O Banco Mundial apercebe-se da chegada da crise da dívida externa

18/07/2019
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Análisis
world_bank.jpg
Foto: CC - https://digital.gov.ru
-A +A

Em 2019, o Banco Mundial (BM) e o FMI fazem 75 anos. Estas instituições financeiras internacionais (IFI), criadas em 1944, são dominadas pelos EUA e por algumas grandes potências suas aliadas e agem contra o interesse dos povos.

 

O BM e o FMI concedem sistematicamente empréstimos aos Estados, com o fim de influenciar as suas políticas. O endividamento externo foi e continua a ser um instrumento para subjugar os devedores. Desde o primeiro dia da sua criação, o FMI e o BM violaram os pactos internacionais sobre direitos humanos e nuca hesitaram, nem hesitam ainda hoje, em apoiar ditaduras.

 

Impõe-se uma nova forma de descolonização para sair do impasse em que as IFI e seus principais accionistas encurralaram o mundo. Têm de ser construídas novas instituições internacionais.

 

Estamos a publicar uma série de artigos de Éric Toussaint que resumem a evolução do Banco Mundial e do FMI desde a sua criação. Estes artigos foram extraídos do livro Banco Mundial: o Golpe de Estado Permanente, que pode ser consultado gratuitamente em castelhano, em francês e em inglês.

 

O Banco Mundial apercebe-se, desde 1960, do perigo de uma crise da dívida ocorrer, pelo facto de os principais países endividados não conseguirem manter pagamentos cada vez mais elevados. Os sinais de alerta multiplicam-se durante os anos sessenta até ao choque petrolífero de 1973. Tanto os dirigentes do Banco Mundial, como os banqueiros privados, a Comissão Pearson e o Tribunal de Contas dos Estados Unidos (General Accounting Office – GAO) publicaram relatórios enfatizando os riscos de crise. Depois da subida do preço do petróleo em 1973 e da reciclagem massiva de petrodólares pelos grandes bancos privados dos países industrializados, o tom dos relatórios muda radicalmente. O Banco Mundial deixa de falar de crise. No entanto, o ritmo do endividamento continua imparável. O Banco Mundial entra em concorrência com os Bancos privados para conceder o maior número de empréstimos, o mais depressa possível. Até à eclosão da crise, em 1982, o Banco Mundial mantém uma linguagem dúbia. Quando fala em público e para os países endividados, afirma que não há motivo para inquietações, se os problemas surgirem serão de curta duração. É o discurso mantido nos documentos oficiais. O segundo discurso é mantido fechado a sete chaves e abordado apenas nas discussões internas. Num memorando interno, lê-se que se os bancos se aperceberem que o risco aumenta, reduzirão os empréstimos e «poderíamos ver uma grande quantidade de países em situações extremamente difíceis» (29 de outubro de 1979) [1].

 

A partir de 1960 não faltaram sinais de alerta.

 

Em 1960, Dragoslav Avramović e Ravi Gulhati, dois eminentes economistas do Banco Mundial [2], publicam um relatório que aponta claramente para o perigo de ver os PED atingirem um nível insustentável de endividamento, devido às perspectivas pouco animadoras relativas ao rendimento das exportações:
«Prevemos que, nos próximos anos, os reembolsos da dívida aumentem na maioria dos países endividados, sendo que muitos atingiram já elevadas taxas de serviço da dívida.

 

[...] Em certos casos, a incerteza quanto às perspectivas de exportação e um pesado serviço da dívida são obstáculos sérios a novos e significativos empréstimos.» [3].

 

Este é apenas o início de uma série de avisos que surgem em sucessivos documentos do Banco Mundial até 1973.

 

No relatório anual do Banco Mundial, de 1963-1964, lê-se na página 8:
«O pesado fardo da dívida, que sobrecarrega um número crescente de países membros, é uma preocupação constante para o grupo do Banco Mundial [...] Os directores executivos decidiram que o Banco podia modificar certas condições de empréstimo para aliviar o serviço da dívida em certos casos» [4].

 

O 20o Relatório anual publicado em 1965 contém um extenso excerto sobre a dívida

 

O relatório frisa que as exportações de produtos agrícolas crescem mais depressa do que a procura nos países industrializados, provocando a queda de preços [5]: «O crescimento das exportações de matérias-primas agrícolas tende a ser mais rápido do que o aumento da procura nos países industrializados. Consequentemente, os países em desenvolvimento sofrem uma quebra contínua dos preços das suas exportações agrícolas entre 1957-1962». Exemplo: enquanto as exportações de café cresceram 25%, entre 1957 e 1962, o rendimento gerado caiu 25% [6]. Verificou-se também uma descida dos preços do cacau e do açúcar. O relatório mostra que as exportações dos PED são essencialmente de matérias-primas, em relação às quais a procura do Norte evoluiu lenta e irregularmente. Os preços das matérias-primas caem [7]. O relatório indica que os fluxos financeiros são insuficientes, tanto em termos de empréstimos e donativos, como em termos de investimento estrangeiro, porque o montante relativo ao reembolso da dívida e à remessa de lucros do investimento estrangeiro é muito elevado.

 

O relatório revela que a dívida aumentou a um ritmo anual de 15 %, entre 1955 e 1962. Esse ritmo, depois, acelerou, sendo de 17 % entre 1962 e 1964. Um pouco mais de uma dezena de países acumula 50 % da dívida. São todos grandes clientes do Banco (Índia, Brasil, Argentina, México, Paquistão, Turquia, Jugoslávia, Israel, Chile, Colômbia).

 

O ritmo de crescimento da dívida externa pública dos PED é muito elevado. Entre 1955 e 1963, a dívida aumentou 300 %, passando de 9 mil milhões para 28 mil milhões de dólares. Em 1963 e 1964, portanto no espaço de um ano, a dívida aumentou 22 %, atingindo os 33 mil milhões de dólares. O volume do serviço da dívida aumentou quatro vezes durante o mesmo período (1955-1964).

 

Em 1955, o serviço da dívida representava 4 % do rendimento das exportações. Em 1964, a percentagem triplicou (12 %) e, no caso de certos países, representava quase 25 %!

 

O relatório enfatiza a necessidade de definir correctamente as condições em que o Banco Mundial e outros credores concedem empréstimos. Qual é a lógica subjacente?

 

Quanto mais rigorosos forem os termos (as condições), mais elevados serão os reembolsos.

 

Quanto maiores forem os reembolsos, maior deverá ser o montante da ajuda. Consequentemente, o rigor ou a flexibilidade/suavidade das condições é tão importante como o volume da ajuda. Dois factores chave determinam o rigor ou a suavidade: a) a parcela de donativos; b) o montante das taxas de juro e a duração dos reembolsos.

 

O relatório revela que a parte dos donativos diminuiu (principalmente do lado dos Estados Unidos). As taxas de juro diminuíram um pouco e a duração dos reembolsos aumentou. Em suma, aumentou a duração por um lado, mas diminuiu por outro. Sublinhe-se que a URSS emprestav nessa época a taxas de juro claramente inferiores à taxa fixada pelo «Ocidente» [8]. A Grã-Bretanha anunciou que no futuro iria emprestar sem juros aos países mais pobres. O Canadá seguiu a mesma linha. O relatório defende uma suavização dos termos dos empréstimos.

 

Não se encontra esse tipo de análise nos dezanove relatórios que o precederam. Como explicar o tom específico e o conteúdo original desse relatório?

 

De facto, o relatório foi escrito sobre a pressão dos acontecimentos. Muitos dos países do Terceiro Mundo organizaram-se no âmbito do movimento dos não-alinhados. Eram maioritários no seio da Assembleia das Nações Unidas e conseguiram a criação da Conferência das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento em 1964. A CNU- CED é a única instituição da ONU dirigida por representantes dos PED [9]. Estes criticam duramente a atitude dos países mais industrializados. O próprio Banco Mundial possui 102 membros nessa época, ou seja, uma maioria de países do Terceiro Mundo. A direcção do Banco é obrigada a ter em conta, para análise, as recriminações do Sul.

 

O 21o relatório anual publicado em 1966 regressa à questão das condições de empréstimo; defende a sua melhoria e revela que se está perante uma lógica de aumento permanente da dívida: «Embora o peso crescente da dívida dos países em desenvolvimento aponte a necessidade de melhorar as condições dos empréstimos, [...] as condições médias do total do crédito bilateral podem tornar-se menos, em lugar de mais, favoráveis [...]. No entanto, um nível mais elevado de ajuda a condições inadequadas pode tornar o problema da dívida externa ainda mais difícil. Se a ajuda não for oferecida em condições médias mais favoráveis, o volume bruto de assistência terá de ser aumentado de forma acentuada e contínua, a fim de manter um certo nível de transferência real de recursos» [10].

 

Em suma, pode-se inferir que o Banco Mundial detectou o perigo persistente de eclosão de uma crise da dívida gerada pela incapacidade de manter reembolsos crescentes. As soluções aventadas pelo Banco nas citações acima referidas consistem no aumento do volume dos empréstimos e na proposição de condições mais favoráveis: taxas de juro menos elevadas e período mais alargado de reembolso. De facto, o Banco só percebe o problema em termos de fluxo: para que os países endividados possam reembolsar os pagamentos, é preciso aumentar os montantes emprestados, aliviando as condições de reembolso. Entra-se claramente num círculo vicioso onde as novas dívidas servem para reembolsar as antigas, tanto na teoria como na prática.
Nos mesmos relatórios, o Banco manifesta confiança no aumento dos fluxos de capitais privados para os PED (investimentos e empréstimos). O aumento dos empréstimos privados é considerado como um objectivo a ser alcançado. Esse aumento compensa a espera por financiamentos públicos, segundo o relatório acima citado.

 

No 20o relatório publicado em 1965 pode ler-se:
«O sistema do Banco Mundial e outras organizações internacionais realizam esforços consideráveis para encorajar e aumentar o fluxo de capitais privados para os países menos desenvolvidos. Não há dúvida que podemos concordar em aumentar esse fluxo [...] desse modo acelerando a via do desenvolvimento e compensando a espera por financiamento público» [11].

 

No relatório publicado em 1966, assinala-se a necessidade de libertar a circulação internacional de capitais: «Podemos esperar que seja possível estabelecer condições que permitam um movimento mais livre de capitais privados no mercado mundial» [12].

 

É significativo que o Banco, após uma longa exposição sobre as dificuldades em reembolsar a dívida, declare que não se pode deixar de recorrer a empréstimos: «No entanto, nada disso deve ser interpretado como se os países em desenvolvimento não pudessem suportar, ou devessem evitar, um aumento das suas obrigações de reembolso» [13].

 

A nomeação da Comissão Pearson, em 1968, por Robert McNamara, novo presidente do Banco Mundial, insere-se nos esforços realizados pelos dirigentes norte-americanos para enfrentarem o endividamento crescente e as reivindicações que vinham do Sul. Partners in Development (Parceiros no Desenvolvimento), o relatório da Comissão Pearson, publicado em 1969, prevê que o peso da dívida aumentará até atingir uma situação de crise na década seguinte. A percentagem de novos empréstimos brutos que visavam assegurar o serviço da dívida atingiu 87 % na América Latina em 1965-1967.

 

Eis o que, num relatório de 1969, Nelson Rockefeller, irmão do presidente do Chase Manhattan Bank, explica ao presidente dos Estados Unidos sobre os problemas que a América Latina deve enfrentar:
«O nível considerável dos montantes emprestados a certos países do hemisfério ocidental para apoiarem o desenvolvimento atinge um valor tal que o pagamento de juros e as amortizações absorvem a maior parte do rendimento das exportações [...] Muitos países são levados a contrair novos empréstimos para terem divisas necessárias para o pagamento dos juros e das amortizações de antigos empréstimos e isso a taxas de juro mais elevadas» [14].

 

Por sua vez, o General Accounting Office (GAO, equivalente ao Tribunal de Contas nos Estados Unidos) envia ao Governo um relatório alarmante:
«Inúmeras nações pobres atingiram já um nível de endividamento que ultrapassa as suas possibilidade de reembolso. [...] Os Estados Unidos continuam a conceder aos países subdesenvolvidos uma quantidade de empréstimos maior do que qualquer outro país ou organização e também têm a maior taxa de perdas. A tendência de conceder emprésti- mos reembolsáveis em dólares não garante o reembolso dos fundos» [15].

 

Algum tempo depois, em 1970, num relatório ao presidente dos Estados Unidos, Rudolph Peterson, presidente do Bank of America, faz soar o alarme:
«Hoje o peso da dívida de muitos países em desenvolvimento é um problema urgente. Apesar de previsto há dez anos, não nos demos conta. As razões são muitas, mas quaisquer que sejam, em certos países, o futuro rendimento das exportações está tão hipotecado que compromete as importações, os investimentos e o desenvolvimento» [16].

 

Em suma, diferentes fontes influentes, nos Estados Unidos, todas relacionadas entre si, consideravam desde fins de 1960 que uma crise da dívida podia eclodir alguns anos mais tarde.

 

Apesar da consciência dos perigos ...

 

Por seu lado, Robert McNamara considera que o ritmo de crescimento do endividamento do Terceiro Mundo é um problema. Declara:
«Em finais de 1972, a dívida atingia 75 mil milhões de dólares e o serviço anual da dívida ultrapassava 7 mil milhões de dólares. O serviço da dívida aumentou 18 % em 1970 e 20 % em 1971. A taxa média de aumento da dívida desde a década de sessenta representou quase o dobro da taxa de crescimento dos rendimentos das exportações, com os quais os países endividados devem assegurar o serviço da dívida. A situação não pode continuar indefinidamente» [17].

 

... a partir de 1973, o Banco Mundial lançou-se na corrida do aumento da dívida, concorrendo com os bancos privados

 

No entanto, o Banco Mundial, presidido por Robert McNamara, mantém a pressão sobre os países da periferia no sentido de aumentarem o endividamento.

 

A partir de 1973, o aumento dos preços do petróleo e de outras matérias-primas provoca uma fuga para a frente, na direção de um aumento do endividamento. Nas publicações do Banco Mundial, do FMI e dos banqueiros encontram-se cada vez menos prognósticos pessimistas no que diz respeito às dificuldades de reembolso que os PED poderiam enfrentar.

 

Tomemos o FMI como exemplo. Podemos ler no seu relatório anual de 1975 uma mensagem perfeitamente serena:
«O investimento do excedente dos países exportadores de petróleo nos mercados financeiros nacionais e internacionais em combinação com a expansão do financiamento internacional (sob a forma de empréstimos bilaterais e multilaterais) constituem uma forma satisfatória de transferência de fundos para atenuar o défice da balança de pagamentos dos países importadores de petróleo» [18].

 

É preciso salientar que esse diagnóstico contradiz completamente o diagnóstico ela- borado após a eclosão da crise. Logo que a crise da dívida acontece em 1982, o FMI responsabiliza os dois choques petrolíferos de 1973 e 1979. Ora, o que se deduz da citação de 1975 é que, para o FMI, a reciclagem de petrodólares combinada com os empréstimos públicos resolveu muito bem os problemas dos países importadores de petróleo.

 

Como explicar a vontade de o Banco Mundial estimular o aumento do endividamento nos anos setenta?

 

O Banco Mundial queria aumentar a qualquer preço a sua influência no maior número possível de países que claramente alinhassem com o mundo capitalista, ou que mantivessem ou começassem a manter distância (Jugoslávia e Roménia) em relação à URSS [19]. Para conservar ou aumentar a sua influência, foi preciso reforçar o efeito de alavancagem, aumentando continuamente os montantes emprestados. Ou os bancos privados tentavam eles próprios aumentar os seus empréstimos, a taxas que podiam ser inferiores às praticadas pelo Banco Mundial [20]. Este último lançara-se numa procura incessante de projectos passíveis de suscitarem empréstimos. Entre 1978 e 1981, o total emprestado pelo Banco aumentou 100 %.

 

Robert McNamara deixa transparecer grande confiança durante a segunda metade dos anos setenta. Declara no seu discurso presidencial anual que «Os principais bancos e os principais países devedores agem com base em previsões comuns», concluindo que «Estamos até mais confiantes hoje do que há um ano atrás: o problema da dívida é gerível» [21].

 

Além disso, alguns grandes banqueiros também demonstram grande serenidade [22]. Eis o que diz o Citibank em 1980:

 

«Desde a Segunda Guerra Mundial, as rupturas nos pagamentos por parte dos países subdesenvolvidos, quando ocorrem, não provocam perdas significativas para os bancos emprestadores. Uma ruptura de pagamento geralmente é acompanhada de um acordo entre o país endividado e os credores estrangeiros, em termos de reescalonamento da dívida. [...] Na medida em que as taxas de juro e os spreads são geralmente revistos em alta quando um empréstimo é reescalonado, o valor do empréstimo após descontada essa nova taxa é frequentemente superior ao valor do crédito original» [23].

 

Tendo em conta as motivações do autor, essa declaração deve ser interpretada com muita prudência. De facto, o Citibank, um dos bancos mais ativos nos anos setenta, em termos de empréstimos ao Terceiro Mundo, sente que os ventos estão a mudar em 1980. No momento em que escrevemos, esse banco prepara a sua saída e praticamente não concede novos empréstimos.

 

O texto destina-se aos banqueiros de menor dimensão, principalmente aos bancos locais dos Estados Unidos, os saving and loans, que empresas como o Citibank pretendem que concedam novos empréstimos. Para o presidente do Citibank, o dinheiro que os saving and loans continuam a enviar para os países do Sul deve permitir o reembolso dos grandes banqueiros. Por outras palavras, para que os países devedores continuem a reembolsar os grandes bancos, é preciso que existam outros emprestadores. Podem ser privados (os pequenos ou médios bancos, menos bem informados do que os grandes bancos, ou mesmo desinformados por estes últimos) ou públicos (Banco Mundial, FMI, agências públicas de crédito para exportação, governos ...). São necessários empresta- dores de último recurso para que os bancos sejam integralmente reembolsados. Nesse sentido, se instituições como o Banco Mundial e o FMI divulgam mensagens tranquilizadoras quando a crise se avizinha, tornam-se cúmplices dos grandes banqueiros que procuram emprestadores de último recurso. Os pequenos bancos que continuaram a emprestar aos PED são forçados a declarar falência em 1982 e o custo do seu resgate foi assumido pelo Tesouro dos Estados Unidos, isto é, pelos contribuintes norte-americanos.

 

A reviravolta de 1979-1981

 

O segundo choque petrolífero de 1979 (após a revolução iraniana) veio juntar-se à redução de preços de outras matérias-primas.

 

A partir de fins de 1979, o custo da dívida aumentou duplamente, por um lado devido ao aumento das taxas de juro, por outro devido à apreciação do dólar. As tentativas do Sul de retomar as negociações sobre a nova ordem internacional fracassaram: o diálogo Norte-Sul, em Cancún, em 1981, não deu em nada. Além disso, a austeridade fiscal, exigida aos países do Sul, não foi adoptada pelos Estados Unidos (redução de taxas, aumento das despesas militares, aumento do consumo).

 

A reviravolta generalizada, que o Banco Mundial designou como «ajuste estrutural» foi anunciada no discurso de Robert McNamara, durante a conferência da CNUCED, em Manila, em maio de 1979.

 

A linguagem dupla do Banco Mundial

 

Até à eclosão da crise, em 1982, o Banco Mundial manteve um discurso duplo. Por um lado, dirigia-se ao público e aos países endividados dizendo que não havia razões para inquietação exagerada, porque os problemas que surgissem seriam de curta duração. Esse era o discurso dos documentos públicos oficiais. O segundo discurso é escondido a sete chaves e guardado para as discussões internas.

 

Em outubro de 1978, um vice-presidente do Banco Mundial, Peter Cargill, responsável pelas Finanças, envia ao presidente McNamara um memorando intitulado «Grau de risco dos activos do Banco Mundial» (Riskiness in IBRD’s loans portofolio). Nesse texto, Peter Cargill pressiona Robert McNamara e o Banco Mundial a darem mais atenção à solvabilidade dos países endividados [24]. Segundo Peter Cargill, o número de países endividados, com atrasos de pagamento ao Banco Mundial ou que procuram renegociar as suas dívidas multilaterais, passou de três para dezoito entre 1974 e 1978! Por seu lado, Robert McNamara internamente mostra preocupação diversas vezes, em especial num memorando de setembro de 1979. Noutro memorando interno, pode-se ler que se os bancos perceberem que os riscos aumentaram, poderão reduzir os empréstimos e «poderíamos ter um grande número de países numa situação extremamente difícil» (29 de outubro de 1979) [25].

 

O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial, editado pelo Banco Mundial, em 1980, apresenta o futuro de maneira optimista e prevê que as taxas de juro estabilizem a um nível muito baixo, 1 %. É totalmente irrealista. A evolução do factos comprova-o. É interessante ver, graças aos historiadores do Banco Mundial, que numa primeira versão não publicada do relatório existe uma segunda hipótese baseada numa taxa real de 3 %. Essa projecção mostra que a prazo a situação será insustentável para os países endividados. Robert McNamara consegue que se retire esse cenário negro da versão a ser publicada! [26]

 

No Relatório sobre desenvolvimento mundial, publicado pelo Banco em 1981, pode-se ler: «Parece bem provável que os devedores e emprestadores se adaptem às alterações das condições sem caírem numa crise geral de confiança» [27].

 

O mandato de Robert McNamara na presidência do Banco Mundial terminou em 1981, um ano antes de a crise eclodir perante o olhar de todos. O presidente Ronald Reagan substituiu-o por Alden William Clausen, presidente do Bank of America, um dos principais credores privados dos PED. Põe-se a raposa a tomar conta do galinheiro ...

 

Notas

 

[1] D. Kapur, J. Lewis, R. Webb, 1997, vol. 1., p. 599, «We may see a larger number of countries in extremely difficult situations».

[2] O jugoslavo Dragoslav Avramović foi economista chefe do Banco Mundial em 1963-1964. Trinta anos mais tarde, torna-se presidente do Banco Central jugoslavo (1994-1996), na época do gover- no de Miroslav Milosevic.

[3] «In several major debtor countries, most of which already have high debt service ratios, service payments are predicted to rise in the next few years. [...] In some cases uncertain export prospects and heavy debt service schedules constitute a serious obstacle to substantial amounts of further borrowing». AVRAMOVIĆ, Dragoslav and GULHATI, Ravi. 1960. Debt Servicing Problems of Low-In- come Countries 1956-58, Johns Hopkins Press for the IBRD, Baltimore, pp.56 e 59.

[4] «The Heavy debt burden that weighs on an increasing number of its member countries has been a continuing concern of the World Bank group... the Executive Directors have decided that the Bank itself may vary some terms of its lending to lighten the service burden in cases where this is appropriate ... to the debt position of the country». World Bank, Annual Report 1963-4, p.8.

[5] World Bank, Annual Report 1965, p. 54

[6] Idem, p. 55

[7] Sublinhe-se que durante esse período, o Banco Mundial orienta os seus empréstimos para culturas de exportação e para actividades exportadoras de matérias-primas.

[8] Ibid., p. 61.

[9] Para uma apresentação resumida da criação da CNUCED e da sua evolução posterior, ver Eric TOUSSAINT. 2004. La Finance contre les peuples. La Bourse ou la Vie. CADTM/Syllepse/Cetim, Liège-Paris-Genève, pp. 99-104. Ver também CETIM. 2005. ONU. Droits pour tous ou loi du plus fort?, Cetim, Genève, 2005, pp. 207-219 e THÉRIEN, Jean-Philippe. 1990. Une Voix du Sud: le dis- cours de la Cnuced, L’Harmattan, Paris.

[10] «While the increasingly heavy debt burden of developing countries points to the need for funds on easier terms [...] the average terms of total bilateral assistance may become less, rather than more, concessionary [...] A higher level of aid on inappropriate terms, however, could make the external debt problem even more difficult. If aid is not made available on average terms which are more concessionary, the gross volume of assistance will have to be steeply and continuously increased in order to maintain any given level of real resources transfer». World Bank, Annual Report 1966, p. 45.

[11] «The World Bank group and other international organizations [...] are making strenuous efforts to encourage and enlarge the flow of private capital into the less developed countries. There is no doubt that this flow can be expected to increase [...] thereby accelerating the pace of development and relieving the pressure on public funds». WORLD BANK, Annual Report 1965, p.62.

[12] A situação é paradoxal: ao mesmo tempo que o BM defende uma circulação mais livre de capitais entre os países em desenvolvimento e os países desenvolvidos, Washington implementa, desde 1963, restrições muito apertadas à saída de capitais dos Estados Unidos. Essas restrições aceleram, na Europa, o desenvolvimento do mercado de eurodólares, que são reciclados sob a forma de em- préstimos a países em desenvolvimento. Ver: Eric TOUSSAINT. 2004. La Finance contre les peuples. La Bourse ou la Vie. CADTM/Syllepse/Cetim, Liège-Paris-Genève, p. 189 e NOREL, Philippe e SAINT-ALARY, Eric. 1988. pp. 41 e seguintes.

[13] «It is to be hoped that conditions can be established in world [private] capital markets which will permit a freer movement of capital internationally». WORLD BANK, Annual Report 1966, p. 45.
«None of this, however, should be taken to mean that developing countries cannot afford, and hence should avoid, any increases in debt service obligations». WORLD BANK, Annual Report 1966, p. 35.

[14] «Heavy borrowing by some Western hemisphere countries to support development has reached the point where annual repayments of interest and amortization absorb a large share of foreign exchange earnings [...] Many of the countries are, in effect, having to make new loans to get the foreign exchange to pay interest and amortization on old loans, and at higher interest rates». Nelson Rockfeller. 1969. Report on the Americas, Quadrangle Books, Chicago, p. 87, citado por Payer, Cheryl. 1991. Lent and Lost. Foreign Credit and Third World Development, Zed Books, London, p. 58.

[15] «Many poor nations have already incurred debts past the possibility of repayment [...] The US continues to make more loans to underdeveloped countries than any other country or organization and also has the greatest loss ratio. The trend toward making loans repayable in dollars does not ensure that the funds will be repaid». Banking, November 1969, p. 45, citado por PAYER, Cheryl. 1991. Lent and Lost. Foreign Credit and Third World Development, Zed Books, London, p. 69.

[16] «The debt burden of many developing countries is now an urgent problem. It was foreseen, but not faced, a decade ago. It stems from a combination of causes [but] whatever the causes, future export earnings of some countries are so heavily mortgaged as to endanger continuing imports, invest- ment, and development». Task Force on International Development, U.S. Foreign Assistance in the 1970s: a new approach, Report to the President, Government Printing Office, 1970, Washing- ton, p. 10.

[17] MCNAMARA, Robert S. 1973. Cien países. Dos mil millones de seres, Tecnos, Madrid, p. 94.

[18] «The investment of the surpluses of oil exporting countries in national and international financial markets – together with the expansion of international financing (through both bilateral arrange- ments and multilateral facilities) has resulted in a satisfactory channeling of funds into the current account deficits of the oil importing countries». INTERNATIONAL MONETARY FUND, Annual Report 1975, p. 3.

[19] Nesse contexto, o Banco Mundial fez grandes esforços para convencer a China a ingressar no seu seio (para grande desgosto das autoridades de Taiwan que, entre 1949 e 1979, ocuparam o lugar da China no Banco). O regresso da China Popular ao Banco teve lugar no final da Presidência de Robert McNamara.

[20] Em 1976-1977-1978, os bancos comerciais emprestavam ao Brasil a uma taxa média de 7,4 %, en- quanto o Banco Mundial emprestava a uma taxa de 8,7 % (KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 1, p. 281 e tabela 15.5, p. 983).

[21] Citado par Nicholas Stern e Francisco Ferreira. 1997. «The World Bank as “intellectual actor”» in KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 2, p. 558.

[22] No médio prazo, não estavam errados. A visão expressa na citação foi confirmada na década de oi- tenta: a suspensão do pagamento da dívida foi de curto prazo, os reescalonamentos do pagamento foram concertados entre os grandes bancos dos Estados Unidos e os governos dos países latino- americanos com o apoio do FMI e do BM. Como afirma o Citibank: «as taxas de juro e os diferen- ciais são geralmente revistos em alta quando um empréstimo é reescalonado». Foi exactamente o que aconteceu. Como se mostra nos dois capítulos seguintes, os grandes banqueiros fizeram gran- des lucros à custa dos países endividados.

[23] «Since World War II, defaults by LDC’s, when they have occurred, have not normally involved major losses to the lending banks. Defaults are typically followed by an arrangement between the government of the debtor country and its foreign creditors to reschedule the debt [...] Since inter- est rates or spreads are typically increased when a loan is rescheduled, the loan’s present dis- counted value may well be higher than that of the original credit». Global Financial Intermediation and Policy Analysis (Citibank, 1980), citado em «Why the Major Players Allowed it to happen», International Currency review, May 1984, p. 22, citado por PAYER, Cheryl. 1991. Lent and Lost. Foreign Credit and Third World Development, Zed Books, London, p. 72.

[24] D. Kapur, J. Lewis, R. Webb, 1997, vol. 1, p. 598.

[25] D. Kapur, J. Lewis, R. Webb, 1997, vol. 1, p. 599. «We may see a larger number of countries in extremely difficult situations».

[26] Esse cenário, embora mais perto do que realmente aconteceu, era, no entanto, ainda muito optimista.

[27] Citado por Nicholas Stern e Francisco Ferreira. 1997. «The World Bank as “intellectual actor”» in KAPUR, Devesh, LEWIS, John P., WEBB, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 2, p. 559.

 

17 de Julho

http://www.cadtm.org/O-Banco-Mundial-apercebe-se-da-chegada-da-crise-da-divida-externa

 

https://www.alainet.org/es/node/201070
Suscribirse a America Latina en Movimiento - RSS