Carta aberta a Boaventura dos Santos
- Opinión
Prezado Boaventura dos Santos, escrevo apenas para dizer brevemente que li três dos seus últimos artigos no jornal Carta Maior, esta tarde. Gostei dos três, embora, eu tenha por vezes uma visão mais específica de algumas questões pontuais que me fazem discordar um pouco.
Além disso, venho procurando compartilhar informações, baseada em minhas investigações informais sobre o fenômeno artificial de se terem sistematicamente lançado na crosta terrestre nos últimos anos, um número sem fim de terremotos com epicentro a dez km de profundidade ou próximo, que me faz desacreditar mais profundamente de uma de suas afirmações: a de que é possível fazer mudanças em nível de um único país. Sim, é possível. Mas, as represálias são também mais violentas, nesses casos. Vide Venezuela. E o que quero dizer ao me referir sempre aos terremotos é que os meios podem ser imperceptíveis, dissimulados. Não sabemos exatamente a que pressões os governos estão sujeitos atualmente. Só nas últimas semanas, sabe-se lá com quais objetivos, o Nepal foi vítima de terremotos dessa natureza, duas vezes, uma no dia 25 de abril e outra, esta terça-feira.
Estamos cercados por pressões muito poderosas que não existiam pouco tempo atrás. São essas catástrofes todas provocadas artificialmente; ao lado desse panorama em que toda a opinião pública mundial é levada a acreditar que de fato há forças terroristas de origem muçulmana (além das que os Estados Unidos criaram) que se devem temer, dando lugar ao retorno de todo tipo de prática (inclusive a tortura e as invasões militares), já banidas da vontade política humana, como algo legítimo, devido à ameaça de inimigos tão cruéis, como seriam esses supostos terroristas muçulmanos; o tráfico sendo implantado de forma sistemática em todo o mundo, levando a que seja muito mais difícil fazer trabalho de base, no caso do Brasil, por exemplo, onde ele é mais fundamental e urgente, que são as favelas. E assim por diante. Não concordo que o panorama seja muito favorável a mudanças isoladas num só país.
Se não formos capazes (como não temos sido, apesar de todos os Foruns Sociais Mundiais etc.) de articular ações globais contra o sistema capitalista, profundas - e não de criação de instituições que vão funcionar tão mal quanto as que foram substituídas, criadas a seu tempo com as mesmas boas intenções - vamos ficar encurralados. Regrar, não muda. Mudam-se as regras novamente, quando o pêndulo do poder muda de sentido, como acontece agora com tantos direitos historicamente conquistados no Brasil, mesmo antes de que os mesmos sejam colocados em prática, como define a lei. Nesse ponto, sou absolutamente materialista: tem poder quem tem acesso aos meios de produção. Como estamos, empilhados em favelas nas grandes cidades enquanto todo o acesso a recursos no Brasil está nas mãos de grandes grupos econômicos, não temos nenhum poder. Podemos, sim, ser massacrados facilmente, como já estamos: o que acontece no Brasil atualmente é uma guerra civil sem causa. Ou melhor: a causa é disputar espaços para vender armas e drogas. E a resposta do Estado, diante do quadro econômico que é obrigado a viabilizar, tem levado ao resultado de nos últimos sete anos ter crescido a nossa população carcerária em 74%, sem contar os tantos mais que morreram assassinados sem direito a julgamento, cujos números são mais altos do que os da maioria das guerras civis no mundo.
E sem contar que muitos dos que ainda estão na terra, trabalham em regime de escravidão, sendo que vinte e cinco mil pessoas são somadas aos contingentes de pessoas desaparecidas na escravidão pelos interiores do Brasil, sem nenhuma punição conforme a lei (que prevê desapropriação das terras para fins de reforma agrária em casos de fazendas identificadas por utilizar trabalho escravo) quando as autoridades vão atrás de denúncias. O problema começa na terra e é na terra que o vamos resolver.
Brasília, a meu ver, internamente tem que acompanhar esse movimento. Mas, o movimento não existe. E externamente tem feito um bom trabalho. Eu me refiro a articulações em nível de uma sociedade civil que não fique querendo tomar espaço de governos, que já estão tentando fazer suas articulações, mas articulações pelas bases que conduzam os governos a um outro patamar de poder. Nós somos incapazes de dar poder a nossos governos para transformar porque, salvo movimentos um pouco mais ativos, como o MST (nem tanto assim), estamos passivamente esperando que as transformações sejam realizadas pelos governos. Os governos não têm poder nenhum. Sempre disse isso e os fatos recentes estão provando isso. Mas, poucos reavaliam a situação de uma forma mais ampla. Procuram descobrir em quais pormenores de alianças de cúpula erraram, sem ver que em toda parte, em todo o mundo, todos os governos passam pela mesma situação. Enquanto todos os movimentos sociais, fracos e dependentes de ações governamentais, se enfraquecem e são ignorados, ou quando protestam das mesmas maneiras de antes, sem um poder concreto que os respalde, são reprimidos. Ficam todos indignados, mudam de canal, curtem no Facebook e nada muda. Quando saímos às ruas, ninguém sabe direito porque e depois dos fatos, ficam os ideólogos debatendo quais teriam sido as reivindicações, sem chegar a um acordo.
E o cerco vai se fechando. Temos que ter esse cerco como dimensão política e não uma suposição teórica do que os governos em tese teriam potencial de fazer. Se o têm, por que não fazem? Porque precisam mais críticas, mais conselhos?
Inclusive, como venho insistindo, um dos cercos que está quase se fechando totalmente, com perfeição, é o fato de que em breve não poderemos mais plantar comida sem recorrer às multinacionais que produzem transgênicos, pois, como o senhor sabe, esse tipo de semente vem tomando todo o espaço das demais e onde entra, poliniza as demais e no entanto, são estéreis, ou seja, não há como produzi-las independentemente. Portanto, a continuar por esse caminho, como estamos continuando, em pouco tempo, nossa soberania alimentar será coisa do passado e toda a humanidade estará nas mãos de poucas empresas que produzem transgênicos, sem piedade. Isso é uma chantagem para a qual não teremos absolutamente nenhuma forma de resistência, se não abrirmos os olhos imediatamente. Porque o mundo que está se armando é nazista.
Mas, na lógica de governos, foi necessário negociar isso: permitir a entrada dos transgênicos para não sofrer maiores represálias. Porque a lógica dos governos é imediatista, pautada pelo período de cada mandato. Se a sociedade civil tivesse se mantido no seu papel de sociedade civil, sem se confundir com governos, teria impedido isso, a todo custo. Mas, mesmo dentro do MST, camponesas foram silenciadas por o fazerem de uma forma que não foi considerada suficientemente institucional, ao que me consta. Estamos numa situação muito grave, tudo isso vem sendo articulado há muito tempo, vem sendo implementado sem recuos e vejo alguns avanços políticos tímidos que ocorreram nos últimos tempos, principalmente na América Latina, como reações frágeis a uma situação de aprofundamento da exploração de todos os povos, que implica atualmente em exterminar muita gente; muita gente. E também torturar por meios muito mais cruéis do que os que se conheciam até pouco tempo. E enfrentar isso em qualquer país, é um risco grande, que poucos governos estarão dispostos a enfrentar, até porque a desinformação de todos os povos é grande demais e teriam que enfrentar suas próprias oposições, financiadas de fora, para fazer isso. Com uma rede de ONGs financiada de fora, para articular essas oposições, contra os pontos que definam como sendo pauta de reivindicações, geralmente sem dar voz em contextos mais amplos de debate, tendo no entanto privilégio como interlocutores de governos em todo o mundo. Eu, por exemplo, me sinto absolutamente excluída desse diálogo. Mesmo quando a minha exclusão foi absolutamente ilegítima, como foi no caso do processo das terras indígenas de Maraiwatsede. Em nome de interesses de latifúndios e uma multinacional italiana, houve essa minha exclusão. Realizada por ONGs. Então, isso nos leva a outro ponto, este menor, que eu gostaria de apontar de um de seus artigos, por não ter concordado muito. O senhor diz que a OXFAM é uma entidade respeitável. Sim, até certo ponto. Mas, não deveria existir. Existe, como as demais ONGs que atuam em âmbito mundial, com financiamentos de países ligados à OTAN, para se intrometer na política dos países onde financiam o que bem entendem, embora, voltando ao caso da OXFAM, seja uma entidade inglesa.
Dias atrás, recebi da OXFAM aqui no Brasil, um apelo dirigido ao mundo, em inglês, para que ativistas do mundo todo interferissem em favor do povo salvadorenho numa decisão que estava sendo tomada pelo Parlamento em El Salvador, com relação à universalização do direito à alimentação e à água, em El Salvador. Por mais justa que fosse a causa, se conduzida pelo povo salvadorenho, escrevi contestando o fato de pretenderem se imiscuir numa decisão do Parlamento em El Salvador, mesmo sendo esta uma boa proposta para o povo salvadorenho, na minha própria opinião. Mas, não lhes cabe imiscuir-se. Deveriam ter se posicionado a respeito de um outro debate que se fazia nos mesmos dias, este sim, internacional, que era o debate sobre a universalização do direito à saúde em nível mundial, o qual o governo de Obama vetou. Essa era uma discussão internacional e fundamental. Mas, as discussões fundamentais não são discutidas. Tais como a atuação das corporações dos países de origem dessas ONGs sediadas em território da OTAN, nos países "pobres" todos onde atuam e onde suas empresas aprofundam a miséria e a extorsão forçada de recursos.
Antes, devo dizer que não apoio minha opinião sobre essa entidade apenas nesta troca de mensagens, mas numa longa observação que faço desde que interferiram num projeto com onze etnias indígenas do estado de Rondônia, que eu coordenava para a ONG IAMÀ, de São Paulo, ainda na década de 90. Fizeram uma intervenção tão negativa (seguindo decisões de bastidores tomadas em suas sedes, em articulação com outras entidades de nível sede - ou seja, europeias ou americanas) que o projeto acabou. E o tipo de interferência que fizeram foi no sentido de nos obrigar a sair da linha de executar projetos piloto de etnodesenvolvimento para influenciar autoridades, mostrando uma outra maneira de desenvolver a Amazônia que pretendíamos fosse difundida para as populações do entorno, para favorecer o que vem sendo feito a mando de ONGs internacionais com todas as populações ligadas à terra: retirar as principais lideranças jovens de dentro de suas comunidades por longos períodos de estudo fora, onde supostamente estariam aprendendo como lutar por seus próprios direitos. Essas lideranças jamais voltam, jamais conquistam outros direitos além de algum cargo para alguns deles, e as famílias que ficam para trás, no desamparo total, acabam abandonando a terra para engrossar os caldos dos que já estão empilhados nas periferias urbanas, sem poder nenhum de barganha, que não seja pela violência.
Desde então, o financiamento para os projetos locais de desenvolvimento foi desaparecendo, pois esta era na verdade uma linha geral que foi adotada nessa época por todas as ONGs internacionais, interferindo diretamente no trabalho com as populações indígenas e tradicionais (e camponesas) do mundo todo: favorecer essa política chamada de "direitos humanos", levando lideranças a formações e capacitações fora de suas áreas, para reivindicar de governos que supostamente estariam preparados para atendê-los, supostos direitos... todo um bla, bla, bla, implantado em nível mundial, por quem não leva a sério o conhecimento de quem faz trabalho local e sabe como as coisas realmente funcionam. Provavelmente, não levam em conta porque os objetivos são outros, não aqueles que explicitam.
É toda uma política absolutamente fracassada, mas continua sendo favorecida. É também um meio de colher informações, pois todo funcionário de ONG é obrigado a lhes fornecer pontuais e regulares relatórios detalhando circunstâncias, recursos, lideranças, todas as informações necessárias para o controle dessa realidade local, onde entram velozmente as grandes corporações mundiais, erradicando as populações locais iludidas por essa política inócua. E assim, vão forjando lideranças ao gosto dessas organizações, pouco críticas, repetitivas, focadas em ganhos pessoais. E devo dizer, finalmente, que uma pessoa, que não tenha visto de trabalho permanente para a Inglaterra, não pode sequer se candidatar para trabalhar na sede da OXFAM nesse país, que é onde se tomam as decisões sobre o que se fará em todo o mundo, com seu dinheiro, influenciando políticas de quem deseja soberania para tomar suas próprias decisões. Inclusive, aliás, a OXFAM jamais vai confrontar as corporações que sugam os países onde atuam, até porque, como pré- requisito de uma vaga à qual pensei em me candidatar no passado com eles, insistiam que o candidato devia ter bom relacionamento com as corporações. Se não se pode atacar o problema de fundo, que são as corporações, não há como fazer transformações, apenas exigindo de governos. Os governos não têm como enfrentá-las sozinhos. Estes têm sido os meus pontos. Acho triste, ter que escrever a si uma mensagem que talvez jamais seja lida, porque em outros locais, meu ponto de vista não tem direito a ser expresso. E apesar de que nossos pontos de vista sobre o que desejamos para o mundo sejam muito próximos, eu acredito que o senhor esteja iludido sobre coisas sérias e fundamentais, embora tenha um grande poder de influência sobre o pensamento político em muitos países, inclusive no meu, onde não tenho direito a manifestar meu ponto de vista de forma institucional, pois as instituições que foram criadas, não comportam pontos de vista diferentes daqueles para os quais foram criadas. Tem sido assim, pelo menos. Deixo-o com um abraço e meus respeitos.
Inês Rosa Bueno
Aantropóloga, professora universitária perita do juiz no processo de terras indígenas de Maraiwatsede.
Enviada em 14 de maio de 2015.
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