Bolívia e a infantaria imperialista das ONGs

23/04/2012
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O que está acontecendo na Bolívia em torno da construção de uma estrada que atravessaria o Território Indígena do Parque Nacional Isiboro Secure e deveria unir  Cochabamba à região de Beni (esperada há 185 anos) ilustra a dificuldade, os desafios e extravios que existem nesse país quando se trata de levar adiante um projeto integrado que busque superar o atraso e torná-lo parte eficiente do processo de unificação latino- americana. Inclusive neste momento, quando um governo de inegável extração popular ocupa a sede do Palácio Quemado.
 
A história boliviana é trágica e intensa como poucas. Sua condenação ao isolamento depois da guerra do Pacífico com o Chile no século XIX agudizou o problema da balcanização da América latina, já dilacerada após a liberação do Império Espanhol. Essa liberação não redundou num continente unido, como o desejaram San Martín e Bolívar. Trocamos um amo por outro.
 
Primeiro pelo império britânico e depois pelos Estados Unidos, interessados em manter estes países separados entre si e presos a uma conexão dependente das metrópoles que  os obrigou a um desenvolvimento raquítico: enquanto as oligarquias e as burguesias comerciais se enriqueciam, as massas populares eram condenadas à anemia física e à anomia cultural.
 
Na Bolívia esta situação foi levada ao extremo dada a presença de uma casta feudal e de uma massa indígena iletrada e expoliada durante séculos com uma crueldade sem tamanho. Hoje, depois de sangrentas idas e vindas de uma revolução quase permanente, essa situação se superou em boa parte, mas ainda há sobrevivências dela. Mais grave, a luta camponesa e indígena, da qual a presidência de Evo Morales é o resultado, corre o risco de se extraviar por seus erros e por agressões externas. Estas últimas são favorecidas pela ação de entidades que, na aparência, estão repletas de boa vontade: as Organizações Não Governamentais - ONGs. Na verdade, mais do que organismos humanitários, as ONGs se configuram como uma armadilha ideológica  e “politicamente correta” em que muitos intelectuais progressistas e gente bem intencionada acaba caindo.
 
Apadrinhadas pela Europa e Estados Unidos as ONGs na Bolívia e outros lados fazem do ecologismo - que costuma servir para travar iniciativas necessárias ao desenvolvimento - e dos “povos originários” plataformas para desviá-los de revoluções e convertê-los em fatores capazes de atentar contra a necessária unidade territorial e de ação que só pode ser garantida por uma organização estatal centralizada e comprometida com o crescimento e a soberania do conjunto de um país.
 
O governo de Evo Morales e de seu vice-presidente, Álvaro García Linera, cometeu o gravíssimo erro  de conceder uma constituição que torna a Bolívia um país plurinacional, formado por 36 etnias que se arrogam ou podem se arrogar direitos inalienáveis sobre o terreno que pisam. Segundo as expressões de acadêmicos norte-americanos patrocinados pela embaixada dos Estados Unidos em La Paz, “as tribos são donas dos recursos naturais que estão sobre e debaixo da terra”, e “onde há gás, sua propriedade é dos povos indígenas e não da totalidade da população”.
 
Estas afirmacões não revestiriam maior importância do que a de uma insolente intromissão teórica nos assuntos internos de um país estrangeiro, não fosse porque a Bolívia aderiu incondicionalmente à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007. Se transgredir suas normas, pode ser demandada na Corte Interamericana de Justiça, cujas decisões pretendem ser obrigatórias. Não se pode prever as sequelas de uma condenação desse gênero, mas o mundo está mostrando neste momento aonde se pode chegar se enveredamos por este caminho. A oposição dos países da ALBA à intervenção da OTAN na Líbia, por exemplo, é expressiva do temor que provocam as potencialidades ínsitas na sistematização de uma legalidade supranacional controlada pelas grandes potências.
 
O teorema que defende o direito a dispor dos recursos naturais sobre que se assentam os povos originários tem um objetivo que se pretende dissimular: a transferência desses recursos para as transnacionais, que seriam as únicas em condições de oferecer os capitais privados, equipamentos e os subornos que lhes permitiriam levar adiante  semelhante empresa sem o auxílio do Estado. Isto levaria à corrupção dos dirigentes indígenas e esvaziaria o poder central da sua capacidade de gerir com independência o desenvolvimento da Bolívia como um todo.
 
Não há dúvidas de que é indispensável reconhecer a originalidade cultural e os direitos sociais e humanos dos mais pobres entre os mais pobres da terra, mas sem querer separá-los do corpo nacional onde se encontram. Também não há dúvidas de que não se pode admitir a utilização demagógica e mentirosa das legítimas reivindicações dos povos isolados ou relegados pelos poderes sistêmicos que se apoderam do mundo. Como disse Samir Amin e não nos cansamos de repetir, “é importante ser diferente, porém é muito mais importante sermos iguais”. A absolutização do princípio da originalidade só pode resultar na manipulação divisionista, na criação de conflitos artificiais e no enfraquecimento das estruturas nacionais que, na América latina, lutam para se associar mais estreitamente com vistas a constituir um bloco regional capaz de resistir as pressões do imperialismo rampante.
 
Os cavalos de Troia
 
No século XIX o imperialismo balcanizou este continente em países que se davam as costas para olhar as metrópoles. No XXI podemos estar certos de que tentarão estilhaçá-lo em partículas étnicas ali onde a oportunidade se apresente. A Bolívia pode ser  testemunha do que pode acontecer em outros lugares da América latina. Onde houver recursos de valor, os interesses e intenções do sistema hegemônico em controlá-los poderão ser camuflados como reivindicações da preservação planetária…
 
O divide et impera sempre foi um princípio básico dos sistemas hegemônicos. Depois da queda da URSS, entretanto, este princípio está fazendo estragos em todo o planeta.
 
Nas condições do mundo atual o ecologismo e o indigenismo, dois movimentos que podem ter surgido da genuína preocupação com a mudança climática e o destino dos povos mais indefesos do planeta, estão se transformando ou já se transformaram em Cavalos de Troia do imperialismo para dividir-nos e avançar em seu esquema globalizador. A verdade é que os ecologismos e as ONGs propõem uma agenda muito funcional ao projeto das potências imperiais na medida em que banalizam e normalizam o direito a ingerência, ignorando assim qualquer possibilidade destes países determinarem o seu próprio porvir. A sequela de estragos que estas ações provocam  nos povos que lutam, trabalhosamente, para superar a servidão colonial a qual foram submetidos há séculos e que os impediu de se organizarem como nações verdadeiramente modernas, é injustificável. Há muitos anos atrás León Trotsky sintetizava este dilema dizendo: “Os civilizados fecham o caminho aos que se civilizam”.
 
Enrique Lacolla é jornalista, escritor e crítico de arte.
(Trad. Fernando Barro Lapol)
 
 Fonte: Caros Amigos,  Edição 181 - Abril de 2012
 
https://www.alainet.org/es/node/157414?language=en

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