Mercosul, sob fogo cerrado
27/04/2014
- Opinión
O Mercosul foi posto em questão nas últimas semanas. A demora da Argentina em aproximar-se da oferta de liberalização de 90% do comércio do bloco com a União Europeia levou alguns políticos e empresários a defenderem transformar a união aduaneira em uma área de livre comércio. Isso significaria a abolição da Tarifa Externa Comum (TEC) e a liberdade para que cada membro realize acordos comerciais isoladamente, eliminando preferências dentro do bloco.
A proposta significaria retomar o projeto do governo Collor, que via o Mercosul apenas como o estágio inicial de um programa de liberalização mais amplo. Vários dos defensores atuais do fim do Mercosul apoiaram a adesão à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e a aceitação das exigências dos países desenvolvidos, na OMC ou em acordos bilaterais, para a constituição de normas liberais que constrangessem a ação estatal em programas de compras governamentais, subsídios setoriais, políticas industriais, controle de capitais e proteção comercial. Esses tratados internacionais blindariam institucionalmente o neoliberalismo contra governos que insistissem em influenciar a alocação de recursos contra o livre mercado. No discurso liberal contra o Mercosul, a convivência do bloco com políticas desenvolvimentistas e a administração do comércio regional é vista como uma anomalia: resultado de “ideologias partidárias”, como se o neoliberalismo se identificasse não a partidos mas ao próprio interesse nacional permanente ou, pior, a leis da natureza.
A defesa incondicional da abertura comercial e da celebração de tratados liberais que normatizem as políticas de Estado recorreu ultimamente ao argumento que o tecido industrial brasileiro vem perdendo competividade por ser muito protegido da competição internacional e, por isso, não é capaz de se integrar a cadeias globais de produção. Esse argumento também não é novo, requentando a esperança que presidiu a liberalização unilateral na década de 1990: a ampliação da concorrência forçaria as empresas sobreviventes a incorporar tecnologias e eliminar “gorduras”, ganhando em eficiência e escala ao se especializarem em certos “nichos” das cadeias globais.
O argumento é anacrônico e nada aprendeu com a experiência de países asiáticos – a China é apenas o último - que se integraram virtuosamente a cadeias globais sem abdicarem de políticas industriais, tecnológicas e cambiais muito ativas. Tampouco aprendeu com a própria experiência brasileira. Na década de 1990, o resultado da abertura abrupta foi a incorporação rápida de tecnologias importadas e o corte de gastos em geração autônoma de tecnologias e capacitação própria de inovar. Desde então, a indústria brasileira tornou-se fortemente integrada às cadeias globais de fornecimento de insumos e bens de capital. Uma nova rodada de integração ocorreu depois da crise de 2008, quando o acirramento da concorrência internacional e a apreciação cambial do Real aumentaram o coeficiente importado nas cadeias de produção, sem levar, contudo, a uma elevação comparável das exportações industriais. Não há qualquer base histórica para imaginar que dobrar a aposta na abertura produzirá resultados opostos ao já verificados, tendendo sim a aprofundá-los.
A crítica liberal ao Mercosul segue afirmando que o Brasil é grande demais para o bloco e, como global player, deveria se integrar a outros blocos. O critério comercial não é o mais adequado para avaliar a importância do Mercosul, uma vez que a proximidade cria oportunidades mútuas no campo de infraestrutura de transporte, energia e comunicações, cooperação política, cultural e de segurança, e posicionamento em bloco diante de agendas contrárias aos países desenvolvidos, como em patentes, comércio agrícola e peso decisório nas organizações multilaterais. De todo modo, em seus próprios termos, o anacronismo da crítica liberal ao Mercosul está em que o bloco foi exatamente a região onde o saldo comercial menos caiu desde 2008.
Em uma perspectiva de maior prazo, é inegável que o Mercosul e a América do Sul foram as áreas em que as exportações brasileiras de bens de maior valor agregado se consolidaram. É verdade que essas exportações estão sofrendo com a conjuntura de crise de parceiros regionais (Argentina e Venezuela) e com a ampliação da concorrência provocada pela crise global, à medida que os países mais afetados por ela buscam recuperar-se tomando mercados externos com recurso à guerra cambial e subsídios. A piora do resultado comercial brasileiro no continente é muito menor, porém, do que no comércio com as regiões desenvolvidas em crise, como EUA e União Europeia.
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Essa postura opõe-se radicalmente aos atuais governos de Brasil e Argentina, que buscam preservar e adensar cadeias industriais ameaçadas pelo acirramento da concorrência global. Isso provoca insatisfações nos países sede das matrizes: a União Europeia por exemplo fez consulta sobre a adequação do programa Inovar-Auto às regras da Organização Mundial do Comércio. Este programa oferece incentivos fiscais para montadoras que melhorem a eficiência energética dos automóveis e aumentem o valor agregado substituindo importações. Em meio à crise, qualquer iniciativa do governo brasileiro que influencie o comércio intra-firma tende a gerar insatisfações nas sedes das matrizes. Contudo, também deve provocar reclamações argentinas se prejudicar a complementaridade de cadeias produtivas regionais.
O Brasil não quer perder o acesso privilegiado ao mercado argentino (e vice-versa), mas pressiona a Argentina a aceitar reduções da Tarifa Externa Comum necessárias para a conclusão de acordos de livre-comércio do Mercosul com outros países e blocos. A importância que cada país confere ao acesso privilegiado ao mercado do outro foi reafirmada através da assinatura de um memorando de entendimento, em 28 de março, visando a criação de um mecanismo de seguro contra variações cambiais. Na prática, isso deve envolver sobretudo financiamento brasileiro para conferir liquidez ao comércio diante da escassez de reservas cambiais e financiamento externo que afetam a Argentina. Duas semanas depois, o governo argentino aproximou-se da oferta brasileira de liberalização de 90% do comércio do Mercosul com a União Europeia, com a perspectiva de alcançá-la no final de abril. Até então, cogitava-se que Brasil, Uruguai e Paraguai isolariam a Argentina fazendo uma proposta conjunta diferente dela. Aparentemente isso levou-a a ceder.
Não se sabe o que o governo e o empresariado brasileiro cederiam para fechar um acordo entre Mercosul e União Europeia, mas se sabe o que a União Europeia não cederá. Tendo rejeitado a liberação agrícola na OMC, é improvável que a União Europeia prejudique a agricultura em um acordo com o Mercosul. Não é este tipo de complementariedade que a Europa anseia com o Mercosul.
- Pedro Paulo Zahluth Bastos é Professor Associado do Instituto de Economia na Unicamp
28/04/2014
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