Nova realidade social demanda novas formas de organização e novas táticas
15/03/2015
Na minha opinião, já passou da hora em que temos que pensar em novas táticas para defender nossos interesses, porque os poderes que estamos enfrentando se sobrepõem a qualquer governo.
Foi muito interessante a entrevista que Ana Esther Ceceña concedeu sexta-feira a diversas entidades da América Latina toda, por meio da entidade ALER, do Equador, sobre a questão geopolítica na América Latina e o intervencionismo cada dia mais perigoso que nos assola. (Caso tenha interesse, vai estar disponível a partir de amanhã à noite neste site: http://aler.org/online-as.html ). Ela repete algumas vezes que as estratégias dos movimentos sociais nem sempre coincidem com as dos governos, porque para além dos governos existe a Razão de Estado. E essa Razão de Estado, no meu ponto de vista, seja pelo motivo que for, está cada dia mais incompreensível para nós em todos os cantos do mundo. Ou seja, a razão, a gente compreende. Por que motivo o Estado cede tão facilmente a essa razão, mesmo quando ocupado por governos dos quais esperávamos mais, é algo que a meu ver tem que ser mais bem compreendido, para que a gente não continue batendo sempre nas mesmas teclas e lutando das mesmas maneiras, cada dia mais inócuas.
As manifestações, por exemplo, continuam sendo importantes, mas em grande medida se banalizaram e duvido muito que alguma razão de Estado ou razão das grandes corporações se sensibilize diante de grandes manifestações. Muitas vezes as mobilizam para defender seus próprios interesses, como temos visto mundo afora e vimos hoje no Brasil. Muito graves as manifestações de cultura ditatorial que se expressaram na manifestação democrática que percorreu as ruas do país hoje. Muito graves as medidas econômicas e políticas que o governo vem adotando. Mas, não podemos deixar de observar que mesmo nos Estados Unidos e Europa, a democracia vem sendo restringida velozmente, cruelmente. Já há na Europa diversas cadeias funcionando com presos políticos sendo torturados. Os pretextos são fabricados livremente pela mídia internacional controlada. Mas, as respostas são quase inexistentes, apesar de todas as evidências de farsa que todos enxergamos e comentamos em surdina. Por que não conseguimos deter essa onda global contra a democracia?
Ou seja, resta-nos o consolo de tentar exigir algo dos governos mais próximos de nossos problemas, cujas origens são diversas. Mas, são formas de exigir que nos trazem cada dia menos resultados, menos vitórias. As pessoas, de quem esperávamos que fossem nossos companheiros de luta, vão se tornando insensíveis, inundadas pelo denuncismo constante com que são assediadas permanentemente em todo meio de comunicação, inclusive internet. E só se manifestam quando o apelo emocional, geralmente via televisão, é forte e repetitivo o suficiente. E esse apelo só é feito, dessa forma persistente e insistente e com carga emocional, quando a causa já foi encomendada por interesses ou poderes muito distantes daqueles que ainda tentamos ou sonhamos construir de forma orgânica.
Ou seja, quase não temos mais armas nas mãos para lutar por direitos e por democracia... Estamos quase todo o tempo lutando para recuperar algo que tínhamos e que estamos em vias de perder. Como foi por exemplo, com o Código Florestal, agora os direitos indígenas à terra, os direitos trabalhistas e assim por diante... sempre correndo atrás do prejuízo sobre algo que foi uma conquista no passado. Vamos de mal a pior, mesmo sem perceber, porque o ativismo político aumenta... mas sem resultado.
Também, com cada vez mais de nós no mercado informal de trabalho, já quase não temos o recurso à greve. E cada um de nós que vai para o mercado informal de trabalho ou fica desempregado, fica também à margem do processo político, pois não dispõe de nenhum tipo de organização que o represente.
Temos que reformular tudo isso.. inventar novas formas de representação para a nossa realidade social real... e não aquela que imaginamos séculos atrás... ou essa forma de luta dispersiva e desfocada dos objetivos centrais, que nos chega de cima para baixo, a partir de um sistema de organizações não governamentais que dependem de financiamentos e contratos de trabalho para funcionar, segundo os desígnios de quem financia tudo isso... sempre em troca de informações detalhadas sobre o que se passa nas bases de nossas sociedades. Precisamos, assim como vêm surgindo algumas organizações novas e inovadoras para representar as favelas, representar essa realidade lumpen e abandonada em que estamos entrando a passos largos. Formas de organização do desempregado, do lumpensinato, do trabalhador informal, para que não fique à margem da política, além de já estar à margem da economia.
Porque essa parcela da população já é uma grande maioria em todo o mundo.. sem qualquer forma de representação em sua essência, que é a condição de trabalhador. Ela se representa apenas, por vezes, enquanto morador de um local determinado. Ou enquanto um não morador de lugar algum, no caso do movimento de sem tetos que vem crescendo também. Ou, tivemos o importante Movimento dos Sem Terra, que na verdade é a condição camuflada de muitos que estão envolvidos com outras reivindicações menos abrangentes, mas que eu creio que também é um movimento que vem perdendo força, com o apelo consumista das grandes corporações nas grandes cidades, que faz com que grandes contingentes da população que deveriam estar na luta pela terra, estejam empilhados nas cidades em situação de crescente risco de todo tipo. Ou então, nos manifestamos pela condição de consumidor de um serviço público ou mercadoria determinados. Ou enquanto grupo étnico ou cultural ou de estudo. Mas, não nos manifestamos na essência da nossa relação com a sociedade, que é o nosso meio de sobrevivência. Ou o meio inexistente de sobrevivência e trabalho pelo qual ocorre a nossa marginalização na sociedade e o lançamento de um indivíduo só e abandonado numa condição de dependente da boa vontade de um Estado, cada dia mais pressionado a abandonar suas responsabilidades para com essa realidade, mundo afora.
E precisamos novas formas, mais eficientes, de nos manifestar, de fazer valer nossos poderes, quase inexistentes diante do capitalismo financeiro exterminador que nos abate. Novas táticas. Novas estratégias. Precisamos nos rever e rever cada uma de nossas táticas com realismo, sem preocupação em representar teorias pelas quais nos agrupamos mas, sim, usar as teorias para que nos sirvam de algo, quando necessário e quando úteis. Estou um pouco cansada também da ditadura das discussões corporativistas que ocorrem dentro dos atuais modelos de representação e organização. Não há debate. Não há a mínima abertura para o novo e atual. É sempre o que já foi decidido antes, o que se consegue debater, chegando na maioria dos casos às mesmas soluções, baseadas no mesmo tipo de fórmulas, sem um novo equacionamento da realidade e das táticas mais adequadas a essa realidade. Em todas as entidades ou agrupamentos para debate e reflexão.
As tais redes sociais não mudaram nada. Ali dentro, surgem todo tipo de denúncias, de todo tipo de pequeno ou grande assunto, mas é apenas uma gigantesca catarse. Só vingam como temas a serem de fato levados adiante, aqueles que tenham alguma encomenda superior de serem tratados como prioridade. E as pessoas vão ficando absolutamente blasés de ver tantas denúncias passarem na sua frente de forma virtual, constantemente.
Rio de Janeiro, 15/03/2015
Inês Rosa Bueno
Antropóloga, professora universitária
https://www.alainet.org/es/node/168223
Del mismo autor
- “Uma Pedrada na Cabeça e no Coração do Brasil” 22/06/2015
- Carta aberta a Boaventura dos Santos 05/06/2015
- Nova realidade social demanda novas formas de organização e novas táticas 15/03/2015
- O fim do indigenismo estatal no Brasil 22/12/2014
- Algumas questões indígenas no Brasil 16/01/2012