A dívida e o livre comércio como instrumentos de subordinação da América Latina desde a independência

A arma da dívida e a imposição do abandono do protecionismo atuaram como poderosos fatores na subjugação dos Estados e na transferência da riqueza dos povos da periferia para as classes capitalistas do centro.

07/02/2022
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Análisis
1838-nov27_2.jpg
-A +A

Ao contrário da narrativa dominante, as crises de dívida da América Latina no século XIX não foram a causa dos problemas dos bancos do Norte e de outros credores. De fato, desde o início, a crise da dívida latino-americana foi um produto das políticas seguidas pelos banqueiros europeus e esteve diretamente ligada à crise que eclodiu em Londres. Além disso, a combinação do recurso ao endividamento externo e a adoção do livre comércio é o fator fundamental da nova subordinação da América Latina a partir do século XIX. Este estudo, que abrange o período 1820-1850, faz parte de uma série de seis artigos sobre «A dívida como instrumento de subordinação» e complementa quatro artigos já publicados:

 

1. O período das independências e a armadilha da dívida (1820-1850)

 

Entre 1820 e 1825, a Grã-Bretanha, em particular o centro financeiro de Londres, estavam em um frenesi de empréstimos para fazer bons negócios. A especulação atingiu seu auge em 1824-1825. Os novos estados que estavam sendo criados na América Latina, após as vitórias militares dos combatentes da independência contra a coroa espanhola, eram um destino privilegiado para o excedente de dinheiro disponível em Londres. Os empréstimos concedidos ao Reino de Poyais são a melhor ilustração disso. Um aventureiro escocês, Gregor Mc Gregor [1], conseguiu vender na Bolsa de Londres os títulos de um estado inexistente, o Reino de Poyais, do qual ele era o autoproclamado monarca (ver quadro). Em 1822, ele conseguiu explorar o mercado de ações da City, colocando 200.000 libras de títulos do Reino de Poyais. Convenceu colonos britânicos a zarparem para seu reino de fantasia. Quando se tornou claro que o Reino era imaginário, Mc Gregor já havia fugido. Isto não impediu que outro banqueiro londrino, cinco anos depois, tentasse emitir um novo empréstimo em nome deste reino imaginário.

 

O Reino e a República de Poyais

 

Gregor Mc Gregor tinha sido general em 1817 no exército de libertação do antecessor de Simon Bolívar, Francisco Miranda. As relações com Bolívar tinham se tornado azedas. Após a separação, ele se dedicou à pirataria no mar do Caribe, antes de ir para Londres, onde se proclamou Rei do Poyais, que ele localizou na costa caribenha da Nicarágua e Honduras, no território dos índios Miskitos (ver mapa https://en.wikipedia.org/wiki/Gregor_MacGregor).

Em 1822, Mc Gregor lançou uma grande campanha publicitária em favor de investimentos no Reino de Poyais. Segundo esta propaganda, a capital São José tinha uma população de 20.000 habitantes. Tinha ruas empedradas, uma casa de ópera, uma catedral, um banco central, um parlamento, um palácio real… O clima era tão saudável que o país havia se tornado um lugar de refúgio para os colonos caribenhos que procuravam recuperar sua saúde. O povo de Poyais era pró-britânico e os futuros colonos podiam contar com três colheitas de milho por ano. Mc Gregor mandou imprimir e distribuir dólares Poyais aos colonos em troca de libras esterlinas. Ele também vendeu terrenos. Mc Gregor tinha olho para os detalhes, ele concedeu a um sapateiro que estava disposto a fazer a viagem o título de Sapateiro da Corte Real.

 

Dos 250 colonos que lá foram depois de comprar terras de Mc Gregor, cerca de 80 sobreviveram, dos quais 50 retornaram à Grã-Bretanha em 1823. Mc Gregor não os tinha acompanhado…

 

Em 1827, de volta a Londres, após uma estadia na França, Mc Gregor conseguiu novamente convencer um banqueiro londrino a emitir um empréstimo para a República Poyais no valor de 800.000 libras. O empréstimo para o reino transformado em república foi um fiasco. Ver o empréstimo de 1827.

 

Somente em 1824-1825, no auge da euforia econômica, foram criadas 624 novas sociedades anônimas em Londres, 46 das quais especializadas em transações comerciais, créditos e investimentos em minas latino-americanas. A febre financeira e comercial dirigida à América Latina foi particularmente importante, já que o capital dessas 46 empresas representava quase metade do capital total das 624 novas empresas. Outro sintoma da atração da América Latina: dos 24 milhões de libras esterlinas em títulos de dívida vendidos em Londres em 1824-25, um pouco mais de dois terços, ou 17 milhões de libras esterlinas, estavam em nome dos novos estados latino-americanos [2].

 

Em dezembro de 1824, em Ayacucho, Peru, os independentistas da América Latina venceram a última grande batalha das guerras de libertação que travavam durante 15 anos contra a coroa espanhola [3]. Do México à Argentina, nasceram novos estados republicanos. A Grã-Bretanha, que desde a derrota da França napoleônica fazia parte da Santa Aliança das monarquias espanhola, russa, francesa, austro-húngara e prussiana, deveria opor-se ao enfraquecimento de um de seus aliados [4]. Na realidade, o governo de Londres estava cada vez mais ativo em apoiar discretamente os independentistas, a fim de ganhar influência nesta vasta região rica em potencial mineiro, industrial, agrícola e comercial. O fato de os Estados Unidos, concorrentes da Grã-Bretanha, terem reconhecido uma Colômbia independente em 1822, acelerou o movimento de Londres para evitar perder uma área de influência potencial [5].

 

***

 

Simon Bolívar, um dos principais líderes latino-americanos, entendeu isso. Enquanto se preparava para obter crédito e armas de Londres, escreveu a Antonio Sucre em maio de 1823: «A Inglaterra é a primeira interessada no sucesso desta transação, pois deseja formar uma liga com todos os povos livres da América e Europa contra a Santa Aliança, a fim de se colocar à frente dos povos e governar o mundo. Não é de interesse para a Inglaterra que uma nação europeia como a Espanha mantenha uma posse como o Peru na América. Ela prefere que seja independente, com um poder fraco e um governo frágil. É por isso que, sob qualquer pretexto, a Inglaterra apoiará a independência do Peru» [6].

 

Os banqueiros britânicos estavam bastante dispostos a assumir riscos organizando empréstimos para os novos estados, especialmente porque eles eram apenas intermediários. Os títulos dos novos estados foram vendidos na Bolsa de Valores de Londres por eles e garantiam boas comissões. Enquanto as taxas de juros cobradas em Londres no mercado doméstico no momento da concessão dos empréstimos giravam em torno de 3 %, as taxas cobradas aos países latino-americanos eram geralmente de 6 % (o retorno real era maior) e as diversas comissões somavam cerca de 8-10 % da quantia efetivamente angariada pelos banqueiros quando os títulos eram oferecidos para venda (ver quadro).

 

Uma análise crítica das condições impostas pelos banqueiros aos estados tomadores indica claramente que elas contêm condições leoninas: taxas de juros exageradas, várias comissões também abusivas e montantes transferidos que são muito pequenos em comparação com o montante emprestado [7]. Cinco bancos londrinos controlavam o mercado de dívida latino-americano: o banco Barclay, o banco B. A. Goldschmidt & Co (veja seu comportamento no primeiro empréstimo mexicano na caixa abaixo), o banco Herring, Powles & Graham, o banco Baring Brothers e o banco Rothschild. Alguns desses bancos também estavam entrando na mineração latino-americana.

 

Em dezembro de 1825, começa a primeira grande crise mundial do capitalismo, após o estouro da bolha especulativa criada nos anos anteriores na Bolsa de Valores de Londres. Esta crise provocou uma queda na atividade econômica, levou a numerosas falências bancárias e criou uma aversão ao risco. A partir de dezembro de 1825, os banqueiros britânicos, seguidos por outros banqueiros europeus, deixaram de conceder empréstimos no exterior como no mercado doméstico. Os novos Estados, que pretendiam financiar o pagamento de suas dívidas através de novos empréstimos em Londres ou Paris, não conseguem mais encontrar banqueiros dispostos a emprestar-lhes dinheiro. A crise de 1825-1826 afetou todos os centros financeiros da Europa: Londres, Paris, Frankfurt, Berlim, Viena, Bruxelas, Amsterdã, Milão, Bolonha, Roma, Dublim, São Petersburgo, etc. A economia entrou em depressão e centenas de bancos, empresas e fábricas foram à falência. O comércio internacional declinou drasticamente.

 

É muito importante notar que quando a crise estoura em Londres em dezembro de 1825, os novos estados latino-americanos ainda estavam pagando suas dívidas. Não foram os estados latino-americanos que desencadearam a crise britânica. Mas de fato, durante 1826, vários países tiveram que suspender os reembolsos (Peru e Grande Colômbia, que incluía Colômbia, Venezuela e Equador [8]), principalmente porque os banqueiros lhes recusavam novos empréstimos e porque a deterioração da situação econômica geral e do comércio internacional estava reduzindo as receitas dos Estados. Os Estados latino-americanos então não causaram a crise, mas sofreram com ela.

 

Em 1828, todos os países independentes da América Latina, do México à Argentina, suspendem os pagamentos. A suspensão dos pagamentos durou de 15 a 30 anos, dependendo do país. É importante esclarecer que este período prolongado de suspensão de pagamentos não significa que nenhum pagamento tenha sido feito. Os governos latino-americanos mantiveram pagamentos parciais quando seu fluxo de caixa o permitia. Mas, dado o baixíssimo crescimento econômico internacional (o crescimento foi baixo na Europa em particular e no mundo capitalista em geral entre 1826 e 1846-47), as fracas exportações de matérias-primas não permitiam juntar as divisas suficientes para retomar os reembolsos de maneira duradora. Negociações ocorreram esporadicamente.

 

O ABC dos empréstimos

 

Banqueiros ou corretores em Londres emitiam títulos soberanos em nome dos Estados tomadores e os vendiam na Bolsa. É importante saber que na maioria das vezes os títulos foram vendidos abaixo de seu valor facial [9].

 

Vejamos o exemplo dos títulos Poyais: cada título emitido em 1822 pelo banco de Lord John Perring (que havia sido Lorde Mayor de Londres em 1803 [10]) em nome de Mc Gregor, com um valor facial de 100 libras, foi vendido por 80 libras [11]. A taxa de juros sobre os títulos Poyais era de 6 %, com um pagamento de cupom de 6 libras a cada ano. Uma renda de 6 libras sobre um título que custou 80 dá um retorno real de 7,5 %. Obviamente, isto não se concretizou e Mc Gregor fugiu com um butim valioso.

 

O empréstimo mexicano de 1824

 

Vejamos agora um empréstimo para um estado real: o México. Em 1824, o banco B. A. A Goldschmidt & Co. de Londres vendeu títulos mexicanos com um valor facial de 3,2 milhões de libras esterlinas [12]. Era preciso pagar apenas 58 libras para adquirir um título de valor de 100 libras. A taxa de juros era de 5 %, o que dava direito ao titular de receber 5 libras a cada ano em troca de um cupom a ser entregue ao banco. Uma anuidade de 5 libras por ano sobre um investimento de 58 liras equivale a um retorno real de 8,6 %.

 

O empréstimo no ponto de vista do detentor do título

 

Os titulares são geralmente banqueiros ou rentistas. Se o México pagar regularmente os cupons, é provável que isso aumente o valor do título no mercado. O detentor do título que o comprou por 58 libras pode vendê-lo por 70 libras e fazer um bom negócio. O comprador também faz um bom negócio, pois o cupom de 5 libras que ele receberá a cada ano proporcionará um retorno real de 7,1 %. Agora, se o México começar a ter problemas para pagar sua dívida e adiar o pagamento do cupom anual, o valor do título cairá ou mesmo entrará em colapso. Pode cair para 10 libras no mercado secundário. Os compradores do título de 10 libras podem obter um lucro enorme se o México retomar o pagamento do cupom após um ano de suspensão. Um cupom de 5 libras em um investimento de 10 libras representa um retorno de 50 %. Assim que o México retomar os pagamentos, o valor de revenda dos títulos no mercado secundário aumenta acentuadamente. A título pode chegar a 50 libras. Neste caso, o comprador que comprou o título a 10 libras pode, após receber o cupom (tendo tido um retorno de 50 %), o revender por 50 libras e assim ter um lucro de 400 %.

 

O comprador das ações a 50 libras esterlinas também espera fazer um bom negócio. Se o México pagar o cupom de 5 libras no ano seguinte, o comprador terá um retorno real de 10 %, e se no vencimento o México pagar 100 libras como esperado, o comprador terá um lucro de 100 %.

 

É útil ter em mente esta explicação para entender as manipulações e apostas para cima ou para baixo sobre títulos que são a essência da especulação que os bancos, negociadores em Bolsa e outras entidades podem fazer. Esta atividade frenética não cria nenhum valor real, mas apenas transferências de fundos que geram risco e instabilidade. É claro que, no decorrer dessas trocas, há vencedores e perdedores entre os detentores de títulos. Em geral, são os pequenos detentores de títulos que arcam com as consequências das crises de dívida porque os banqueiros e outros investidores vendem ou compram no momento certo. Uma vez que eles detêm grandes quantidades de títulos, se passam a vender, fazem cair o preço. Então, quando o preço é suficientemente baixo, os mesmos banqueiros podem começar a comprá-los de volta em grandes quantidades, o que fará com que o preço suba novamente. Voltaremos a este assunto mais tarde.

 

Até agora, na explicação, nos colocamos do ponto de vista do detentor do título. O titular tem a opção de manter ou vender. Vamos agora considera o ponto de vista do banco que é o intermediário entre o Estado tomador e os compradores de títulos na bolsa de Londres.

 

O empréstimo mexicano do ponto de vista do banco que ofereceu os títulos à venda na bolsa de Londres

 

Voltemos ao caso do México, que em 1824 firmou com o Banco B. A. Goldschmidt & Co. de Londres um acordo para que este banco emitisse títulos mexicanos com um valor facial de 3,2 milhões de libras. Declarou no México que os havia vendido a 58 % de seu valor facial, ou seja, que havia coletado 1,85 milhões de libras. Além disso, deduziu 750.000 libras em comissões e despesas diversas deste valor. O México recebeu 1,1 milhão de libras, enquanto estava endividado por 3,2 milhões [13].

 

O empréstimo sob a perspectiva do estado tomador

 

Adotamos agora do ponto de vista do Estado mexicano: assumiu 3,2 milhões de dívidas e recebeu 1,1 milhões. Entre 1824 e 1831, apesar da suspensão dos pagamentos, o México reembolsou 1 milhão em capital e 0,5 milhão em juros, mas ainda tinha que pagar pelo menos 6 milhões em capital e juros. Isto significava que seria impossível pagar o principal e os juros, e que seria necessário ao mesmo tempo utilizar os recursos do país e recorrer a novos empréstimos para continuar a pagar o primeiro.

 

Os empréstimos na perspectiva das classes dominantes locais

 

As classes dirigentes locais, constituídas por grandes proprietários de terras, comerciantes ricos, o alto clero, os elementos mais ricos das profissões liberais e os ricos proprietários de minas, eram muito favoráveis ao empréstimo externo, pois isso lhes permitia continuar a evitar impostos ou a pagar um mínimo. Sem o recurso ao financiamento externo, o Estado teria que tributar as classes dirigentes, porque a esmagadora maioria da população, já sobrecarregada com impostos e taxas sobre o consumo (mais impostos sobre sua produção se fossem agricultores), não tinha condição de financiar as grandes despesas do Estado. Os empréstimos também permitiam que o Estado fizesse encomendas às classes dirigentes locais. Grande parte do empréstimo servia para comprar bens do exterior, ajudando assim a burguesia mercantil – em detrimento dos setores produtivos locais – a desenvolver atividades de importação e comercialização de mercadorias importadas. Este desenvolvimento das relações externas foi útil para os grandes proprietários de terras na exportação de parte de sua produção ou na valorização dos terrenos e das riquezas dos subsolos cobiçadas pelas empresas estrangeiras. Enfim, as classes dominantes locais compravam ao mesmo tempo títulos da dívida externa e da dívida interna [14].

 

Em suma, o recurso ao empréstimo externo combinado com a introdução do livre comércio (ou seja, o abandono do protecionismo) com a Grã-Bretanha favoreceu os interesses da chamada «burguesia compradora». A burguesia voltou-se para a importação de bens manufaturados e para a exportação de bens primários – matérias-primas, produtos agrícolas – e não para a produção local e atividades de manufatura/industriais.

 

Os empréstimos externos na perspectiva dos governantes

 

No início das guerras de independência, os governantes tomaram emprestado do exterior para ter condição de comprar armas e equipamentos para alcançar a vitória. Eles não tinham fábricas para produzir armas localmente. Isto também evitou o choque com as classes dirigentes locais. Isto teria inevitavelmente acontecido se os líderes independentistas as tivessem sujeitado a um grande imposto para ganhar a guerra. Foi aliás o que acabou acontecendo com Simon Bolívar no final das lutas pela independência. Ele foi abandonado pelas classes dirigentes da grande Colômbia porque queria cobrar contribuições delas para consolidar o novo estado.

 

Uma vez alcançadas e estabilizadas as independências, a maioria dos governantes, intimamente ligados às classes dirigentes locais das quais eram oriundos, acharam muito conveniente continuar com o recurso permanente a empréstimos externos, pois isso lhes permitiu evitar lançar mão de impostos sobre os ricos.

 

A dívida externa também era uma poderosa fonte de corrupção para os governos, pois os banqueiros estrangeiros estavam dispostos a pagar subornos para obter contratos de empréstimo (ver abaixo).

 

***

 

Alguns governantes latino-americanos fizeram exceção ao acima exposto, foi o caso no Paraguai entre 1810 e 1865 com o governo de Francia e seus sucessores. Ele tentou implementar com sucesso um projeto de desenvolvimento autocentrado sem recorrer à dívida externa (veja mais adiante nesta série o artigo dedicado a ele). Em alguns aspectos, a experiência lembra a de Mohamed Ali no Egito [15] na mesma época, embora Francia e seus sucessores nunca tenham tentado expandir o Paraguai através de conquistas. A Grã-Bretanha conseguiu reunir a Tríplice Aliança da Argentina, Uruguai e Brasil para deter esta perigosa experiência. O pretexto usado para invadir o Paraguai foi sua recusa em abrir completamente seu território às exportações da Grã-Bretanha e seus associados (o mesmo pretexto foi usado para travar a Guerra do Ópio contra a China em 1839-42 e 1860 [16]). A guerra iniciada pela Tríplice Aliança, em 1865, recorreu ao genocídio do povo paraguaio em uma guerra que durou cinco anos. A população foi reduzida em 80 %. Durante essa abominável guerra de destruição total, Argentina e Brasil aumentaram sua dívida externa com os banqueiros britânicos. O Paraguai, que já havia experimentado um desenvolvimento significativo, ainda não se recuperou realmente no século XXI.

 

Entre os governos latino-americanos que foram exceção à regra no século XIX em termos de pagamento de dívidas, o governo de Benito Juarez no México nos anos 1860 também deve ser mencionado (ver mais adiante na série).

 

2. Dívida externa e livre comércio

 

Na primeira metade do século XIX, os governos latino-americanos, com exceção do de Francia no Paraguai, adotaram políticas de livre comércio sob pressão da Grã-Bretanha.

 

Como as classes dirigentes locais não investiam no processamento ou na fabricação local para o mercado doméstico, a adoção do livre comércio não constituía uma ameaça aos seus interesses. E, como corolário, aceitar a liberação da importação de bens manufaturados principalmente da Grã-Bretanha condenou esses países a não serem capazes de desenvolver um verdadeiro tecido industrial. O abandono do protecionismo destruiu uma grande parte das fábricas e oficinas locais, especialmente no setor têxtil.

 

De certa forma, pode-se dizer que a combinação do uso da dívida externa e a adoção do livre comércio é o fator fundamental do processo de subdesenvolvimento na América Latina. Isto, naturalmente, está ligado à estrutura social dos países latino-americanos. As classes dirigentes locais, especialmente a burguesia compradora, fizeram estas escolhas considerando seu próprio interesse.

 

No final do século XVIII, várias regiões da América Latina, embora ainda sob domínio colonial, estavam passando por um verdadeiro desenvolvimento artesanal e manufatureiro, principalmente para o mercado local. A Grã-Bretanha apoiou as ambições latino-americanas de independência para dominar a região economicamente. Desde o início, a Grã-Bretanha colocou uma condição clara para seu reconhecimento dos estados independentes: eles tinham que concordar em permitir que os bens ingleses entrassem livremente em seu território (o objetivo era limitar os impostos de importação a cerca de 5 %). A maioria dos novos estados concordou e isto levou a uma crise para os produtores locais, especialmente artesãos ou pequenos empresários. Eduardo Galeano dá uma série impressionante de exemplos em seu livro As Veias Abertas da América Latina [17]. Os mercados locais foram invadidos por produtos britânicos.

 

Tem que salientar um fator chave na ascensão da Grã-Bretanha como a primeira potência industrial, financeira, comercial e militar do mundo no século 19: as autoridades de Londres mantiveram na prática uma política fortemente protecionista até 1846 [18]. Embora as autoridades britânicas tivessem obtido dos líderes independentistas latino-americana nos anos 1810 e 1820 que firmassem acordos para abrir as economias dos novos estados independentes em construção aos bens e investimentos britânicos [19], elas tiveram o cuidado de não abandonar a proteção de suas próprias indústrias e comércio. Foi porque a Grã-Bretanha havia protegido fortemente seu mercado e, portanto, suas indústrias em desenvolvimento, enquanto destruía as fábricas de seus concorrentes (como a indústria têxtil da Índia), que ela conseguiu se tornar a primeira potência. Uma vez que sua indústria havia alcançado uma clara liderança tecnológica, a Grã-Bretanha se abriu ao livre comércio porque já não tinha mais uma concorrência séria a temer. Como diz Paul Bairoch, a partir do final dos anos 1840: «o país mais desenvolvido havia se tornado o mais liberal, o que tornou possível atribuir o sucesso econômico ao sistema de livre comércio, enquanto o elo causal era o oposto» [20]. Bairoch acrescenta que até 1860, no continente europeu, apenas alguns pequenos países agregando menos de 10 % da população europeia continental haviam adotado uma política de livre comércio: Holanda, Dinamarca, Portugal, Suíça, Suécia e Bélgica. E não esqueçamos que os Estados Unidos permaneceram protecionistas durante todo o século XIX (e em grande parte no século XX).

 

George Canning, primeiro-ministro do Reino Unido de 10 de abril de 1827 a 8 de agosto de 1827

 

George Canning, um dos principais políticos britânicos [21], escreveu em 1824: «O negócio está feito: a América hispânica é livre; e se não conduzimos nossos negócios com infelicidade, ela é inglesa». Treze anos depois, o cônsul inglês em La Plata, Argentina, Woodbine Parish, podia escrever sobre um gaúcho da pampa argentina: «Peguem todas as peças do seu vestuário, examinem tudo ao seu redor e, exceto os artigos de couro, o que há que não seja inglês? Se sua esposa está usando uma saia, há noventa e nove em cem chances de que ela tenha sido feita em Manchester. O caldeirão ou panela em que ela cozinha, o prato de faiança em que ele come, sua faca, suas esporas, o freio do cavalo, o poncho que o cobre, tudo isso vem da Inglaterra» [22].

 

Para alcançar este resultado, a Grã-Bretanha não precisou recorrer à conquista militar (embora, quando achou necessário, não hesitasse em usar a força). Utilizou duas armas econômicas muito eficazes: o crédito internacional e a imposição do abandono do protecionismo.

 

Em 1827, o influente economista suíço Jean de Sismondi [23] dá conta da estratégia britânica e do interesse da Grã-Bretanha em conceder crédito aos novos estados independentes porque eles o usariam para comprar produtos ingleses: «A abertura do imenso mercado que a América espanhola passou a oferecer às indústrias inglesas me parece ser o acontecimento que mais poderia contribuir para aliviar suas manufaturas. O governo britânico pensava da mesma maneira e, por isso, nos sete anos que se seguiram à crise comercial de 1818, não poupou esforços para que o comércio inglês conseguisse chegar às mais recônditas regiões do México, da Colômbia, do Brasil, do Rio da Prata, do Chile e do Peru. Antes mesmo que o governo inglês tivesse reconhecido estes novos países, ele já havia cuidado de proteger seu comércio com a implantação de viagens regulares de navios de linha cujos comandantes desempenhavam mais funções diplomáticas do que militares. Depois, afrontando a Santa Aliança, reconheceu as novas repúblicas no momento em que toda a Europa, ao contrário, conjurava a ruína delas. No entanto, por maior que fosse a capacidade de escoamento que a América livre representasse, ainda assim só ela não teria bastado para absorver todas as mercadorias que a Inglaterra havia produzido, muito além de qualquer necessidade de consumo, se não fossem os empréstimos feitos às novas repúblicas que, claro, aumentaram, assim, desmesuradamente, a sua capacidade de comprar os produtos ingleses. Cada país da América contraiu com a Inglaterra um empréstimo suficiente para pôr em funcionamento o seu governo. E conquanto este montante constituísse um capital, o país o despendeu, no mesmo ano, como renda, ou seja, o empregou, integralmente, para comprar mercadorias inglesas, por conta da coisa pública, ou para pagar aquelas que haviam sido expedidas por conta de particulares. Muitas companhias, com imensos capitais, foram, então, formadas para explorar as minas da América; mas todo o dinheiro que elas despenderam acabou voltando para a Inglaterra para pagar quer as máquinas que precisavam usar na mineração, quer as mercadorias que eram expedidas para os locais onde elas deveriam trabalhar». Mais adiante em sua análise, Sismondi acrescenta que esta política saiu pela culatra porque os novos estados, sobreendividados porque gastaram muito (isto já está presente no trecho citado), suspenderam o pagamento da dívida. No entanto, como assinalamos na esteira de Carlos Marichal, a suspensão dos pagamentos não causou uma crise em Londres. O contrário é verdadeiro: a crise em Londres levou a uma interrupção dos fluxos financeiros, sob a forma de créditos, para a América Latina. Como resultado, os estados endividados não puderam continuar tomando empréstimos e fazendo pagamentos. Deve-se lembrar que quando a crise estourou em dezembro de 1825, os estados latino-americanos estavam pagando suas dívidas normalmente. Foi durante os dois anos seguintes que, um após o outro, eles suspenderam parcialmente os pagamentos. Dito isto, o que é muito interessante na abordagem do Sismondi é que ele aponta para o alto interesse que a Grã-Bretanha tinha em conceder empréstimos aos novos estados independentes. Tinha, como ele diz, várias vantagens. Os empréstimos contraídos com grandes despesas em Londres proporcionaram aos novos estados os meios para comprar da Inglaterra suas mercadorias (armas, roupas para as tropas, etc.). O círculo estava fechando porque o dinheiro emprestado voltava para a Inglaterra.

 

O que Sismondi ainda não podia comentar em 1827, porque aconteceu um pouco mais tarde, foi como a Inglaterra e outras potências europeias aproveitariam a suspensão do pagamento para impor uma sucessão de condicionalidades aos países endividados.

 

3. Epílogo e conclusão

 

A primeira grande crise da dívida latino-americana que foi provocada em Londres foi utilizada pela Grã-Bretanha e, na sua esteira, por outras potências como a França, para submeter as economias da América Latina às condições dos banqueiros e aos interesses da indústria e do comércio no Velho Continente. A parte da América Latina que havia se libertado do jugo colonial direto da Espanha [24] e Portugal entrou num ciclo de dependência, subordinação e pilhagem conduzido pelo grande capital britânico e seu homólogo francês, auxiliado por suas respectivas autoridades. O grande capital americano, apoiado por seu governo, começou mais tarde a intervir, exceto no caso do México, onde interveio de forma seguida. A tentativa do Paraguai de implementar o desenvolvimento autocentrado foi esmagada entre 1865 e 1870. O México na década de 1860 conseguiu resistir a uma grande ofensiva dos credores, mas aceitou o livre comércio, o que bloqueou seu desenvolvimento. Na década de 1880, o governo mexicano submeteu novamente o México a credores (ver próximo artigo).

 

A arma da dívida e a imposição do abandono do protecionismo atuaram como poderosos fatores na subjugação dos Estados e na transferência da riqueza dos povos da periferia para as classes capitalistas do centro, com as classes dirigentes locais pegando sua comissão no processo.

 

Tradução: Alain Geffrouais

 

 

Bibliografia:

 

BAZANT, Jan. 1995. Historia de la deuda exterior de México, 1823-1946, El Colegio de México, Centro de Estudios Históricos, Cidade do México, 1995, 282 p., http://www.cervantesvirtual.

BAIROCH, Paul. 1993. Mythes et paradoxes de l’histoire économique, La découverte, Paris, 1999, 288 p.

BATOU, Jean. 1990. Cent ans de résistance au sous-développement. L’industrialisation de l’Amérique latine et du Moyen-Orient face au défi européen. 1770-1870 [Cem anos de resistência ao subdesenvolvimento. A industrialização da América Latina e do Oriente Médio face ao desafio europeu. 1770-1870]. Universidade de Geneva-Droz, 1990, 575 p.

BAYLY, Christopher Alan. 2004. La naissance du monde moderne (1780-1914) [O nascimento do mundo moderno (1780-1914)], Les Editions de l’Atelier/Editions Ouvrières, Paris, 2007, 862 p.

BRITTO, Luis, El pensamiento del Libertador - Economía y Sociedad, BCV, Caracas, 2010.

CALCAGNO, Alfredo e Eric. 1999. La Deuda Externa explicada a todos. Catálogos, Buenos Aires, 126 p.

GALEANO, Eduardo. 1970. Las venas abiertas de América latina. Siglo XXI, México, 1993, 486 p. Edição brasileira: As Veias Abertas da América Latina, L&PM Pocket, 2010, 400 p.

GILBART, James William. The History and Principles of Banking. Londres, 1834, 220 p.

GUNDER FRANK, André. 1967. Capitalisme et sous-développement en Amérique latine. Maspero, Paris, 1968, 299 p.

GUNDER FRANK, André. 1972. Le développement du sous-développement: l’Amérique latine. Maspero, Paris, 399 p.

GUNDER FRANK, André. 1977. L’Accumulation mondiale, 1500-1800. Calmann-Lévy, 340 p.

LUXEMBURGO, Rosa. 1913. L’accumulation du capital. Maspero, Paris, Vol. II, 1969. O livro A Acumulação de Capital foi publicado pela Editora Zahar em 1970, e ainda se encontra em sebos. Edições em Inglês, Francês ou Espanhol podem ser baixadas gratuitamente no site www.marxists.org. [E também: A Acumulação do Capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988. – Nota do tradutor]

 

MANDEL, Ernest. 1972. Le troisième âge du capitalisme [A terceira idade do capitalismo]. La Passion, Paris, 1997, 500 p.

MANDEL, Ernest. 1978. Long Waves of Capitalist Development, The Marxist Interpretation [Ondas Longas do Desenvolvimento Capitalista, A Interpretação Marxista], Based on the Marshall Lectures given at the University of Cambridge, Cambridge University Press and Editions de la Maison des Sciences de l’Homme, Paris, 141 p.

MARICHAL, Carlos. 1989. A Century of Debt crises in Latin America. Princeton, University Press, Princeton, 283 p.

MARX-ENGELS. La crise. Col. 10/18, Union générale d’éditions, 1978, 444 p.

REINHARDT, Carmen, e ROGOFF, Kenneth. Cette fois, c’est différent. Huit siècles de folie financière [Desta Vez É Diferente. Oito Séculos de Loucura Financeira]. Paris, Pearson, 2010, 469 p.

REINHARDT, Carmen M., e SBRANCIA, M. Belen. 2015. «The Liquidation of Government Debt». Economic Policy30, no. 82: 291-333.

REINHARDT, Carmen, e TREBESCH, Christoph. 2015. The Pitfalls of External Dependence: Greece, 1829-2015 [As Armadilhas da Dependência Externa: Grécia, 1829-2015].

SACK, Alexander Nahum. 1927. Les effets des transformations des Etats sur leurs dettes publiques et autres obligations financières. Recueil Sirey, Paris. Veja o documento completo para download gratuito no site CADTM: http://cadtm.org/IMG/pdf/Alexander_Sack_DETTE_ODIEUSE.pdf. Para exemplos concretos da aplicação da doutrina da dívida odiosa, veja https://pt.wikipedia.org/wiki/D%C3%ADvida_odiosa e http://cadtm.org/Dette-odieuse?lang=fr

 

SISMONDI, Jean de. 1819. Nouveaux principes d’économie politique ou de la richesse dans ses rapports avec la population. Paris, 1827. O livro foi publicado em 2009 sob o título Novos Princípios de Economia Política pela editora SEGESTA que disponibiliza a versão pdf http://www.segestaeditora.com.br/download/novosprincipios.pdf

STIGLITZ, Joseph E. 2002, La Grande désillusion [A Grande Desilusão]. Fayard, Paris, 324 p.

TOUSSAINT, Éric. 2004. A Bolsa ou a Vida [La bourse ou la vie. La finance contre les peuples. Syllepse, Paris, 2004, 500 p.]. Editora Fundação Perseu Abramo, 2002.

TOUSSAINT, Éric. 2016. «A Grécia independente nasceu com uma dívida odiosa», http://cadtm.org/A-Grecia-independente-nasceu-com

TOUSSAINT, Éric. 2016. «Grèce: La poursuite de l’esclavage pour dette de la fin du 19e siècle à la Seconde Guerre mondiale» [Grécia: A Continuação da Escravatura da Dívida desde o Final do Século XIX até a Segunda Guerra Mundial]. http://cadtm.org/Grece-La-poursuite-de-l-esclavage

TOUSSAINT, Éric. 2016. «A Dívida como Instrumento de Conquista Colonial do Egipto», http://cadtm.org/A-divida-como-instrumento-de

TOUSSAINT, Éric. 2016. «Dívida: a Arma que Permitiu à França Apropriar-se da Tunísia», http://cadtm.org/Divida-a-arma-que-permitiu-a

 

Agradecimentos: O autor agradece a Claude Quémar e Patrick Saurin por sua revisão e Pierre Gottiniaux pelas ilustrações.

O autor é inteiramente responsável por quaisquer erros contidos nesta obra.

 

Fonte: http://www.cadtm.org/A-divida-e-o-livre-comercio-como-instrumentos-de-subordinacao-da-America-Latina

https://www.alainet.org/es/node/214875
Suscribirse a America Latina en Movimiento - RSS