inseparável cúmplice da vida, resolve escolher a morte em tenra idade? Que planeta construímos para as novas gerações se os jovens não querem mais viver e escolhem a morte quando têm toda uma vida pela frente? O Canadá era um país que desmentia as estatísticas da violência do hemisfério norte. Quem viu o filme “Tiros em Columbine” lembra-se bem da cara espantada de Michael Moore quando, ao perguntar ao policial canadense quantas pessoas haviam morrido violentamente em sua cidade naquele ano, recebeu a resposta: “Um!” E ontem o Anjo da Morte passou por Montreal, pelo Dawson College, na pessoa de Kimveer Gil, de 25 anos. O atirador que matou uma jovem estudante e feriu gravemente outras 19 pessoas pertencia ao movimento gótico. Trajava preto, usava corte de cabelo estilo moicano, levava piercings de diversos feitios e tamanhos e portava uma enorme arma. Em um blog onde mantinha um diário, Gil – que se autodenominava Trench – referia-se a si mesmo como o Anjo da morte e exibia fotos em que aparecia sempre com uma arma e dizeres tão ameaçadores quanto: “Pronto para a ação” e “A raiva e o ódio fervem dentro de mim”. Em um site de cultura gótica, Gil declarava que seu lema era: “Viva rápido, morra jovem e deixe um corpo mutilado.” Matar e morrer: nisso consistia, segundo ele, seu mais profundo desejo e sua meta. E no coração de Montreal, em pleno dia, poucos minutos antes da saída dos alunos do colégio, realizou seu desejo: matou e morreu. Os que presenciaram a cena dizem que tinha um semblante gélido e um rosto impassível. Não demonstrava nenhuma emoção ou sentimento mais visível aflorando em seus olhos de gelo. Apenas mirou e atirou nas pessoas que passavam a seu lado. Gil morreu em companhia daquilo que dizia mais amar: as armas. E eliminando aquilo que dizia mais odiar: as pessoas. Morreu jovem como queria, e deixou um rastro de sangue e morte. Buscando desesperadamente a vida, ou melhor, um sentido para ela, atirou-se nos braços da morte como um apaixonado. O mais profundo de nossos sentimentos é de compaixão e solidariedade às vítimas – mortos e feridos – que neste momento choram e padecem um drama. Mas fica-me no fundo do peito a sensação de que a vítima maior da tragédia de Montreal é o próprio assassino. Pois o que pode haver de pior e mais terrível do que um ser que é feito para a vida desejar a morte? Mais: o que pode haver de mais anti-vital, anti-humano, quando esses sentimentos enchem o coração de um jovem na flor de seus 25 anos? O momento é de luto pelas vítimas de Montreal. Mas é também, e não menos, de luto perplexo e atônito diante da figura fria e implacável do assassino Trench. Ele, mais que ninguém, nos interpela desde sua compulsão pelo ódio e pelo crime. Ele, mais que ninguém, nos faz bater no peito e perguntar: que mundo legamos à juventude? Que tremendo mal estar, que fruto envenenado e intragável está gerando a assim chamada sociedade do bem-estar? Que deserto construímos em torno dos jovens de maneira que seu único e mais caro desejo seja matar e morrer, sem viver, sem amar, sem gerar? Que o Deus da vida acolha em seu seio as vítimas da loucura de Gil. E que este, ainda que a contragosto, se encontre neste momento acolhido pela misericórdia infinita de seu Criador. - Maria Clara Bingemer , teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
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