Davos e o capitalismo

14/02/2012
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A notícia do século: O Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos, Suíça reuniu as elites políticas, econômicas e financeiras do mundo para debater o paradigma do capitalismo. Mas os capitalistas quase nunca falavam em capitalismo, não é? Pois em Davos falaram, colocando uma pergunta surpreendente como eixo das discussões: “Será que o capitalismo do século 20 está deixando à míngua a sociedade do século 21?”
 
Fato notável que tem a ver com a crise do capitalismo, uma crise sistêmica e estrutural. Ela está tendo efeitos devastadores sobre o sistema de poder nacional e mundial e tem assombrado os poderosos. Eles nunca antes atribuíram uma crise ao sistema como tal. Sempre se esforçaram para culpar fatores isolados, ou fingiram que tratando os sintomas erradicariam a doença do organismo inteiro. Agora, já não podem enganar ninguém. Nem eles próprios!
 
Em Davos, eles procuraram identificar os elementos capazes de dar “uma solução definitiva às turbulências provocadas pela dívida soberana de vários países”[1]. Olhando a história das crises bancárias nos últimos 100 anos, solução definitiva soa mais como piada. De 1980 para cá, segundo o Nobel Joseph Stiglitz, foram 96 crises bancárias e 176 crises monetárias. O estoque de derivativos e dívidas impagáveis é equivalente a US$ 200 trilhões de dólares, ou quase quatro vezes o produto bruto mundial.
 
Olhemos o problema de frente: o capitalismo é um sistema tendente ao caos. Como ele está fundado no paradigma do eu-sem-nós, ele é incapaz de ver o sistema. A lógica do máximo proveito para o indivíduo, seja ele pessoa, empresa, clã, nação, raça ou gênero, produziu o pior dos mundos. Cada um olha o outro como uma ameaça ao seu império absolutista, e tende a combatê-lo, neutralizá-lo ou eliminá-lo num espaço em que a guerra é a regra – guerra de todos contra todos. Por isso, fala-se em guerra comercial, guerra produtiva, guerra financeira, guerra fiscal, guerra de sexos e até mesmo guerra contra a Natureza. E a guerra é um jogo perde-perde, pois no longo prazo o vencedor será vencido por um novo vencedor que, por sua vez, verá seu poder desafiado e combatido. O problema não é o poder, no abstrato, mas o poder excludente, o poder de subordinar, oprimir, explorar ou excluir o outro como se ele fosse inferior ou nulo. Esta é a lógica darwiniana: só tem direito a evoluir quem tem vantagem comparativa sobre o outro, e só tem esta vantagem quem tem força – física, financeira, cerebral... Qualquer sistema assim organizado tende à guerra total, à mútua destruição, ao caos. Esse é o caso do capitalismo globalizado, e o mundo está podendo degustar uma vez mais esta sua natureza caótica.
 
Nada na história se afastou tanto da natureza humana. A harmonia social e ambiental é condição para o bem viver e a felicidade. Pois se há uma fome e uma sede essenciais à humanidade, são elas a fome de beleza, de alegria e de felicidade, e a sede de sociabilidade, de entendimento, de afeto e de amor. Se a economia caminha a contrapelo dessas necessidades intrínsecas à natureza humana em evolução, ela tem que mudar.
 
O capitalismo dos livros de economia é um sistema regido pelo mercado, e os apóstolos do mercado dizem que a oferta e a procura não precisam de regras nem de fiscalização. Sua interação gera ‘naturalmente’ igualdade social, satisfação econômica de todos, ordem e segurança. Isto é, tudo que o mundo desconhece hoje. E mais. Até 1989, o capitalismo tinha um bode expiatório para culpar de suas crises: o comunismo. Agora que ele reina sem ameaças de outro sistema capaz de confrontá-lo, ele já não tem a quem culpar.
 
A realidade é bem diferente dos manuais. Na hora da crise, o capitalismo privado recorre ao Estado para uma tábua de salvação. E isto acontece porque existe uma aliança de classe entre os dirigentes corporativos e os políticos que dominam o Estado. Acontece também porque o mundo carece de real democracia, de sociedades cidadãs dispostas a autogerir-se e a reduzir o Estado a um mero orquestrador da diversidade. As consequências da crise caem como um tsunami sobre as classes trabalhadoras e as massas desempregadas.
 
Entre 2008 e 2010, só o governo dos Estados Unidos transferiu cerca de US$ 14 trilhões para os bancos, financeiras e seguradoras em crise. Foi pela ganância e imprevidência desses mesmos agentes que a crise cresceu até o ponto de explodir. Pois são eles os agraciados agora com os fundos públicos em mãos dos governos e agências multilaterais e nacionais, como o FMI, o Banco Mundial, o Banco Central Europeu, os bancos centrais nacionais, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outros.
 
O grande capital tem razão de temer o futuro: ele é a causa da sua própria destruição, pela sua ganância de possuir e controlar tudo, e pela falta de inteligência emocional ao tentar afastar as pessoas umas das outras, fragmentá-las por fora e por dentro. Os grandes capitalistas estão levando ao extremo as contradições do sistema que lhes dá poder. Em 1998, Susan George escreveu: “A diferença entre nossos tempos e o de Marx é que ser explorado hoje é quase um privilégio. ‘Exclusão’ em vez de ‘exploração’ é a palavra-chave, pois o capital exclui mais gente do que ele precisa incluir no processo de extrair mais valia.” [2]Pois é no seio das sociedades do hemisfério rico que os “99%” explorados e excluídos estão protestando e exigindo uma profunda reorganização da sociedade. As causas de protesto – rejeição do ajuste fiscal comandado pela Troika[3] e a recusa de pagarem pela crise dos bancos super-ricos e pela dívida pública irresponsável dos seus governos – confluem com as demandas ligadas à crise climática e à sustentabilidade social e ambiental.
 
De Porto Alegre, o Fórum Social Temático 2012 ouviu repetidas palavras de sensatez criativa: não basta chamar de ‘verde’ a economia de mercado, não basta inventar tecnologias para diminuir os efeitos da economia centrada no lucro e no crescimento ilimitado. Nessa edição do Fórum Social Mundial (FSM), focado na temática “Crise Capitalista, Justiça Social e Ambiental”, ficou claro que o termo sustentabilidade implica limites ao crescimento, reorientação planejada da atividade econômica para gerar condições sempre renovadas de bem viver para toda a humanidade. É preciso superar as causas da crise múltipla que está levando o Planeta à agonia. Outro mundo é possível, e ele já está nascendo em cada troca solidária, em cada moeda social que empodera comunidades, em cada bairro ou aldeia em transição, em cada ecovila e em cada família camponesa que pratica a permacultura, a agroecologia e a convivência solidária, não hierárquica e sustentável.
 
Em junho de 2012 dois encontros de alcance global merecem atenção: a Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável e a Cúpula dos Povos por Justiça Social e Ambiental. A ONU, os governos do Norte e as empresas globais decidiram excluir da agenda a avaliação dos resultados dos 20 anos de acordos internacionais, que definiram metas de desenvolvimento sustentável, incluindo o clima, a biodiversidade, a contaminação do ar, do solo, das águas, etc. Eles dizem que é preciso “olhar para frente e não para trás”. A sociedade civil mundial vai mostrar indicadores que comprovam o fracasso daqueles acordos e vai mostrar que a proposta de uma “Economia Verde” – economia e mercado pintados de verde, tecnologias ‘verdes’, mercantilização da vida e mercados cativos dos bens comuns da natureza – significa a continuação da destruição ambiental e o aprofundamento das desigualdades sociais que já estão aí. O envolvimento nesses eventos de todas e todos que se sentem comprometidos com o despertar da consciência e a ação transformadora do planeta é necessário e urgente!
 

[1] Valor Econômico, 30.1.12: A7.
[2] George, Susan, 1998, “Preface”, in Privatizing Nature: Political Struggles for the Global Commons, Michael Goldman, editor. TNI-Pluto Press, Amsterdam-London, p. X.
[3] Em russo, a palavra Troika se refere a um comitê de três membros. No caso, o Banco Central Europeu, a Comissão Econômica Europeia e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
 
- Marcos Arrudaé Economista e Educador do PACS, Rio de Janeiro, membro associado do Instituto Transnacional, Amsterdam.
 
PACS - Massa Crítica nº 58
Análise de conjuntura sobre fatos da atualidade nacional e internacional.
https://www.alainet.org/es/node/155891
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