Análise de conjuntura – maio 2003
03/06/2003
- Opinión
Apresentação
A análise de conjuntura apresentada na Assembléia Geral da
CNBB interpreta as dificuldades do atual governo como
resultantes do embate entre a manifestação do eleitorado
brasileiro em favor de mudanças, e a resistência da estrutura
social vigente. Ali mostramos que, diante dos clamores por
cidadania para a massa excluída, a estratégia histórica dos
"donos do poder" (Raimundo Faoro), tem sido a de conceder
algumas vantagens sociais, para preservar a concentração da
propriedade da terra, da riqueza e da renda. Os fatos deste mês
podem colocar em questão a esperança de mudanças reafirmada em
Itaicí. Terá o atual governo força para operar verdadeira
mudança social, ou, mais uma vez, o clamor popular por reformas
estruturais será abafado por políticas compensatórias?
Para encaminhar a apreciação desses fatos, partimos do
cerne do atual problema: a manutenção da política econômica de
FHC, acompanhada de alentadores sinais de mudança. Examinaremos
as tensões entre o governo e os "radicais" e as questões que
trazem maior perplexidade, e concluiremos com uma reflexão sobre
o que está sendo feito para favorecer a tendência de mudança da
sociedade. Em apêndice, uma breve apreciação do resultados das
eleições na Argentina.
A submissão ao "mercado".
O governo tem se orientado, em que pese seu discurso, mais
pela bússola dos indicadores financeiros (que vão bem), do que
pelos indicadores sociais (que vão mal). Tendo mantido os rumos
do governo anterior, que confiou sua política econômica ao
"mercado", encontra enorme dificuldade para fazer a correção de
rota. Embora não se fale mais de ameaça de ataque especulativo
ou de disparada do dólar, o argumento da "vulnerabilidade da
economia brasileira" tem sido usado para dar seguimento à
política neoliberal de FHC, como se viu nos projetos de reforma
da previdência e tributária, encaminhadas ao Congresso por
pressão do capital financeiro.
O fato mais relevante, foi o Banco Central ter mantido a
taxa selic em 26,5%. Isso demonstra não só sua autonomia de fato
(ele é imune aos clamores do setor produtivo e dos
consumidores), mas também que o Tesouro continuará
desembolsando, a cada mês, cerca de R$10 bilhões somente para
pagar juros(1). Embora o cidadão comum se assuste com tal montante
"jogado pela janela", como diz o Vice-presidente da República,
os técnicos do Tesouro Nacional comemoram o resultado, porque
demonstra a confiança do mercado, que está aceitando títulos
emitidos com prazo médio superior a 18 meses.
O gargalo político reside na desvinculação dos recursos
orçamentários, para a produção do superávit primário destinado à
rolagem da dívida. O FMI havia acertado com a equipe econômica
de FHC 3,5% do PIB, mas esta elevou-o para 3,75%. A equipe
econômica de Lula comprometeu-se a fazer 4,25%, mas já alcançou,
no primeiro quadrimestre, quase 5%. Isso significa que quase
R$25 bilhões foram retirados dos gastos e investimentos do
Governo e redirecionados para pagar juros. Assim, os bancos
credores, que dispõem de vultuosos recursos para comprar títulos
da dívida publica, tiveram neste primeiro trimestre lucros que
superaram de longe a festa do ano passado.
Para fazer superávit, o governo estabelece o
contingenciamento dos recursos orçamentários, retirando a
capacidade de atuação dos ministros. Veio agora à tona a ameaça
do paradão: se não forem feitos investimentos da ordem de R$6
bilhões ao ano, a infra-estrutura de transportes do Brasil
estará sucateada em 2006. O Presidente diz que, no seu governo,
um real vale por dois, mas nem mesmo a melhor e mais honesta
administração dos recursos públicos vai evitar o paradão, se não
forem feitos substanciais investimentos.
Sinais de mudança
Fora da política econômica, há alentadores sinais de
mudança em relação ao governo anterior. Destaca-se a política
externa, que tem priorizado a defesa da soberania e dos
interesses do Brasil. Mudanças internas ao Itamaraty e o ritmo
mais lento nas negociações da ALCA, podem levar à rejeição de
uma proposta nos mesmos moldes do NAFTA, que fez aumentar muito
a pobreza no México, e abrir alternativas realmente em favor do
Brasil e de seus parceiros latino-americanos. Além disso, o
arquivamento do acordo de concessão aos EUA de uma base militar
em Alcântara/MA, confirma a opção por uma política externa
soberana, que pode tornar-se um dos eixos estruturantes das
mudanças, na medida em que conquistar o apoio internacional para
o desenvolvimento do Brasil.
Outra sinalização importante, que aponta para o
encaminhamento de uma verdadeira Reforma Agrária, são as
negociações abertas com os movimentos sociais do campo (Contag e
MST), por ocasião do Grito da Terra, nos dias 12 e 13 de maio.
Pela primeira vez, na história recente do país, o governo
promete destinar recursos consideráveis para o financiamento da
agricultura familiar, o que ajudará o Programa Fome Zero a ir
alem do atendimento emergencial a quem tem fome e agir sobre as
causas estruturais da carência alimentar e nutricional.
O governo tem colocado pessoas chaves em lugares chaves (o
primeiro ministro negro do Supremo Tribunal, é um bom exemplo
disso), criando espaços e perspectivas promissoras. O esforço em
defender os Direitos Humanos e combater o crime organizado e a
corrupção, tem dado ao Ministério da Justiça um lugar de
destaque no atual quadro político. É verdade que pouco foi feito
até agora na política indigenista, mas há sinais de que este
tema está merecendo a atenção do governo. A demarcação de áreas
indígenas importantes, como a da Raposa Serra do Sol, bem como a
proteção aos povos e lideranças indígenas hoje perseguidos em
várias regiões são medidas que esperamos ver tomadas em breve.
Também a Amazônia, que tem sido objeto da preocupação da
sociedade (aí incluída a Igreja Católica) e do governo, está
sendo vista com atenção desde a visita de Lula ao Acre, e
esperamos em breve ver concretizado o projeto de seu
desenvolvimento regional.
Tensões com os radicais
O barulho, as críticas, as tensões e os questionamentos que
vêm das ruas e das bases, são parte do cotidiano do Partido dos
Trabalhadores. Mas hoje a contestação parece incomodar seus
dirigentes, que desqualificam e ameaçam punir quem discorda das
propostas do governo Lula.
Na análise de conjuntura após as eleições, prevíamos
difíceis relações entre governo e movimentos sociais. Mas de
fato o maior problema do governo não tem sido os movimentos
sociais, que têm mostrado ter a paciência pedida pelo Presidente
(paciência que os credores evidentemente não têm), mas com o
partido. A relação entre governo e partido, quando este chega ao
poder, tem uma contradição básica: o governo deve contemplar o
interesse geral do país e nem sempre pode cumprir o programa do
partido. O partido, por seu lado, precisa ser fiel a seu
programa, para não perder sua identidade ideológica. Essa
natural tensão, que se verifica desde o nível executivo
municipal, ganha grandes proporções devido à crise econômica que
o Brasil atravessa desde 1997, quando, praticamente falido, o
governo FHC recorreu ao FMI e passou a seguir suas orientações.
Temendo agravá-la, o governo Lula mantém essa mesma orientação,
alegando não ter alternativa a curto prazo. Ao trazer o PT
incondicionalmente para sua tese, o governo poderia reduzi-lo a
um executor de suas políticas no Congresso. Contra esse risco,
alguns parlamentares resistem publicamente, ocupando espaço na
mídia. Outros se calam, para não prejudicar a credibilidade do
governo, mas já se pode sentir certo desalento nos corredores do
congresso nacional. Enquanto isso, partidos de índole
governista, como o PMDB, o PTB, o PL, vão se alinhando sem
constrangimento e reforçando a base de apoio do governo.
Já no campo dos Movimentos sociais, é estranho que, neste
primeiro ano de governo o 1º de maio tenha sido tão silencioso e
apagado. As ruas permaneceram mudas e desertas, como na passagem
de qualquer outro feriado. Nada de mobilizações, atos políticos,
contestações - não obstante o aumento do desemprego e a
precarização crescente das relações de trabalho. Não fossem o
ato da Força Sindical, em São Paulo, e a missa celebrada em São
Bernardo do Campo, o 1º de maio de 2003 teria passado em branco.
De um lado, uma festa com leilão de casas, carros e uma série de
shows e atrações musicais; de outro lado, uma celebração onde o
presidente Lula e o Cardeal dom Cláudio Hummes reviveram o final
dos anos 70, no berço do sindicalismo combativo e do PT.
Acrescente-se a isso a manifestação da CUT, na praça da Sé, em
São Paulo, com algumas centenas de participantes, e temos uma
idéia do que foram as comemorações da data.
O governo Lula perdeu uma grande chance de dar visibilidade
a um novo projeto para o Brasil e às mudanças necessárias para
sua viabilização. Após quatro meses à frente do Executivo, seria
um momento oportuno para estimular a mobilização social e
mostrar a verdadeira força que o conduziu ao Palácio do
Planalto. Reafirmar que o povo votou para mudar, seria uma forma
de sinalizar a vontade política de transformações profundas e,
mais que isso, indicar que elas precisam da pressão da sociedade
civil mobilizada.
Para onde pende a balança?
Adaptando em nível macro a experiência do "orçamento
participativo", o governo promete trazer para o grande público
as metas do Plano Plurianual (PPA) - 2004-2007 - e assim abrir o
debate sobre o planejamento a médio e longo prazos, que torne
possível um novo Brasil. Dentro de uma estratégia de longo
prazo, a proposta do governo para o PPA anuncia quatro
prioridades:
Reduzir a vulnerabilidade externa;
Ampliar os investimentos privados, especialmente no setor
de infra-estrutura;
Incentivar políticas de desenvolvimento regional;
Constituir um mercado de massas.
Em que pese este horizonte de esperança no planejamento a
longo prazo, o documento Política Econômica e Reformas
Estruturais (publicado em abril) recebeu duras críticas, porque
enfraquece o projeto político de mudança, ao submeter as
políticas sociais aos ditames de mercado imune a considerações
humanitárias. Ao contrário do que prescreve a Constituição (os
direitos sociais são direitos de todos e deveres do Estado),
aquele documento restringe as políticas públicas aos setores
excluídos do mercado. Ou seja, o mercado ofereceria os melhores
serviços (de saúde, previdência, educação, etc) a quem possa
pagar, enquanto o Estado focalizaria seu atendimento para os
pobres.
Essas contradições políticas provocam perplexidade não só
no cidadão comum, que acompanha a política pela mídia, mas até
mesmo em parlamentares. Alguns deles, recém-chegados a Brasília
cheios de entusiasmo, expressam seu desencanto. O que paralisa o
governo na construção de outro Brasil possível? Pressa de
militantes que não percebem a complexidade dos meandros do
poder, ou engrenagem tão bem montada que impossibilita reais
mudanças? As medidas econômicas tomadas até agora são caminho
sem volta, ou etapas necessárias na construção de uma sociedade
justa e solidária?
Seria exagero dizer que há desilusão com o novo governo,
mas é certo que mudou o clima político do final de 2002 e que
teve seu auge na festa popular da posse de Lula. A esperança que
venceu o medo está aos poucos perdendo força diante do
pragmatismo político. As pesquisas mostram que a grande maioria
da população continua confiando no Presidente da República, mas
entre os formadores de opinião já se notam sinais de
preocupação.
Sabemos que o governo tem um longo e duro caminho a
percorrer, mas causa constrangimento assistirmos as negociações
em torno do apoio às reformas em tramitação no Parlamento.
Quando partidos políticos de tradição elitista e avessos a
mudanças, se coligam com o governo para votação de matérias
importantes, jornalistas veteranos lembram as negociações do
centrão na Constituinte e os conchavos para a emenda da
reeleição. Continuará valendo o "é dando que se recebe"?
A carta aberta de intelectuais amigos do Presidente Lula
fala das propostas da ALCA e da autonomia do Banco Central como
duas ameaças à nossa soberania. Pedem que o povo seja consultado
por meio de um plebiscito que enseje um grande debate nacional,
fundamentando assim uma decisão verdadeiramente democrática.
É possível influir nos rumos da política?
Os desafios levantados pelos Bispos nas Diretrizes Gerais,
na última Assembléia de Itaicí, caracterizando a mudança de
mentalidade corrente no fenômeno da globalização, podem ser
iluminadores: "Um aspecto importante dessa mudança de
mentalidade é o enfraquecimento da política. Isso decorre das
mudanças culturais como a difusão do individualismo e,
principalmente, do crescimento do poder dos grandes grupos
econômicos multinacionais que pretendem impor suas decisões à
sociedade e substituir as instancias políticas. Daí o risco de
esvaziamento da democracia, que a opinião pública procura
corrigir com uma maior vigilância sobre as decisões políticas e
com o exercício de pressões populares, diretas, em favor das
causas que lhe parecem essenciais..." (n.48).
É condição fundamental para a mudança de rumos na política
econômica a sintonia entre o governo Lula, os movimentos e
entidades da sociedade civil organizada, e os partidos políticos
que o elegeram. Mas isso não é fácil. Por um lado, movimentos
menos combativos, mobilizados para a campanha eleitoral, já
refluíram à sua habitual letargia, enquanto outros retomam ações
de contestação, como o MST, por exemplo, que reiniciou as
ocupações de terra, ou a CUT, que não tem poupado críticas ao
projeto de reforma da previdência. A insatisfação social tende a
engrossar as fileiras dos movimentos organizados e aumentar as
pressões por reais transformações. O governo Lula tem sabido
lidar com essas pressões, mas parece não se dar conta que sua
força política é diretamente proporcional à organização popular.
O êxito do governo Lula dependerá, fundamentalmente, da
elevação do nível político da sociedade brasileira, o que requer
Ética e eficiente combate à corrupção, mas também educação
política desde as bases populares. Educação política implica
necessariamente uma informação fiel à realidade e que suscite a
reflexão e a tomada de posições (e não a simples propaganda, que
só é útil para conquistar votos).
Neste sentido, é promissor o convênio em andamento com o
Movimento de Educação de Base, porque este, fiel à pedagogia de
Paulo Freire e à larga experiência da Igreja em educação
popular, se propõe a alfabetizar elevando a consciência cidadã.
E disso se trata: desenvolver nas pessoas seu anseio por
cidadania e democracia, e favorecer sua participação em
movimentos, sindicatos, associações, cooperativas, partidos e
outras formas de organização e manifestação político-sociais. É
evidente que um povo assim organizado não é como uma massa dócil
à condução de um líder. Ela debate, discute e diverge até mesmo
do líder mais querido, mas, longe de enfraquecer seu poder, é
nesta sociedade brasileira, organizada e consciente, que reside
a chave do êxito do governo Lula.
Novidades na Argentina
Kirchner chega à presidência de um país arruinado.
Peronista pouco conhecido (no primeiro turno recebeu apenas
22%), sua eleição deve-se mais à rejeição de Menem. Nos 12
últimos anos foi governador da província de Santa Cruz, na
Patagônia, com 200.000 habitantes, muitos recursos naturais e
40.000 funcionários públicos. E considerado bom administrador,
mas é um dirigente populista e clientelista (sua mulher é
senadora e sua irmã ministra).
A eleição truncada não ajuda a consolidar as instituições
democráticas abaladas pelas muitas manifestações e levantamentos
populares que, em dois anos, derrubaram 5 presidentes. Para
governar, Kirchner deverá buscar o apoio dos vários blocos
peronistas, tarefa muito difícil, inclusive porque seu padrinho
político, Duhalde, é provável candidato às eleições
presidenciais de 2007. A esquerda, dividida, está fora do jogo.
O programa do novo presidente ficou vago, sem perspectivas e
metas claras. Kirchner procurou um reconhecimento internacional
visitando os presidentes do Brasil e do Chile. Certamente, não
promoverá, como Menem, o capitalismo neoliberal. Mas, como
resolver pragmaticamente os problemas acumulados em 4 anos de
recessão? A atividade econômica do país retrocedeu de 20%, tem
18% de desempregados, a pobreza atinge 57% da população, e
precisará 'amansar' o sistema financeiro nacional e
internacional para obter novos investimentos.
Aumenta agora a possibilidade de reavivar o MercoSul, na
perspectiva, entre outras, das negociações da ALCA. Maior
aproximação com o Brasil é provável, e eventualmente com o
Chile. Se juntarem os interesses complementares dos seus países,
os presidentes Kirchner, Lula da Silva e Lagos representam uma
chance histórica de integração do Cone Sul. Pensando mais
amplamente, os entendimentos também com Chávez, da Venezuela,
Toledo, do Peru, e Gutiérez do Equador, podem apontar para um
novo perfil político latino-americano.
Contribuíram para esta análise Pe. Ernanne Pinheiro, Pe. Alfredo
Gonçalves, Pe. Bernard Lestienne, Pe. Antônio Abreu, Pe. Thierry
Linard e Guilherme Delgado.
* Pedro A. Ribeiro de Oliveira. Assessor da CNBB para o
Setor CEBs e Professor na Universidade Católica de
Brasília
(1) A dívida pública federal em títulos fechou o mês de abril em R$644 bilhões, dos quais 30% atrelada à moeda dos EUA, e
52% pela taxa selic.
https://www.alainet.org/es/node/107624
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