Vulnerabilidade externa – o papel do Banco Central
30/03/2003
- Opinión
Nos últimos anos, a economia brasileira tem experimentado uma
sucessão de graves crises cambiais. Foi o que aconteceu em
1995, 1997, 1998, 1999, 2001 e 2002. Em todos esses anos,
tentativas de retomada do crescimento foram abortadas por
surtos de instabilidade no setor externo da economia.
A freqüência e intensidade das crises de balanço de
pagamentos têm sido impressionantes, mesmo para um país como
o Brasil, cuja história econômica é marcada, como se sabe,
por episódios recorrentes de estrangulamento externo. A que
atribuir a intensificação desse tipo de crise no passado
recente?
Choques internacionais
Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, a tendência
das autoridades brasileiras era culpar a evolução adversa do
quadro mundial, em especial as turbulências produzidas pela
"globalização financeira". Há um elemento de verdade nessa
explicação. Com o extraordinário crescimento do volume e da
velocidade das transações financeiras internacionais,
aumentou o potencial de instabilidade associado a
desequilíbrios financeiros e cambiais. É verdade, também, que
as crises por que passou a economia brasileira no período
1995-2002 estiveram quase sempre ligadas a choques de
repercussão internacional: o colapso do México (1994-1995), a
crise no leste da Ásia (1997-1998), a moratória da Rússia
(1998), a agonia e o colapso do "currency board" da Argentina
(2001-2002), ataques terroristas, o estouro da bolha
especulativa no mercado de ações e os escândalos corporativos
nos Estados Unidos (2001-2002).
No entanto, a explicação que ressalta o papel dos choques
externos não é inteiramente convincente. Nenhuma dessas
crises teve dimensões verdadeiramente globais. Diversos
países importantes, inclusive na periferia do sistema
internacional, atravessaram esses episódios basicamente
incólumes. China e Índia, por exemplo, registraram altas
taxas de crescimento econômico durante todo o período. Depois
da Argentina, o Brasil foi, entre os grandes países da
periferia, o que se revelou mais suscetível a choques
internacionais.
Ortodoxia Fiscal
É difícil escapar da conclusão de que a explicação
precisa ser buscada primordialmente no âmbito nacional.
Aceita essa conclusão, há basicamente duas formas de abordar
o problema. A abordagem mais ortodoxa, que parece ser a de
alguns integrantes da área econômica do governo Lula, dá
ênfase especial aos déficits fiscais e ao crescimento da
dívida pública. De acordo com esse ponto de vista, um ajuste
fiscal insuficiente ou baseado em medidas de caráter
temporário teria levado ao crescimento da relação dívida/PIB
e a dúvidas quanto à capacidade de pagamento do governo
brasileiro. Essas dúvidas levariam à fuga de capitais e,
conseqüentemente, a crises de balanço de pagamentos. Para
resolver o problema da vulnerabilidade, o fundamental seria
reforçar o ajuste fiscal, aumentando o superávit fiscal
primário, e garantir a sua "sustentabilidade" mediante
reformas estruturais (notadamente a previdenciária e a
tributária).
Essa abordagem parece pouco promissora. A relação de
causalidade da dívida pública para as contas externas existe,
sem dúvida, mas é provavelmente bem mais fraca do que a
relação inversa, que vai do desequilíbrio externo para as
contas públicas. A pressão do desequilíbrio externo sobre a
taxa interna de juro e a taxa de câmbio explica – e de forma
bastante direta e evidente – grande parte do desequilíbrio
fiscal e do crescimento da dívida pública desde 1994.
Várias das economias "emergentes" que sucumbiram a choques
externos ou sofreram graves crises cambiais nos anos recentes
exibiam contas públicas ajustadas e eram elogiadas urbi et
orbi por sua performance fiscal. Por exemplo: México em 1994-
1995 e Tailândia, Indonésia e Coréia do Sul em 1997-1998.
Nesses casos, a deterioração das contas públicas foi
conseqüência e não causa do colapso cambial e financeiro.
Inversamente, países que foram pouco afetados pelas
turbulências financeiras internacionais tiveram performance
fiscal muito fraca (Índia) ou duvidosa (China). Não por
acaso, a Índia e a China mantiveram déficits pequenos ou até
superávits no balanço de pagamentos em conta corrente, moedas
não-conversíveis, controles sobre os movimentos de capital e
níveis geralmente elevados de reservas internacionais.
Fragilidade das Contas Externas
Parece claro que há algo de suspeito na ênfase que se dá às
contas públicas e ao papel explicativo da política fiscal. A
hipótese mais plausível é também a mais intuitiva: a
explicação para a vulnerabilidade externa deve ser encontrada
fundamentalmente na situação das próprias contas externas do
país – e aqui o papel do Banco Central é decisivo. A
dificuldade primordial não reside nas contas fiscais, que são
basicamente internas e liquidáveis em reais, e sim no balanço
de pagamentos, isto é, nas contas em dólares e outras moedas
de liquidez internacional – moedas que não emitimos e cuja
oferta é escassa e altamente instável.
Desde 1995, a fragilidade das contas externas
brasileiras é fruto de três fatores principais: i) o elevado
déficit em conta corrente (até 2001); ii) a excessiva
abertura da conta de capitais; e iii) um nível de reservas
internacionais em geral bastante inferior ao recomendável.
Tenho escrito repetidamente a respeito desse problema desde o
início do Plano Real; a minha tentativa mais recente de
analisá-lo e sugerir formas de resolvê-lo foi publicada no
ano passado(1) .
O Brasil fez algum progresso de 1999 em diante,
basicamente como resultado do abandono do malfadado regime de
bandas cambiais e da passagem para a flutuação. A depreciação
registrada desde então, e sobretudo em 2002, resultou em
forte aumento do superávit da balança comercial e queda no
déficit em conta corrente. Desde 2002, a velocidade do
ajustamento da conta corrente vem ultrapassando todas as
expectativas.
Porém, o problema está longe de resolvido. O ajustamento da
conta corrente está sendo produzido, em grande medida, por
fatores circunstanciais e não desejáveis, como a estagnação
do nível de atividade econômica, a subvalorização do real e a
contração da oferta de financiamento externo às importações.
O grande desafio é manter um elevado superávit comercial e um
déficit em conta corrente em nível reduzido com a economia
crescendo em ritmo adequado (em termos de geração de
empregos) e a taxa de câmbio mais próxima de uma posição
razoável (mais compatível com o controle da inflação e do
ritmo de crescimento da dívida pública).
O superávit comercial não precisa ser muito mais alto do
que o que vem sendo registrado desde 2002. Mas deve ser
gerado com a economia crescendo a taxas médias de pelo menos
5% ao longo dos próximos anos e com menor dependência da
competitividade espúria proporcionada pela megadepreciação
cambial.
Isso requer uma mudança no foco da política econômica e
a mobilização de um conjunto de instrumentos. O sistema
tributário deve ser reformulado para diminuir ou eliminar
tributos cumulativos que oneram as exportações e favorecem as
importações em detrimento da produção interna. Os bancos
públicos, notadamente o BNDES e o Banco do Brasil, devem ser
orientados para conferir prioridade sistemática aos setores
capazes de exportar ou substituir importações de bens e
serviços. É preciso recuperar a infra-estrutura de
transportes e energia, prejudicada por décadas de
subinvestimento e de falta de planejamento adequado. A
política de comércio exterior precisa incluir regulamentação
eficiente das importações, que proteja a economia do dumping
e da concorrência desleal, a exemplo do que se faz
rotineiramente nos países desenvolvidos.
Trata-se, em suma, de orientar as políticas de
desenvolvimento, industriais e de comércio exterior, de forma
sistemática e sustentada, para a geração ou a economia de
divisas – levando em conta, evidentemente, as restrições
decorrentes da participação do Brasil no Mercosul e na OMC
(Organização Mundial do Comércio). Daí segue, diga-se de
passagem, que não interessa ao Brasil ingressar em áreas de
livre comércio como a Alca (Área de Livre Comércio das
Américas) ou a que seria criada mediante acordo entre o
Mercosul e a União Européia, pois esses acordos tenderiam a
restringir consideravelmente as possibilidades de recorrer a
vários dos instrumentos de que poderíamos lançar mão para
assegurar o ajustamento estrutural do balanço de pagamentos.
Conta de Capitais e Reservas Internacionais
O ajuste da conta corrente não é condição suficiente
para resolver o problema da vulnerabilidade externa. O
segundo aspecto do problema, raramente destacado ou sequer
mencionado, está na conta de capitais autônomos do balanço de
pagamentos. Desde o governo Collor, em nome da liberalização
e da "modernização", o Brasil afrouxou os seus controles
sobre os fluxos financeiros e de capital, ficando mais
vulnerável a movimentos especulativos e às acentuadas
oscilações dos mercados internacionais. Descuidou de
administrar de forma rigorosa o perfil da dívida externa
privada. Aceitou a generalização de práticas e cláusulas
contratuais que permitem a antecipação de pagamentos e
conduzem, portanto, a perda de controle sobre a estrutura de
vencimentos da dívida externa. A liberalização financeira
externa facilitou, também, a saída de recursos de capital
pertencentes a residentes no Brasil. Aumentou, assim, a fuga
de capitais domésticos em momentos de turbulência e pânico,
contribuindo para surtos de instabilidade cambial. Em 2002,
esses problemas vieram à tona com grande intensidade.
O terceiro aspecto do problema da vulnerabilidade
externa, que tampouco tem recebido a atenção merecida, é o
nível das reservas do país em ativos de liquidez
internacional. Reservas elevadas, combinadas com políticas
econômicas prudentes, representam poderoso fator de dissuasão
de apostas contra a moeda nacional. O Brasil não tem mantido
um estoque adequado de reservas internacionais, que
constituem a primeira linha de defesa em conjunturas de
instabilidade. Depois da crise de 1999, as reservas nunca
chegaram sequer perto de um montante que possa ser
considerado seguro, em face do potencial de instabilidade
existente no Brasil e no resto do mundo.
O Papel do Banco Central
A solução do problema da vulnerabilidade externa não
requer medidas drásticas ou extremas. A situação brasileira é
inegavelmente frágil, mas não chega a ser emergencial.
É indispensável, entretanto, promover uma reorientação
da política econômica. Essa reorientação não será possível
sem tomar distância dos preconceitos e dos grupos de
interesse que comandaram a formulação da política econômico-
financeira no Brasil desde o início dos anos 90. Nos últimos
dez anos, decisões vitais foram tomadas à luz das prioridades
e interesses do sistema financeiro interno e externo,
contrariando não raro os interesses maiores do país, da sua
segurança externa, da sua independência e das suas
possibilidades de crescimento.
A contribuição do Banco Central é essencial para
viabilizar uma estratégia consistente e sustentável de
autodefesa do país e de recuperação da autonomia da política
econômica. Dele dependem a administração da política cambial,
o nível das reservas internacionais, a regulação do mercado
de câmbio e o controle das relações financeiras externas da
economia e dos movimentos de capital.
Tudo se tornará mais difícil, talvez impossível, com um
Banco Central autônomo, comandado por pessoas da confiança
dos mercados financeiros protegidas pela estabilidade no
emprego associada a mandatos fixos e relativamente longos.
O Brasil, que já teve uma das economias mais dinâmicas
do mundo, não cresce de forma sustentada há mais de vinte
anos. Estamos agora correndo o risco de experimentar uma
terceira década perdida em termos de expansão econômica e
geração de empregos. Para que isso não aconteça, é essencial
colocar a solução do problema da vulnerabilidade externa no
topo das prioridades do governo brasileiro.
* Paulo Nogueira Batista Jr. Economista, pesquisador
visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e
professor da FGV-EAESP. É autor do livro A Economia como Ela
É ... (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
(1) Paulo Nogueira Batista Jr., "Vulnerabilidade Externa da Economia Brasileira", Estudos Avançados, Volume
16, Número 45, Maio / Agosto 2002.
https://www.alainet.org/es/node/107445?language=es
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