Benvindo, senhor Embaixador
22/02/2000
- Opinión
Bem-vindo, senhor Anthony Stephen Harrington, novo embaixador dos Estados Unidos
no Brasil.
Seria bom que o senhor tivesse alguns antecedentes sobre o país no qual vem
representar os interesses do seu, dado que se anuncia publicamente que o senhor
não conhece o Brasil. Nem seria se teria alguma viabilidade tentar dizer-lhe
algo, dado que também se a anuncia que o senhor tampouco conhece o português,
idioma nacional.
Anuncia-se que sua credencial é a de ser advogado de grandes empresas que têm
interesses no Brasil e - episodicamente - que foi quem escolheu o cachorro
labrador do presidente de seu país. Não nos parece estranho que aquela
característica seja a que tenha levado à sua indicação - depois de três outras
tentativas de indicação, que esbarraram em vínculos de interesse eeconômico
direto das pessoas indicadas -, dado que, como reatualizou a secretária de
Estado dos EUA, o objetivo maior da política externa de seu país é "defender os
empregos dos norte-americanos". Preocupa-nos sim que, depois de mais de dois
anos sem embaixador no Brasil - revelando a pouca importância que passamos a ter
par ao seu país, justamente quando o presidente do nosso país se ufana de
relações pessoas íntimas com o seu homólogo norte-americano - esse objetivo seja
tão privilegiado. Não ficamos então na expectativa que seja possível um
intercâmbio entre as universidades públicas dos dois países, que se
intensifiquem os intercâmbios culturais - musicais, de artes plásticas,
cinematográficos -, de meios de comunicação, esportivos. Ficamos avisados que
primarão os interesses das grandes empresas norte-americanas. É melhor saber
logo de cara, deixando de lado qualquer farisaismo.
No entanto, é bom o senhor saber o que significa para um país como o Brasil as
relações com o seu país. Como vocês, nós fomos um país colonizado, isto é, que
primeiro foi colônia, antes de ser uma nação. Que a construção desta nação se
diferenciou para nós não somente dos caminhos trilhados pelos EUA, como também
dos países colonizados pela Espanha - nós falamos o português -, porque não
passamos da colônia à república, nem terminamos imediatamente com a escravidão.
Só conseguimos faze-lo no final do século passado, quando os EUA já se erigiam
em potência imperial, a partir da guerra hispano-americano.
Os efeitos disso se farão sentir sobre o Brasil ao longo do século XX, quando se
consolida a hegemonia norte-americana sobre o continente. Nossa
industrialização, em particular depois da segunda guerra mundial, é feita nos
moldes norte-americanos - escrevo norte-americanos para diferenciar de
americanos que, o senhor pode perceber, incluiria a todo o continente, sendo
portanto uma expressão indevidamente açambarcada pelo seu país -, em sua versão
de capitalismo - que também o somos - periférico e dependente.
Desde então seu país tem sido, conscientemente ou não, um protagonista
fundamental da nossa história. (Caso tenha algum tempo para ler a respeito, lhe
recomendo especialmente "This will be done", dos jornalistas norte-americanos
Gerard Colby e Charlotte Dennett, publicado aqui pela Ed. Record com o título
"Seja feita a vossa vontade - A conquista da Amazônia: Nelson Rockfeller e o
Evangelismo na Idade do Petróleo", que dá uma idéia desse protagonismo.) Basta
ler os documentos do Senado de seu país para se dar conta como o governo dos EUA
e seu antecessor aqui, Lincoln Gordon, assim como o assessor militar Wernor
Walters - que as vezes ainda vem por aqui nos dar alguns conselhos e recordar
como vocês nos teriam salvado de nossas próprias loucuras - foram agentes
essenciais no golpe militar de 1964, um movimento que assassinou a democracia
brasileira e instaurou o regime mais brutal que o país conheceu, durante mais de
duas décadas, marcando profundamente os destinos futuros do nosso país. (Essa
interferência foi tão grande, que os estudantes escreviam nas paredes, em função
das eleições presidenciais de 1965, impedidas pelo golpe, "Basta de
intermediários: Lincoln Gordon 65".)
Como um dos resultados desse peso dos EUA na política interna do Brasil, temos
hoje uma elite muito subserviente a seu país, como o senhor notará assim que
pise em nossa terra. Haverá beija mãos (similares à de um político da direita do
segundo pos-guerra, que literalmente beijou as mãos do secretário de Estado dos
EUA, em vistoria por aqui ou do primeiro ministro de relações exteriores da
ditadura militar, que identificou o Brasil com a Ford, ao dizer: "O que é bom
para os EUA é bom para o Brasil").
Se o senhor se interessar estritamente em impor os interesses das grandes
empresas de seu país, não terá maiores obstáculos por parte dessa elite -
governo federal, congressistas, grandes empresários. Ao longo dos anos noventa
os governos brasileiros não fizeram senão adequar o país às condições e
necessidades do grande capital financeiro internacional, do qual seu país é a
cabeça. (Desculpe dizer-lhe, talvez a ausência de embaixador dos EUA no Brasil
não tenha sido óbice para que isso ocorresse, esclarecendo porque seu posto
ficou vago tanto tempo, sem que isso afetasse os interesses do seu país,
zelosamente defendidos por governantes brasileiros.)
Mas se o senhor quiser romper com essa maldita tradição, que faz com que os EUA
sejam para nós não símbolo de liberdade, de justiça, de criatividade cultural,
de audácia, de solidariedade, de pluralismo, mas de prepotência, tem, antes de
tudo, que se livrar desse círculo da elite brasileira, que lhe adulará todo o
tempo, que buscará sempre vantagens privadas no lugar dos interesses do Brasil e
da grande maioria da sua população.
Atrevo-me a dizer que o senhor tem não apenas que ler a Caio Prado Jr., a Sérgio
Buarque de Holanda, a Francisco de Oliveira, a Milton Santos, a Antonio Cândido,
a Florestan Fernandes, a Celso Furtado, como tem que circular pelo Brasil, pelas
periferias de São Paulo, pela baixada fluminense, pelo nordeste, pela Amazônia,
saindo do circuito dos privilegiados em que costuma mover-se o circuito
diplomático.
Deveria - atrevo-me também - promover o intercâmbio entre a intelectualidade
crítica brasileira e a norte-americana, entre a imprensa independente dos dois
países, entre os sindicatos e os movimentos sociais, entre os artistas, os
jornalistas, os estudantes. Enfim, entre o que de mais vigoroso os nossos dois
países produziram e que espelham a alma viva dos nossos povos.
E, por último, por favor, abstenha-se de fazer pronunciamentos sobre temas
internos do nosso país, sejam econômicos, políticos ou outros quaisquer, se
deseja ter uma relação minimamente respeitosa com o nosso povo. Não é que não
mereçamos muitos reparos - nem mais nem menos que a política imperialista de seu
país. Mas, para quem pecou pela intromissão indevida e brutal na vida do país
com resultados tão funestos para nós e para a imagem dos EUA por aqui, seria
prudente calar-se sobre esses temas.
Bem-vindo, senhor embaixador.
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