Impasse na ALCA: vale a pena continuar?
11/02/2004
- Opinión
Com o passar do tempo, vai ficando cada vez mais claro que o Brasil
tem muito a perder e pouco ou nada a ganhar com a Alca.
Terminou em impasse a mais recente reunião para a negociação da Alca
(Área de Livre Comércio das Américas), realizada em Puebla (México).
Confirmou-se o que se previa: os Estados Unidos e diversos outros
países não estão inteiramente conformados com o resultado da
reunião ministerial de novembro em Miami, aquela que consagrou a
Alca "light", isto é, o formato de negociação mais flexível e menos
ambicioso que vinha sendo defendido pelo Brasil desde o início do
governo Lula.
Sob a liderança dos EUA, formou-se um grupo de 14 países que atuou
de forma coordenada em Puebla, contrapondo-se às propostas do
Mercosul e de outros países. O G-14 inclui, além dos EUA e do
Canadá, o México, quase toda a América Central e quatro nações sul-
americanas (Colômbia, Peru, Equador e Chile).
O que querem Washington e seus aliados? Basicamente que os países
relutantes em aceitar a Alca heavy paguem o preço de receber menos
concessões em termos de abertura de mercados de bens,
particularmente agricultura. Vários dos integrantes do G-14
aceitaram o formato "heavy" em acordos de livre comércio com os EUA
que já estão em vigor (caso do Canadá, do México e do Chile) ou
aguardam aprovação pelo Congresso americano (caso da maioria dos
centro-americanos). Os demais iniciaram ou estão se preparando para
iniciar negociações bilaterais desse tipo.
Em Miami, recorde-se, ficou estabelecido que a Alca seria dividida
em dois níveis de negociação. O primeiro nível seria um conjunto
comum e equilibrado de direitos e obrigações, aplicáveis a todos os
países, que excluiria ou trataria de forma muito limitada questões
problemáticas como propriedade intelectual, licitações públicas e
investimentos estrangeiros. No segundo nível, os países poderiam
negociar obrigações e benefícios adicionais por meio de acordos
plurilaterais. A participação nesse segundo nível não seria
obrigatória.
O objetivo do Brasil em Miami, endossado pelos demais integrantes do
Mercosul, era concentrar a negociação em questões comerciais,
relacionadas a acesso aos mercados de bens. Nos demais tópicos, a
Alca deveria ater-se essencialmente às regras da OMC (Organização
Mundial do Comércio), que são bastante exigentes e até rigorosas
demais em algumas áreas, como por exemplo investimentos e
propriedade intelectual. Para o Mercosul, a correspondência entre
direitos e obrigações deveria ocorrer dentro de cada área da
negociação da Alca, e não de maneira cruzada entre as diferentes
áreas.
A vitória do Brasil em Miami estava baseada em uma declaração
ministerial genérica, formulada em termos vagos e que admitia,
portanto, mais de uma interpretação, como comentei em artigo
publicado na época (ver Alca "à la carte"?, Agência Carta Maior, 18
de novembro de 2003). Os Estados Unidos até aceitam negociar em dois
níveis, mas querem estabelecer clara vinculação entre as concessões
nos temas problemáticos para o Brasil (investimentos, serviços,
compras governamentais e propriedade intelectual) e as vantagens em
termos de supressão das barreiras de acesso ao mercado (notadamente
agricultura). "No pain, no gain" (sem dor, nada se ganha), declarou
"off the record" um dos negociadores do G-14.
A posição defendida pelo governo americano e seus aliados em Puebla
foi explicada, em conferência telefônica com a imprensa, por um
funcionário do Ministério de Comércio Exterior dos Estados Unidos,
logo após o encerramento da reunião, sob a condição de que ele não
teria o seu nome revelado. A transcrição da entrevista foi colocada
no site do ministério, o que confere um caráter oficial às
declarações anônimas (ver "Background Teleconference Call by a
'U.S. Trade Official' Regarding the Free Trade Area of the Americas
Trade Negotiating Committee Meeting in Puebla, México, February 7,
2004, www.ustr.gov).
Trata-se da explicação oficial mais completa sobre o impasse surgido
em Puebla. É a versão de Washington, evidentemente. Os pontos
principais são os seguintes. Primeiro, Washington quer que o
conjunto comum de obrigações e direitos seja o mais abrangente
possível. Segundo, se o Mercosul pretende limitar o alcance da Alca
em áreas de particular interesse dos EUA (serviços, investimentos,
compras governamentais e propriedade intelectual), deve aceitar
também que sejam modestas as concessões em matéria de acesso a
mercados, especialmente agricultura. Terceiro, nada impede
Washington e seus aliados de avançar na negociação dos acordos
plurilaterais mais ambiciosos, mesmo antes que seja concluída a
definição do conjunto comum de obrigações e direitos – mais uma
forma de pressionar o Brasil, a Argentina e outros países que
resistem à Alca "heavy".
Dois pesos, duas medidas. Não se tem notícia de que os EUA se sintam
obrigados a pagar um preço por insistir na exclusão de certos temas
da Alca. Por exemplo: que contrapartida oferece Washington por não
aceitar negociar um dos seus principais instrumentos
protecionistas, a legislação antidumping? No que diz respeito à
agricultura, as concessões feitas pelos EUA são pequenas mesmo nos
acordos de livre-comércio em vigor ou recentemente negociados, que
seguem fielmente o formato "heavy". Querem limitá-las ainda mais?
Para o Brasil, a pergunta básica continua sendo: vale a pena
continuar com essa negociação? Com o passar do tempo, vai ficando
cada vez mais claro que o país tem muito a perder e pouco ou nada a
ganhar com a Alca. Na melhor das hipóteses, se conseguirmos resistir
às pressões de Washington, o que teremos é um acordo esvaziado, com
poucas obrigações e poucas vantagens – uma OEA (Organização dos
Estados Americanos) da área econômica, como comentou ironicamente o
negociador chefe do Brasil, o embaixador Macedo Soares.
Estabeleceu-se que as delegações se encontrarão novamente em março,
em Puebla, para tentar superar o impasse. Até lá, é bem possível
que a quinta-coluna tupiniquim volte a se assanhar, criticando a
"intransigência" dos negociadores brasileiros e procurando solapar
a resistência às propostas de Washington.
O governo brasileiro ainda não apresentou à opinião pública a sua
versão dos acontecimentos. Deve fazê-lo o quanto antes para tentar
evitar que ruídos na imprensa doméstica, nos meios empresariais e
dentro do próprio governo enfraqueçam a posição do Brasil num
momento delicado da negociação.
* Paulo Nogueira Batista Jr. , economista, pesquisador visitante do
Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, é
autor do livro "A Economia como Ela É ..." (Boitempo Editorial, 3ª
edição, 2002). Escreve às terças-feiras na Agência Carta Maior.
https://www.alainet.org/es/node/109398?language=es
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