Lula, o bispo e o fórum
13/01/2006
- Opinión
Dom Luiz Cappio, o bispo de Barra (BA) que fez aquela greve de fome em Cabrobó, às margens do São Francisco, contra a transposição do rio, teve uma audiência com o presidente Lula em meados de dezembro. Por insistência de dom Luiz, participei do encontro.
A conversa, no Palácio do Planalto, durou mais de duas horas. O bispo, primeiro de viva voz, depois entregando uma série de escritos, deu dez razões "por que somos contrários ao projeto de transposição do rio São Francisco". Do lado do governo, da boca do presidente Lula, veio esta declaração: "Não posso tirar a transposição".
Das anotações que fiz no evento consta o registro de uma insistente pergunta de Lula ao bispo, a mesma feita em quatro momentos daquele diálogo: "Qual é o seu fórum?". Dom Luiz, com a sabedoria do pastor e com a humildade de Francisco de Assis, preferiu guardar silêncio. Não respondeu à pergunta.
Eu sou testemunha do que antecedeu a Cabrobó, do que aconteceu lá e do que eclodiu no sertão depois daquela greve de fome. É por isso que tomo a liberdade de responder a essa pergunta de Lula, que acho muito pertinente e plausível.
Uma observação preliminar. Naquela sala da Presidência da República, dom Luiz falou com a energia e a virulência dos profetas. Isso ensejou no presidente uma viva reação e, no ministro Ciro Gomes, um desabafo pouco sereno. A verdade é que, em torno daquela mesa do presidente, não deve ser muito comum comparecer gente, como esse bispo, falando face a face, com franqueza, sem bajulação hipócrita, mas em cujo íntimo, por todos nós conhecido, mantém a mais sincera admiração, a mais profunda estima e a maior expectativa pelo nosso presidente.
E qual é o fórum? O fórum ao qual dom Luiz está ligado não é nenhum poder do tipo midiático, capaz de estabelecer uma correlação de forças com o poder que está aí. E, respondendo a indagações precisas de Lula, diria que o fórum não são as assinaturas aos milhões, pois delas haveria de fato dos dois lados. Não são os movimentos sociais, pelas mesmas razões. Nem são os bispos da CNBB, infelizmente divididos nesta questão. Não são tampouco os técnicos posicionados em trincheiras opostas.
Esse fórum é o povo pobre do semi-árido. É a gente pela qual o frei resolveu dedicar a sua vida desde a juventude. Ainda na condição de frade, caminhou a pé por toda a bacia do São Francisco e penetrou no semi-árido setentrional. Ia visitando toda aquela gente, família por família, olhando sua difícil situação, escutando seus clamores. Ia confortando-os e, sobretudo, infundindo-lhes um novo ânimo, uma nova esperança a partir deles mesmos, de sua autocompreensão e auto-estima, não mais como objetos da manipulação dos políticos, mas como dignos sujeitos, autores e destinatários de sua própria história.
São os índios, os negros quilombolas, os camponeses, os homens e as mulheres do sertão em busca da terra e das águas de viver, trabalhar e conviver. São os que não têm nem voz nem vez, abandonados, jamais ouvidos pelas autoridades. São as vítimas da violência dos grandes, os despejados pelo latifúndio e pelo agronegócio, os atingidos e deportados pelos grandes projetos, muitas vezes com a conivência do poder público.
Essa caminhada do dom frei Luiz Cappio com os pobres do semi-árido já tem cerca de 20 anos. Ora, tudo parecia muito calmo e normal, quando, de repente, a paisagem do sertão mudou. A partir do momento em que esses sertanejos viram o bispo colocar radicalmente a sua própria vida pela vida deles e pela vida do rio São Francisco, acorreram pressurosos ao santuário de Cabrobó. No dia 4 de outubro, já eram cerca de 3.000 em torno da minúscula capela de são Sebastião. Passando em fila diante do frei peregrino, iam abraçá-lo e receber sua bênção. E outros sertanejos se juntaram a ele no mesmo gesto de greve de fome.
Na verdade, esse fórum dos pobres, hoje, não depende mais do bispo, nem este pretende ser seu procurador. Dom Luiz foi sua referência inicial e simbólica, como um Gandhi do sertão, ou melhor, como um novo Padre Cícero, o servidor de um povo não laico, mas religioso e político.
Os que se levantaram a partir desse gesto estão caminhando com as próprias pernas em busca de algo mais que terra. Estão em busca de uma radical transformação. Essa gente começou a se mobilizar lúcida e corajosamente em assembléias. Primeiro ali mesmo, em Cabrobó, no dia 4 de outubro. Depois, em Juazeiro da Bahia, em Bom Jesus da Lapa, em Brasília, e assim por diante, com uma nutrida agenda, que envolve outras organizações de apoio, mas com seu inconfundível protagonismo.
Este fórum ultrapassa o São Francisco, vai muito além dos semi-áridos meridional e setentrional. Na realidade, ele tem rosto de Brasil, tem dimensão de América Latina. Este povo, com efeito, não surgiu agora. Ele tem uma longa e sofrida história de séculos de lutas e de revoluções, de conquistas, de revezes e de resistência. Este povo é o verdadeiro inspirador da opção solidária e patriótica de dom Luiz Cappio, bem como da opção de outros muitos e muitos mais. Este é o povo do futuro! É este o fórum!
- Dom Tomás Balduino, 84, mestre em teologia e pós-graduado em antropologia e lingüística, bispo emérito da Diocese de Goiás, é o presidente da CPT (Comissão Pastoral da Terra), órgão vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
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