Movimentos sociais Afrolatinoamericanos
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Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 501: El Decenio Afrodescendiente 10/02/2015 |
O anúncio de 2015 como o ano em que começa o Decênio d@s Afrodescendentes declarado pela Organização das Nações Unidas suscitou uma chuva de propostas sobre seu significado e implicações. Poucos observaram que o decênio é produto da agenda impulsionada pelos movimentos afrolatinoamericanos no contexto da Terceira Conferência Mundial Contra o Racismo celebrado em Durban, África do Sul, em 2001, e muito menos que a ideia da representação na ONU foi primeiramente proposta por Malcom X como porta-voz da Organização de Unidade Afroamericana.
Desde a ótica de movimento social, as designações de 2011 como o ano internacional d@s Afrodescendentes e de 2015 como o começo do Decênio, são passos para a criação de um Fórum Permanente na ONU para assuntos das pessoas e dos povos da Africanía no mundo, que é dizer, o continente africano e a diáspora africana global. Visto do ângulo das comunidades e de movimentos sociais, esta deveria ser um espaço de participação ampla, no qual se possam reunir representantes dos múltiplos lugares do mundo afro para discutir problemas, elucidar soluções, planejar estratégias do bem estar grupal, organizar ações coletivas, desenhar e negociar políticas com os poderes governamentais e transnacionais. Um exemplo da relevância desta institucionalidade onde primam aos movimentos sociais é o Fórum Permanente dos Povos Indígenas na ONU. Em vista disto, é possível fazer uma análise de conjuntura dos movimentos sociais afrodescendentes na América Latina e no Caribe no momento atual.
Se gestam redes
Nos anos 80 e 90, redes do movimento social através de América Latina e do Caribe foram tecidas para que, no alvorecer do século XXI, construíssem uma pequena revolução político-cultural na região, cujas expressões eram o reconhecimento público do racismo como um problema e a criação de espaços institucionais para promover a equidade racial e a representação dos afrodescendentes de toda a região. Estas conquistas foram resultado da gestão dos movimentos negros que articularam uma agenda regional e global contra o racismo e pelo empoderamento coletivo durante o processo de preparação para a conferência de Durban em 2001. A organização da Rede de Mulheres Afrolatinoamericanas e Caribenhas em 1992 e da Aliança Estratégica Afrodescendente em 1998 foram marcos neste processo organizacional.
O reconhecimento d@s afrodescendentes como sujeitos políticos com suas próprias reivindicações e demandas cidadãs resultou em uma faca de dois gumes, quer dizer, ao mesmo tempo em que abriu caminhos para combater o racismo e advogar em prol do poder negro, também facilitou a integração relativa da ação política afrodescendente às instituições do Estado e às agências da chamada cooperação internacional, entre as quais se encontram os pilares do capital transnacional como o Banco Mundial e do estado imperial como USAID. Este catalizou a cisão do campo político afro na região até o ponto que em 2011, o ano internacional marcou uma divisão entre o setor que Chucho García batizou como Afrodireita e as esquerdas afrodescendentes. Nesse contexto, se debateu três assuntos chaves: 1) A questão da democracia por via da crítica que se fez à celebração de uma cúpula da Africania em Honduras promovida por um governo golpista; 2) a posição das organizações afrodescendentes sobre a globalização neoliberal capitalista que a Afrodireita vê como uma fonte dos recursos e poder, enquanto os setores de esquerda a compreendem como o cenário mundial e regional que orienta os programas de desenvolvimento que expulsam as comunidades negras de seus territórios e políticas de multiculturalismo neoliberal que reconhecem direitos culturais d@s afrodescendentes e indígenas, e até denunciam o racismo, mas mantêm um status quo político e socioeconômico no qual a riqueza e o poder permanecem nas mãos das elites branco-mestiças que dominam historicamente; 3) a relevância mesma das distinções entre direita e esquerda para os movimentos sociais dos afrodescendentes.
Em junho de 2011, as esquerdas negras da região se reagruparam, organizando a Articulação Regional Afrodescendente na América Latina e Caribe (ARAAC) em duas conferências consecutivas: o primeiro no Centro Juan Marinello de Cuba e a outro no IV Encontro de Afrodescendentes e Transformações Revolucionárias na América Latina e Caribe, na Venezuela. ARAAC é uma rede de movimentos sociais que, como tal, tem a autonomia dos Estados e das instituições transnacionais (ONGs, agências da cooperação, etc.), ao mesmo tempo em que gestiona as causas afrodescendentes, como a elaboração e implementação das políticas contra o racismo e pela equidade étnico-racial em todas as escalas, desde governos locais até as iniciativas de integração regional como a ALBA, UNASUR e CELAC. Em consonância com seus alinhamentos programáticos, a ARAAC abriu a participação em conclaves estatais da nova integração regional, onde se têm aprovado resoluções contra o racismo, espaços de representação e programas para afrodescendentes; como também em reuniões regionais de movimentos sociais ou políticos, como o Fórum do São Paulo. Não obstante, não se avançou muito além das resoluções; e nem nas condições de desigualdade socioeconômica, nem na carência de poder político, nem a experiência cotidiana do racismo diminuiu significativamente para a maioria dos afrodescendentes. Esta é uma situação vigente na região, sem negar as conquistas relativas, principalmente nos países onde houve transformações históricas.
A brecha entre os discursos e os decretos governamentais e a realidade vivida pelas maiorias subordinadas é um dos desafios principais dos movimentos sociais. Desde a mudança constitucional de 1987 na Nicarágua, proliferou a retórica que define os países como interculturais, países multiétnicos e, no caso da Bolívia e do Equador, plurinacionais. Mas este relativo reconhecimento étnico-racial sequer significou mudanças substantivas nos currículos eurocêntricos/ocidentalistas dos sistemas educativos e muito menos transformações profundas na redistribuição da riqueza e do poder nas sociedades. Não é a surpresa que o Banco Mundial qualifique ainda aos afrolatinoamerican@s como “os mais pobres das Américas”, que as proporções de negr@s estudantes nas universidades tende a ser menos de 3%, e que sequer as elites políticas afrodescendentes tenham um pedaço próprio do bolo estatal. Ainda que seja certo que o capitalismo neoliberal tem exacerbado estas brechas de desigualdade, tampouco podemos negar que os estados denominados “progressistas”, “pós-neoliberais”, ou do “socialismo do século XXI” não demonstraram grande vontade para mudar estas circunstâncias. As forças vivas contra o racismo estrutural, que enfrentam tanto as desigualdades econômicas, políticas, históricas, como culturais, que caracterizam a condição de opressão na qual vivem as maiorias subalternas afrodescendentes na região vivem, são os movimentos sociais, tanto o próprio movimento negro, como a participação da gente afro em movimentos camponeses, de trabalhadores, feministas, urbanos, estudantis, etc.
Movimentos e governos progressistas
O acionar dos movimentos vai abrindo uma ruptura no tempo. Se @s afrocolombian@s não tivessem a representação na constituiente de 1991, quando ainda não eram reconocid@s como sujeitos políticos, ali não teria se constituído as bases para a aprovação da lei 70 (a chamada “lei das Negritudes”) em 1993, com indicativos de propriedade coletiva da terra, educação afro, representação política e consulta prévia. Este precedente, junto com as ações coletivas dos movimentos negros de cada país, deram margem para que posteriormente as mudanças constitucionais na Venezuela e no Equador reconhecessem direitos próprios d@s afrodescendentes. Em vista disto, cabe perguntar: Que diferença existe para um movimento afro estar em um país comprometido ativamente com o capitalismo neoliberal e o estado imperial como a Colômbia, em contraponto a estar situado no Equador ou na Venezuela?
Aqui existem três diferenças chaves que se destacar entre Estados neoliberais e projetos de Estado pós-capitalista: 1) As políticas universais redestributivas promovidas pela política neodesenvolvimentista dos governos dos pós-neoliberais beneficiam até certo ponto os setores subalternos, o que melhora, mas não resolve a desigualdade social afrodescendente; 2) nos novos paradigmas de emancipação há uma maior afinidade política e ideológica com formas de cidadania diferenciada onde a justiça e a democracia radical se nutrem das reivindicações não somente de classe, mas também étnico-raciais, ecológicas, de gênero e sexualidade; 3) os Estados que declaram compromisso com a democracia participativa, e que se identificam pelo menos parcialmente como “governos dos movimentos”, têm uma obrigação moral, pelo menos retórica, de dar espaços do governo à constelação dos movimentos. Rigorosamente falando, não há exercício de democracia radical em nenhum país da região, mas a mediação do clientelismo e dos partidos é maior nos Estados neoliberais. Além disso, no plano da política externa, as políticas anti-imperialistas têm produzido frutos, tanto na importância que primeiro Cuba e logo depois Venezuela concederam às relações diplomáticas com o continente africano, como na solidariedade com as lutas anticoloniais dos povos africanos, e também com o movimento negro dos EUA.
A partir da constituição de 2008, o Equador aprovou as melhores leis do mundo para afrodescendentes, declarando-os como povo, reconhecendo os direitos coletivos ao território e à educação, e aclamando as afrorreparações em geral e as ações afirmativas em particular. Em 2010 se fortaleceu a vontade constitucional com um decreto presidencial que serviu de base para o Plano Plurinacional contra o Racismo e a Discriminação. Não obstante, não são muitas as mudanças visíveis em relação ao racismo cotidiano, nem na construção de um projeto novo do país onde o povo afrodescendente tenha um lugar de maior reconhecimento e de poder. O Primeiro Congresso do Povo Afroequatoriano reuniu representantes de todo o país em Guayaquil, em setembro de 2012, que elaboraram uma plataforma política que ainda serve de bandeira para mobiliza as bases que ali participaram para impulsionar seus objetivos.
O caso colombiano
Colômbia, o terceiro país de maior população afrodescendente nas Américas (depois do Brasil e dos Estados Unidos) é o cenário das maiores disputas no campo político afrolatinoamericano. O primeiro Congresso Nacional Afrocolombiano celebrado em Quibdó, Chocó, em agosto de 2013, produto de 35 congressos locais através do território colombiano, reuniu todas as tendências do vasto e variado movimento social afrocolombiano, que inclui desde a afrodireita (tanto de base quanto de elite) até a pluralidade de identidades, comunidades, e setores de esquerda que o compõem.
As diferenças neste cenário se ilustram claramente nos discursos. O presidente Santos, no congresso de Quibdó e na Cúpula de Prefeitos e Dignitários da África e da Diáspora (celebrada em Cali e Cartagena em setembro de 2013), além de seus slogans contra o racismo, defendeu o plano neoliberal da Aliança do Pacífico e de sua locomotiva de desenvolvimento com a grande mineração que, junto com o conflito armado, é uma das fontes que gera cinco milhões do desalojados na Colômbia. Em contraponto, os conselhos comunitários e os programas das organizações do movimento social (como o Processo de Comunidades Negras e CONAFRO) rejeitam os megaprojetos neoliberais, denunciam a apropriação de territórios ancestrais por atores armados, e promovem autonomias locais para o autogoverno e a produção ecológica e sustentável em prol da soberania alimentar.
A Autoridade Nacional Afrocolombiana (ANAFRO), eleita no congresso do Quibdó, é uma verdadeira liderança, produto de um processo deliberativo e participativo que representa não somente a variedade regional do povo afrocolombiano, palenquero e raizal, mas também sua diversidade de gênero e sexualidade. Em seus alinhamentos programáticos, a ANAFRO aponta que, dado que a maioria do povo afrocolombiano vive nas cidades, questões urbanas como o consumo coletivo da instrução, saúde e moradia, as lutas contra o racismo em espaços urbanos, as políticas pelo bem estar dos afrodescendentes (por exemplo, famílias desalojadas que vivem em condições de marginalidade), e o poder político dos governos locais, devem ser prioridade. Neste sentido, a Colômbia é muito similar ao Brasil, o único país de América Latina onde a maioria da população se declara afrodescendente e é um baluarte tanto dos movimentos sociais negros como das políticas governamentais de equidade racial, assuntos que nós não discutimos neste escrito.
Como bem levantou Fernando Martinez Heredia na mencionada conferência no Centro Juan Marinello, em 2011: “o aprofundamento do socialismo em Cuba necessariamente terá que ser antirracista”. Em setembro de 2012, um capítulo de ARAAC em Cuba foi organizado, o qual reúne muitas das figuras chaves ativas tento na atividade intelectual, como cultural e político, em favor da equidade racial e para a causa da valorização plena da cultura afrocubana. Mais de 50 anos de sociedade pós-capitalista em Cuba demonstraram tanto avanços na gestão contra o racismo e pela igualdade, quanto a persistência da desigualdade racial e, consequentemente, a necessidade de priorizar sua eliminação para qualquer projeto de libertação. Por isso, se o conceito de socialismo do século XXI tivesse algum sentido além de um slogan sem conteúdo substantivo, teria que ser antirracista além de anticapitalista, anti-imperialista e antipatriarcal.
Muit@s argumentamos que nós vivemos em um momento de crise da civilização ocidental do capitalista, em que uma onda nova de movimentos antissistêmicos encarna a esperança de dar a luz a uma nova ordem mundial, gerando laços de libertação contra todas as correntes de opressão: de classe, étnico-raciais, gênero, sexualidade, geração, ecológica. Em todas as ondas precedentes de movimentos antissistêmicos, os movimentos da África e da Diáspora Africana foram protagonistas desde a revolução haitiana, passando pelo Pan-Africanismo radical da década de 1930 (o Marxismo Negro, o Afrofeminismo, o movimento de Negritude, o renascimento do Harlem), até as lutas anticoloniais na África e no Caribe, ao lado do movimento de Liberação Negra nos EUA entre os 50 e os 70. Nesta conjuntura, é um desafio para os movimentos negros assumir a responsabilidade e liderança; visto que as correntes de esquerda que não reconhecem a centralidade do racismo na modernidade do capitalista, devem reconhecer a importância histórica dos sujeitos da Africania na gestação de uma libertação plena da humanidade.
Agustín Laó Montes, da origem portorriquenho, é uma intelectual-activista, professor-investigador na Universidade de Massachusetts e membro da Articulação Regional Afrodescendente na América Latina e no Caribe.
Artigo publicado na América Latina en Movimiento , No. 501: http://alainet.org/publica/501.phtml
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