Os perdedores de sempre, enfim, ganharam
- Opinión
Mais de 15 milhões de agricultores familiares produzem grande parte dos alimentos que o país consome todos os dias. Alicerçada na terra, no trabalho e na família, esta agricultura gera 8 em cada 10 ocupações na área rural e responde por 10% do PIB do Brasil. No plano nacional, 2005 marcou importantes vitórias deste segmento, com destaque para um Plano Safra de R$ 9 bilhões, o maior da história brasileira. Além das fronteiras, o maior avanço aconteceu há pouco, do outro lado do mundo, em Hong Kong, durante a VI Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC): a aprovação do fim dos subsídios à exportação. E a garantia da proteção à produção dos agricultores familiares dos países em desenvolvimento. Este passo adiante nasceu de um movimento liderado pelo Brasil, que obteve o respaldo de 110 dos 150 representantes nacionais na conferência. Pela primeira vez na história da OMC, é possível dizer que os perdedores de sempre, os países em desenvolvimento, tiveram, enfim, um resultado favorável. A decisão de suspender todas as formas de subsídio até 2013 pode parecer um progresso demasiadamente modesto. Seria desejável, é claro, que esta supressão ocorresse bem antes, como queria o Brasil. Mas, de qualquer modo, representa um triunfo. Quando os países ricos lançam mão de recursos públicos para induzir a exportação de produtos agrícolas, as conseqüências costumam ser funestas para os pequenos produtores dos países em desenvolvimento. A entrada destes excedentes no mercado internacional derruba preços, deprime a renda dos agricultores mais pobres e pode arruinar comunidades ou regiões inteiras. Esta prática, finalmente, será revogada. As nações em desenvolvimento igualmente preservaram a autonomia para determinar os mecanismos internos aptos a resguardar sua estrutura produtiva. Isto representa segurança alimentar e, também, o direito de produzir de milhões de homens e mulheres que vivem diretamente da agricultura familiar. No Brasil, são eles que movimentam a economia da maioria dos municípios, ainda basicamente rurais. A redução das tarifas dos países desenvolvidos, acompanhada da adoção, nos países em desenvolvimento, de políticas públicas de apoio aos agricultores familiares, pode propiciar um ambiente de geração de novas ocupações, trabalho e renda, abrindo caminho para um comércio internacional mais justo e equilibrado num mundo onde 800 milhões de pessoas ainda sofrem com a fome. Este novo patamar começou a ser estruturado com a constituição do G20, há dois anos em Cancún, no encontro anterior da OMC. Na presidência do bloco que reúne, além da China e da Índia, mais 18 países, o Brasil passou a participar com mais vigor das articulações políticas. Afinal, os parceiros do G20 concentram 80% da população rural do planeta. E os agricultores familiares ganharam uma defesa mais incisiva e aguerrida. Desde então, o mundo em desenvolvimento deixou de acumular derrotas nas negociações multilaterais. Em Hong Kong, a ampliação desta aliança colocou em xeque a concepção simplista de que o livre comércio serve para todos, em qualquer conjuntura, como uma espécie de panacéia universal. É imprescindível reconhecer a existência de diferentes estágios nos processos de desenvolvimento de cada país. Portanto, o espaço multilateral de debates e decisões deve levar em conta as políticas nacionais. Se Cancún barrou a continuidade de regras iníquas de comércio, Hong Kong reiterou a negativa, mas foi mais longe. Os parceiros da nova coalizão reivindicam o direito de se desenvolverem, valendo-se de suas próprias políticas, abolindo as distorções do comércio internacional e engajando-se na formação de um mercado mais equânime. Desde 2003, os temas da agricultura familiar ganharam outra e superior grandeza na escala de preocupações do governo federal, transcendendo os limites do debate doméstico para a esfera das relações internacionais. A compreensão da importância estratégica do setor motivou, também em 2005, a edição do Decreto 5.453, que assegurou o ingresso do Ministério de Desenvolvimento Agrário na Câmara de Comércio Exterior (Camex), onde se debatem os rumos do comércio com as demais nações. É um protagonismo que se reafirma em 2006. Em março, será o momento de o segmento consolidar a presença em outro foro, também planetário: a II Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (CIRADR). Será promovida pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), um organismo da ONU. Para Porto Alegre, sede da assembléia, convergirão representantes de 150 países. A opção pelo Brasil como sede da II Conferência não é uma escolha aleatória. Reflete o esforço do governo brasileiro e o reconhecimento, por parte da FAO, das políticas públicas de apoio à pequena propriedade rural aplicadas no país. Um sinal de que o caminho percorrido é o correto: apostar na força transformadora da agricultura familiar. Na sua capacidade de produzir alimentos, emprego e renda, ativar o desenvolvimento rural, enfrentar a fome e a pobreza e construir um horizonte de prosperidade para o Brasil. - Miguel Rossetto é ministro do Desenvolvimento Agrário
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