Francisco, o reformador
- Opinión
Barack Obama o definiu como “o papa da esperança”, mas Francisco não cogita dos poderosos da Terra, dirige-se aos pobres, aos desvalidos, à maioria da população global submetida à vontade da minoria privilegiada, hoje encabeçada pelos senhores das finanças em suas diversas interpretações.
Ao recuperar a palavra de Cristo que a Igreja traiu ao se tornar manifestação do poder temporal, a mais longeva monarquia por direito divino da história, o cidadão Bergoglio revela-se estadista, reformador à beira da refundação capaz de dilatar os alcances de sua igreja, o peso e a influência e de estabelecer o justo equilíbrio entre material e espiritual.
Ao contrário do cidadão Wojtyla, combatente obsessivo contra o império soviético, mesmo quando este já estava no ocaso, voltado com feroz exclusividade ao problema do poder mundano e disposto a aceitar, e mesmo a promover, a decadência do seu reinado, envolvido em escândalos dignos da mais devassa corte renascimental.
Francisco nada tem de hierático, e a ironia com a qual sabe vestir certos lances de nítidas intenções políticas não discrepa de suas feições de camponês do Piemonte. E assim viu-se o papa sair diante da Casa Branca de um Fiat 500, simpático veículo, mas exageradamente (ou acintosamente?) modesto na terra das limusines.
A viagem a Cuba e aos Estados Unidos é não só a mais comprida, mas também a mais importante do pontificado de Francisco. Com certeza, a presente missão em seu próprio continente desenha a identidade mais autêntica desse papa surpreendente.
Peregrino da misericórdia, único líder mundial capaz de derrubar fronteiras e construir pontes, reconhecido por cubanos e norte-americanos como o protagonista de um degelo que há meio século separava dois países geograficamente muito próximos, mas tornados antípodas por ideologia, cultura, desenvolvimento econômico e tecnológico, símbolos incompatíveis de riqueza e pobreza, da desigualdade no mundo contemporâneo.
Apesar dessa herança, após os primeiros passos de uma pacificação impossível, com a abertura das duas embaixadas, agora a peregrinação de Francisco visa concluir sua obra na tentativa de induzir o Congresso dos EUA a pôr fim ao odioso embargo.
A visita a Cuba teve seu momento mais significativo na celebração da missa na Praça da Revolução, onde Francisco convidou os cubanos a não descuidar dos irmãos “por causa de projetos que podem parecer sedutores, mas que se desinteressam do rosto de quem está ao nosso lado”, com clara alusão às sereias do consumismo.
Diante de uma multidão de meio milhão de pessoas, tendo a seu lado a efígie de Che Guevara e a estátua de Cristo, e com a presença do presidente Raúl Castro, o papa argentino avisou que “a vida autêntica se vive no compromisso concreto com o próximo” e que “o serviço nunca é ideológico, não serve às ideias, mas às pessoas”. Na segunda 21, outra celebração se deu na cidade de Holguín, onde Francisco deixou a pairar na atmosfera emocionada e na memória de todos mais uma das suas afirmações revolucionárias neste mundo cada vez mais desigual, a dizer que “Jesus convida-nos a superar as nossas resistências às mudanças”.
Além da cortesia, o encontro entre Francisco e Fidel Castro foi muito emblemático. Sempre mais interessado em questões teológicas, o velho líder comunista, encantado com a visita e quase incapaz de se levantar da cadeira, pareceu passar simbolicamente o cargo de testemunha de defesa da sua ilha ao outro revolucionário, capaz de defender com sua universal batalha espiritual aqueles valores de solidariedade e irmandade que em Cuba se perderam no caminho acidentado da ideologia totalitária.
Às vésperas da viagem que na terça-feira 22 o levou de Havana para Washington, dizia-se que o papa evitaria referências a dois assuntos melindrosos, responsáveis por uma fratura exposta da opinião pública norte-americana: defesa do meio ambiente e a questão dos refugiados. Pois Francisco tratou de ambos em diversas oportunidades.
Em uma delas, diante de Obama, disse: “A mensagem mais importante do Senhor é a misericórdia, e isto significa acolher o estrangeiro com empatia e coração aberto”. No mesmo discurso, acentuou que “as mudanças climáticas representam um problema que não pode ser deixado para as futuras gerações”.
E no momento em que o racismo ressurge das suas nefastas tradições no comportamento da polícia estadunidense e na fala das facções republicanas mais reacionárias, Francisco evocou Martin Luther King e suas “sábias palavras” e arremata: “Espero que homens e mulheres desta grande e próspera nação sustentem os esforços da comunidade internacional para proteger os mais fracos do nosso mundo e para promover modelos integrais de inclusão”. A própria canonização do missionário franciscano Junîpero Serra, que dedicou sua vida à defesa dos indígenas nativos contra a violência dos invasores brancos, mostra uma nítida inflexão política.
Com os bispos dos EUA, Francisco foi diplomático de saída no uso das palavras ao louvar “o generoso empenho” com que souberam enfrentar a gravíssima questão da pedofilia, mas o tom pacato não abrandou a advertência severa: que “estes crimes jamais se repitam”. De todo modo, até a quinta 24, a chave da visita está, mais claramente explicitada, no discurso ao Congresso, que começa pelo extremismo e chega à pena de morte, ainda em vigor nos EUA, passando pelo comércio de armas.
E ampliou o tema: “É necessário um delicado equilíbrio – disse o papa – para combater a violência perpetrada em nome de uma religião, de uma ideologia ou de um sistema econômico, e salvaguardar ao mesmo tempo a liberdade religiosa, a liberdade intelectual e as liberdades individuais”. Cuidado, porém, para não cair em outra tentação: “Imitar o ódio e a violência dos tiranos e dos assassinos é a melhor maneira de assumir-lhes o lugar”.
Enfim, algo assim como a definição conclusiva na assembleia dos políticos: “A política há de ficar a serviço da pessoa humana, e disso decorre que não pode ser colocada a serviço da economia e da finança. A política há de ser, pelo contrário, a expressão da nossa insuprimível necessidade de vivermos unidos para, unidos, construirmos o maior bem comum”. Aplausos. Palmas interromperam 36 vezes a alocução papal.
A visita se encerra quando esta edição de CartaCapital já estará em circulação, mas vale antecipar os próximos passos do reformador. De 4 a 25 de outubro, realiza-se no Vaticano o Sínodo ordinário sobre a família. Nos últimos meses, os conservadores organizaram as próprias fileiras: vários cardeais, europeus, asiáticos e africanos, publicaram livros em contraste com qualquer abertura doutrinária em relação à comunhão aos divorciados.
Outros intelectuais católicos criticaram sem perífrases as aberturas de Francisco, acusado de fato de enfraquecer o magistério da Igreja e suspeito de certa ingênua leviandade, que, no receio desses censores, poderia provocar até rupturas cismáticas. Ter uma informação precisa sobre a relação de força entre conservadores e progressistas no interior da Igreja Católica é praticamente impossível, mas a observação de recentes movimentações e outros eloquentes silêncios sugere que a consistência dos perplexos e contrários ao papado de Francisco corre o risco de ser majoritária.
Também à luz das contraditórias conclusões do Sínodo extraordinário do ano passado, é difícil, portanto, que no próximo outubro o papa argentino se atreva a forçar marcantes inovações na doutrina sobre a família.
Seu intuito é, provavelmente, aumentar aos poucos o consenso interno sobre a necessidade de abertura à modernidade e, ao mesmo tempo, de corroer, passo a passo e com métodos diversos, a contundência de seus opositores, seja removendo-os dos cargos de responsabilidade para promover os inovadores, seja esperando que o tempo faça o próprio curso, condenando à marginalidade muitos cardeais tradicionalistas nomeados por João Paulo II e Bento XVI, a serem inevitavelmente aposentados por causa da idade avançada (80 anos).
Se as previsões sobre o próximo Sínodo são arriscadas, muito mais proveitoso é decifrar uma série de iniciativas papais que marcaram o período preparatório. Em ordem cronológica, nos primeiros dias de setembro surpreendeu a decisão de Francisco, materializada através de uma simples carta ao arcebispo Rino Fisichella, delegado para a organização do Jubileu da Misericórdia, de “conceder a todos os sacerdotes a capacidade de absolver do pecado de aborto aqueles que o procuraram e, com coração arrependido, pedem perdão durante o Ano do Jubileu”.
O direito canônico prevê que o “pecado” de aborto, considerado tão grave a ponto de comportar a excomunhão, é o único que só pode ser absolvido por um bispo. Estender a todos os padres tal faculdade durante o Ano Santo significa não só aplicar um critério de misericórdia mais abrangente, mas também permitir que maiores espaços se abram na Igreja para acolher as fraquezas da humanidade.
“O perdão de Deus não pode ser negado a ninguém que esteja arrependido”, escreveu Francisco na carta a Fisichella e, aludindo aos críticos internos, completou com firmeza: “Não obstante qualquer coisa em contrário”.
Não se trata, evidentemente, de uma reforma do direito canônico, mas de uma abertura espiritual do papa, que visa contemplar uma situação de fato. Trata-se de um precedente que, depois do Jubileu, deixará inevitavelmente sua marca e, na procura de equilíbrios mais avançados, precisará de novas articulações doutrinárias.
Como CartaCapital já relatou brevemente aos leitores, no dia 8 de setembro foram publicadas duas cartas do papa Francisco, motu proprio, que reformam, estas sim, e radicalmente, o direito canônico em matéria de nulidade do casamento religioso.
À medida que passam os dias e se aprofunda a reflexão, parece cada vez mais claro que se trata de autêntica revolução dessa matéria delicadíssima, que tem seu eixo na indissolubilidade do casamento religioso. Os críticos de Francisco já comentaram que, se não é divórcio, muito se parece.
Há tempo Francisco está convencido, como repetiu em algumas ocasiões, de que pelo menos a metade dos casamentos celebrados na Igreja não é efetivamente válida, porque não responde aos requisitos religiosos intrínsecos. Portanto, os inúmeros fiéis em sofrimento por não verem reconhecida a nulidade do próprio casamento são considerados por Francisco como seres humanos que merecem a misericórdia de Deus e a benevolência da Igreja.
A reforma processual que Bergoglio aprovou, depois de um ano de trabalho da comissão encarregada de assessorá-lo, visa permitir com facilidade, rapidez e gratuidade a nulidade do casamento para esses infelizes.
Dois são os tipos de processo que a reforma prevê: ordinário e breve. No ordinário, ou seja, no âmbito de um tribunal diocesano como acontecia até agora, foi eliminada a necessidade de uma dupla e idêntica sentença que prolongava desmedidamente a duração do processo. Além disso, outra modificação fundamental foi que “as declarações das partes podem ter valor de provas plenas”, enquanto anteriormente isso era explicitamente negado, como se comprova em acusações populares dirigidas à Igreja, de querer se meter entre os lençóis de homens e mulheres.
A inovação, que exalta a confiança na sinceridade das partes, permitirá, portanto, pedir a nulidade “por razões de consciência, por exemplo, para viver os Sacramentos da Igreja ou aperfeiçoar um novo vínculo estável e feliz”, como comentaram fontes próximas ao papa.
De qualquer maneira, a maior novidade da reforma está no processo definido como “mais breve”, delegado à responsabilidade do bispo diocesano, que comportará procedimentos simplificados e poderá ser concluído em 45 dias. O recurso a esse tipo de processo é admitido “nos casos em que a nulidade do casamento é baseada em argumentos particularmente evidentes”, que são minuciosamente exemplificados.
Nessa lista surpreende (positivamente) “a falta de fé que pode gerar a simulação do consenso ou o erro que determina a vontade das partes” e “a brevidade da convivência conjugal”, só para citar dois casos significativos. Não por acaso, tais exemplos são definidos pelos conservadores como um passe-partout universal para cancelar facilmente o casamento.
Sempre no âmbito das questões da “família”, em 16 de setembro, durante a audiência semanal na Praça de São Pedro, Francisco declarou que “existem muitos lugares-comuns, alguns também ofensivos, sobre a mulher tentadora, mas, em contraposição, existe espaço para uma teologia da mulher que esteja à altura dessa criação de Deus”.
Pois bem, podemos afirmar que, com essas sóbrias palavras, Francisco não só demoliu o estereótipo da mulher como fonte de sedução, que é parte integrante da cultura machista, mas quis operar uma revisão da exegese tradicional que vê em Eva o instrumento do demônio que induz Adão ao pecado. A partir desse salto de qualidade, não é difícil prever o impulso que o papa continuará transmitindo à Igreja e à sociedade contemporânea para que a mulher tenha um papel sempre mais equilibrado com o homem.
25/09/2015
http://www.cartacapital.com.br/revista/869/francisco-o-reformador-3644.html
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